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Cristãos e judeus, crentes de boa memória

O Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto é um momento privilegiado de ética partilhada, uma ocasião que a humanidade se dá para exercitar o discernimento entre o que é bem e o que é mal, para reconhecer que nas negras épocas de barbárie, a responsabilidade das próprias ações – e dos pensamentos que as movem – é pessoal.

Um dia, por isso, em que faz bem a todos recordar: a quem pretenderia esquecer, porque a dor sofrida é demasiado grande, e a quem pretenderia fazer-se esquecer, porque foi cúmplice dessa dor. E recordar faz bem igualmente, e sobretudo, a quem não viveu o inferno da Shoah, nem diretamente nem através de pessoas queridas.

Mas o que significa em particular este Dia de ética universal para judeus e cristãos – para os crentes no Deus bíblico – e para as suas relações? Judaísmo e cristianismo não só têm familiaridade com a memória, mas encontram na categoria do “memorial”, de recordação atualizadora, o coração das celebrações da sua fé. Fazer memória do êxodo do Egito, da libertação da condição de escravidão, é a própria essência da festa da Páscoa judaica.

O Deus de Israel é o Deus que libertou e liberta o seu povo de toda a condição de estrangeiro: cada mandamento dado pelo Senhor no deserto do Sinai vem na sequência daquele «recorda-te que eras estrangeiro na terra do Egito». Se esta memória acompanhar cada instante da tua vida, só poderás comportar-te como o teu Deus misericordioso e compassivo pede que te comportes.

Mas também para os cristãos a Páscoa é memorial de um êxodo decisivo na história da salvação: a passagem de Jesus de Nazaré da morte à vida, o dom feito pelo Messias, Filho de Deus, do seu corpo e do seu sangue, a celebrar observando a sua palavra: «Fazei isto em memória de mim». Por isso, falar de «memória» para judeus e cristãos significa ir ao coração da sua fé, e não apenas reevocar acontecimentos trágicos para que não voltem a repetir-se, ou gestos de profunda humanidade para que sirvam de exemplo.

Neste sentido, o Dia da Memória é também a ocasião para que judeus e cristãos se perguntem sobre o caminho que ainda nos resta percorrer pela estrada do diálogo, do conhecimento recíproco, da obediência ao único Senhor. Como sabemos, este caminho é feito de encontros oficiais, declarações comuns, estudos e aprofundamentos históricos e científicos, de abertura de arquivos, de releitura de acontecimentos; mas é feito também de pessoas concretas, de escuta cordial, de encontros coração a coração, mais ainda do que de cara a cara.

É nesta medida que vimos como a eleição para bispo de Roma de um cardeal proveniente do país da América Latina com a comunidade judaica mais consistente – e, ao mesmo tempo, na qual encontrou refúgio um grande número de artífices da Shoah – e ligado por uma amizade cordial ao reitor do seminário rabínico de Buenos Aires, conferiu aos encontros formais uma conotação de humana simpatia e solidariedade.

«Fazer memória em conjunto» significa também admitir que infelizmente, por mais de 19 séculos, a atitude dos cristãos quanto aos judeus foi modelada pela emulação, pela condenação, pelo desprezo, pela perseguição, ou seja, foi um antijudaísmo que perdurou, nunca contradito de forma decisiva por parte das instituições, dos magistérios, das vozes autorizadas das diversas Igrejas.

Uma atitude, esta do antijudaísmo cristão, que apesar de distinta do antissemitismo, causou repercussões com efeitos potenciadores; antijudaísmo cristão teológico e prático que, de facto, favoreceu o silêncio, a indiferença e a passividade da quase totalidade dos cristãos e das Igrejas na hora do mal absoluto, a hora da Shoah.

Mas é inegável que o papa João XXIII, o Vaticano II e no seu decreto “Nostra aetate” representaram, neste sentido, uma viragem epocal. Após aquela época primaveril, que muitos reencontram na hora atual, é possível para as duas religiões estarem juntas uma da outra, não na forma da sua recíproca negação, mas do reconhecimento, admitindo que nenhuma forma religiosa pode exprimir plenamente a verdade nem a sua unidade integral.

Esta situação requer, no entanto, perseverar num longo caminho que não se contenta em liquidar o antijudaísmo como «erro teológico» e condenar as práticas que ocorreram na história, mas que se torna também exame crítico das suas motivações e inspirações. Caminho longo, cansativo, que comporta um trabalho sobre si próprio, mas caminho absolutamente necessário se não queremos ficar pela cura dos sintomas sem sanar as suas causas.

De há pelo menos uma dúzia de anos, começou igualmente a receção da viragem por parte dos judeus, como é testemunhado seja por documentos e declarações, seja por uma mudança de atitude na vivência de muitas comunidades. Também este dado faz crescer a esperança de uma nova relação que seja confronto e dialética cordial entre as duas religiões.

De resto, o Dia da Memória não recorda só o mal absoluto e as suas vítimas, mas também a «banalidade do bem» daqueles – e foram muitos, mesmo entre os cristãos – que com o risco da própria vida salvaram outras vidas e protegeram os perseguidos, os “Justos entre as Nações». É obrigatório recordar como há alguns dias o papa Francisco recebeu para uma longa conversa pessoal um deles, o Irmão Arturo Paoli, padre ultracentenário desde sempre próximo dos pobres e das vítimas da história: um testemunho do Evangelho que muito sofreu por causa da justiça, mesmo por parte de irmãos na fé que o marginalizaram.

Presenças e encontros como este constituem, assim, um apelo à responsabilidade pessoal de cada pessoa: ninguém poderá voltar a invocar como desculpa a sua ignorância sobre o que aconteceu na história. Cada um de nós é e será responsável, na primeira pessoa, por uma confirmação ou contradição na viragem do diálogo entre judeus e cristãos. Também isto nos é recordado no Dia da Memória.

 

Enzo Bianchi
Prior do Mosteiro de Bose, Itália
In Mosteiro de Bose
© SNPC (trad.) | 27.01.14

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