Três das mais proeminentes palavras no mundo de hoje são «black lives matter» (as vidas dos negros importam). Estas palavras estão brasonadas nas tuas, em edifícios públicos e frentes de lojas, nas redes sociais, nas janelas das casas e, também, em espaços de oração. Para alguns, estas palavras são simplesmente um apelo para a justiça racial desde há muito negada. Para outros, são um apelo para mudanças fundamentais na sociedade. Muitos veem essas palavras como autoevidentes. Outros veem-nas como divisivas e partidárias.
Para começar, é importante clarificar que a minha iniciativa, aqui, não pretende dirigir-se, e muito menos aprovar, a organização legalmente conhecida como BlackLivesMatter Global Network. Muitas plataformas ideológicas e estratégias táticas promovidas debaixo do chapéu da frase “Black Lives Matter” estão em contradição direta com o ensinamento da Igreja e devem legitimamente ser rejeitadas pelos fiéis católicos. Mais propiamente, a questão que se coloca diante de nós, católicos, é a seguinte: haverá uma verdade refletida nestas palavras que transcende as plataformas partidárias e construções ideológicas, uma verdade que, de facto, ressoa com os valores do Evangelho que derivam da nossa fé?
Ensinamento social católico
Por outras palavras, o que é que estas três palavras deveriam significar para nós, como católicos? Dentro da pertença à Igreja, encontramos a mesma gama de opiniões que na sociedade mais alargada. Ainda assim, o ensinamento social da Igreja oferece importantes discernimentos sobre o significado da frase «black lives matter». Que discernimentos são esses, e porque é que são importantes? Sem pretender ser exaustivo, gostaria d etentar uma resposta +ara esta pergunta e oferecer uma modesta contribuição para uma discussão importante que está a acontecer dentro da Igreja e além dela. Ao fazê-lo, também espero ajudar a comunidade católica que sirvo a encontrar um terreno comum com aqueles que buscam a justiça racial.
Deixem-me começar com isto: o ensinamento social católico não é uma adenda ao Evangelho, mas uma parte viva da proclamação que a Igreja faz da nossa salvação em Jesus Cristo. É por causa do amor de Deus por cada pessoa e por toda a família humana que a Igreja fala de questões como economia e justiça racial; a perversidade do aborto, pena de morte e eutanásia; a economia e o ambiente; liberdade religiosa; as condições precárias dos imigrantes e refugiados; e uma hoste de outros assuntos sociais. Que luz, então, o ensinamento social da Igreja lança sobre as palavras «black lives matter»?
A dignidade pessoa humana
A pedra angular do ensinamento social da Igreja é a verdade que diz respeito à dignidade da pessoa humana. Cada pessoa é criada à imagem e semelhança de Deus, e é dotada de dignidade inviolável desde o momento da conceção até à morte natural. Cada pessoa é trabalho manual de Deus e é feita para a amizade de Deus. Também acreditamos que a verdadeira dignidade da pessoa humana é totalmente revelada em Cristo, nosso Redentor, o Filho de Deus que assumiu a nossa humanidade. Tornando-se um de nós, o Filho de Deus uniu-se a si próprio a cada pessoa, e chamou-nos à conversão e à vida eterna. De facto, a nossa defesa da vida e dignidade humanas tem sempre de ser «clara, firme e apaixonada», e estendida a toda a pessoa em todo o estádio de desenvolvimento (cf. papa Francisco, “Gaudete et exsultate”, 101).
Desta maneira, as palavras «black lives matter» lembram-nos que toda a pessoa negra é feita à imagem de Deus e é dotada de dignidade inviolável, desde o momento da conceção até à morte natural. Mas porquê especificar pessoas negras? Porque é não nos satisfazemos em dizer apenas que todas as pessoas são trabalho manual de Deus? Primeiro, porque ao dizer «black lives matter», permite-nos recordar que somos parte de uma Igreja cujo passado está manchado pela sua participação na escravidão e noutras formas de racismo. Permite-nos também recordar que vivemos num país onde a escravidão foi lei (…).
Mudar leis, e mesmo a própria Constituição, é uma coisa, enquanto mudar os corações humanos é outra. Ninguém pode com justiça negar que o racismo contra pessoas de cor – que é uma negação da sua dignidade dada por Deus – persiste na nossa sociedade. Desde as recentes mortes de homens e mulheres negros desarmados por agentes da polícia à subtil e perniciosa suspeita, incessantemente suportada até pelos mais talentosos homens e mulheres, o racismo continua a ser manifesto na nossa sociedade e na nossa Igreja. As palavras «black lives matter» deviam impelir-nos a examinar as nossas próprias consciência quanto ao racismo, e estimular-nos a defender e a trabalhar pela justiça racial.
Como católicos, acreditamos, justamente, que as pessoas não-nascidas e frágeis idosos são dotadas de inviolável dignidade humana. As palavras «black lives matter» deviam voltar a nossa atenção não só para as graves injustiças e indignidades sofridas pela comunidade negra, mas especialmente para as mais pequenas e mais frágeis vidas negras, cujas situações muitas vezes se tornam mais periclitantes por causa da pobreza, desemprego, escolas medíocres, habitações inadequadas e fracos cuidados de saúde. Não podemos dizer que somos totalmente «pró-vida» se rotineiramente não prestamos atenção às condições em que vivem demasiadas pessoas de cor. Para reiterar, o ensinamento da Igreja sobre a dignidade humana abrange todo o contínuo da vida humana. Ser fiel a esse ensinamento requer que ajamos com base das nossas crenças, e não, apenas, falemos sobre elas. Se alguma coisa nos «importa», temos de agir sobre ela. Dado que as vidas negras importam, então cada um de nós tem de fazer a nossa parte para criar condições nas quais cada pessoa negra tem a oportunidade de nascer, crescer para a maturidade, viver em comunidade e desenvolver-se.
O bem comum
Um segundo bloco do ensinamento social católico foca-se no bem comum. As palavras «bem comum» significam «o conjunto das condições sociais que permitem, tanto aos grupos como a cada um dos seus membros, atingir a sua perfeição, do modo mais completo e adequado» (“Catecismo da Igreja Católica”, 1906). Daqui seguem-se duas observações: primeiro, contribuir para a missão da Igreja levar a salvação a cada pessoa e a todos os povos é a obrigação para ajudar a criar uma sociedade que é justa e equitativa, onde todos se podem desenvolver. Segundo, a noção de bem comum não significa que a dignidade humana individual assume um segundo plano no bem geral da sociedade. Com efeito, ao promover a dignidade de cada pessoa em todas as suas fases da vida, estamos a ajudar a promover o bem comum de todos. Similarmente, quando qualquer grupo de pessoas na sociedade é travado pela intolerância e preconceito racial de atingir uma saudável medida de realização, o bem comum de toda a sociedade é debilitado.
É também por esta razão que «black lives matter». Alguns objetam, sublinhando que a afirmação da importância da vida dos negros implica que as outras não importam. Pelo contrário. Ao rejeitar uma atitude persistente e pecaminosa que dá menos valor às vidas negras que noutras, estamos, de facto, a servir o bem comum. Ao afirmar que a dignidade das vidas negras não diminui a dignidade de ninguém. O bem comum e a dignidade de todos são encorajados, contudo, quando trabalhamos em colaboração através de linhas partidárias e ideológicas, para criar condições na sociedade em que pessoas negras e pessoas de cor possam igualmente desenvolver-se. Por desenvolver-se quero dizer: atingir a equidade, vive em bairros pacíficos, frequentar boas escolas, ter acesso a formação laboral, encontrar emprego pleno e satisfatório, ter acesso a bons cuidados de saúde, e elevar-se a posições de liderança em todos os campos de empreendimento e instituições. A ascensão de vidas negras não é um ganho zero para todas as outras. Antes, é uma fonte de força.
Subsidiariedade
Um terceiro bloco do ensinamento social da Igreja é a subsidiariedade. Isto significa que na medida em que for possível e apropriado, os problemas a ser enfrentados e as iniciativas pelo bem devem ser realizadas no mais local dos níveis. Por outras palavras, enquanto o Governo e outras grandes instituições, incluindo Igrejas, devem continuamente e consistentemente providenciar ajuda e cuidado para quem está em dificuldade, também é importante que grupos e comunidades locais tenham os meios para criar condições para o desenvolvimento humano. Os Governos e grandes entidades e instituições não têm todas as respostas, nem sequer todos os recursos, necessárias para enfrentar problemas crónicos ou oportunidades perdidas. Antes, famílias e grupos baseadas em comunidades têm de trabalhar juntos a nível local para criar as condições para o melhoramento do ser humano.
Isto significa que as casas e bairros onde as pessoas negras vivem importam. A segregação quanto à habitação que ainda subsiste em muitos lugares continua a ser uma acusação da sociedade. Mais uma razão pela qual nos devia importar que demasiados desses bairros predominantemente negros se estejam a deteriorar e sejam dominados pela violência e uso de drogas. Deveria importar-nos a todos que, em muitos desses bairros, não haja lojas ou bancos, não haja mercearias ou outros serviços essenciais. Para reiterar, o Governo, em todos os seus níveis, tem um papel crítico a desempenhar em relação a estes e a outros problemas crónicos.
No entanto, os residentes desses bairros são os agentes mais importantes. A participação e a tomada de decisões são formas através das quais as pessoas afirmam que as suas próprias vidas importam. Isto é ainda mais verdadeiro para a comunidade negra, cuja autonomia foi durante muito tempo negada legalmente.
Os alicerces para a construção de uma autonomia genuína começam nas nossas casas e famílias, independentemente da nossa identidade racial. É em casa que um jovem descobre a sua dignidade. É em cada que a virtude é aprendida. É em casa que se prepara o sucesso na escola. É em casa que os jovens primeiro aprendem que as suas vidas importam. É em casa que as nossas crianças – todas as nossas crianças – têm também de aprender que as vidas negras importam. As nossas igrejas, escolas, grupos comunitárias e outras instituições e iniciativas devem ser extensões das nossas casas, e deviam convidar e encorajar a participação de vizinhos.
Solidariedade
Um quarto pilar do ensinamento social católico é a solidariedade. Isto é o reconhecimento que aqueles que diferem de nós – pela raça, linguagem ou cultura – são, de facto, nossos irmãos e irmãs. Estamos ligados por uma humanidade comum e igual dignidade. Estamos ligados por um apelo comum à amizade com Deus. Deus é quem nos chama a cuidarmo-nos una dos outros ao longo da viagem da vida. O princípio da solidariedade também nos chama a ter um amor especial por aqueles que são pobres, vulneráveis ou oprimidos.
Quando aqueles que não são negros afirmam que «as vidas negras importam», afirmam a solidariedade com aqueles que têm sido vítimas de preconceito, brutalidade e destituição. A autêntica solidariedade, no entanto, não é “noblesse oblige” – a responsabilidade de pessoas “privilegiadas” em agir com nobre generosidade em relação aos menos privilegiados. Solidariedade, com efeito, significa pedir a ajuda de Deus para purificar os nossos corações que toda e qualquer noção de privilégio, quer explícito quer implícito. O pleno significado das palavras «black lives matter» enfraquece noções de privilégio que estão profundamente gravadas na nossa cultura e e muitas mentes e corações.
As palavras «black lives matter» significam coisas diferentes para pessoas diferentes. Mesmo assim essas mesmas palavras devem ressoar em nós, como católicos, e também com todos aqueles que adotam os princípios do ensinamento social católico. Mais do que isso, devem impelir-nos para a ação. Pela sua natureza, o ensinamento social da Igreja não é uma mera declaração de princípios ou plano de ação, mas sobretudo um chamamento a curar as feridas do pecado e da divisão, e renovar a tarefa de construir uma sociedade que seja a civilização da verdade e do amor. É isto que temos de fazer como comunidade eclesial, em parceria com outros. As escolas católicas e os serviços sociais católicos desempenham um papel essencial, tal como as nossas paróquias, nas cidades e para além delas. Com o ensinamento social da Igreja como nosso guia, que possamos, como comunidade católica, construir pontes de entendimento, de maneira a que possamos dizer na sabedoria, verdade e amor, que «as vidas negras importam».