Card. Gianfranco Ravasi
Cristianismo e Europa: «É necessário lutar contra o esquecimento em relação às próprias raízes»
Sem ofensa para os Estados que recusam a menção das raízes cristãs no preâmbulo da Constituição Europeia, já o grande Goethe afirmava, sem hesitar, que «a língua materna da Europa é o Cristianismo». Também Kant estava convencido que «o Evangelho é a fonte da qual brotou a nossa civilização». À primeira vista, a Europa revela-se certamente como um mosaico, como um verdadeiro arquipélago de culturas: há a região latina, mas também a germânico-báltica; há a região eslava, mas também a celta. A Europa quase nunca teve uma unidade cívica, política ou histórica. Todavia, teve, substancialmente, uma unidade civil, cultural e espiritual muito própria.
A alma dessa unidade interior, muitas vezes embaciada ou coberta de sedimentos, mas nunca extinta, teve, também ela, muitas iridescências: basta pensar na importância da filosofia grega ou na incidência do direito romano, mas também, em épocas mais recentes, na influência do Iluminismo liberal ou do movimento operário, ou seja, da razão e da luta pela justiça social. Todavia, não há dúvida que o núcleo de ouro que mantém unida essa multiplicidade, ou o filtro que joeirou os seus efeitos, ou ainda a estrela polar de referência ou de contraposição, foi o Cristianismo. Tinha razão Paulo VI, ao afirmar simbolicamente que a Europa «nasce da cruz, do livro e do arado». Não por acaso, o termo Europa (nome de origem mítica: uma menina amada por Zeus), caído em desuso, foi precisamente reabilitado por um Papa, Nicolau V, em 1453, infelizmente num momento trágico: aquele que marcou a rutura entre o Ocidente e o Oriente europeu, com a conquista de Constantinopla.
O Cristianismo, com a sua celebração da pessoa e da dignidade humana, com a contemplação (ora) e o empenho social (labora) do monaquismo, com a reflexão da Idade Média e com a cultura gloriosa do Humanismo e do Renascimento, constituía – como já foi dito – o «grande código» conceptual da Europa, a partir, naturalmente, da base bíblica. O próprio Nietzsche, nos trabalhos preparatórios para a sua obra Aurora, reconheceria que, «para nós, Abraão é mais do que qualquer outra pessoa da história grega ou alemã. Entre aquilo que sentimos ao ler os Salmos e aquilo que experimentamos ao ler Píndaro e Petrarca, há a mesma diferença existente entre a pátria e a terra estrangeira».
Naturalmente, é impossível traçar, agora, a planimetria daquela história cultural que tem no Cristianismo quase o seu «grande léxico», para utilizar uma expressão do poeta francês Paul Claudel. Trata-se, com efeito, de uma relação extremamente complexa, muitas vezes dialética e até conflituosa, que, no entanto, é decisiva para compreender a nossa própria identidade.
A Europa de César e a Europa de Deus, ou seja, imanência e transcendência, política e religião, economia e cultura, devem entretecer-se, sem se lesarem mutuamente. A esta luz, o Cristianismo é a raiz do nosso «sentimento religioso, que é o próprio sentimento moral, no seu sentido mais elevado», como afirmava Francesco De Sanctis, espírito «laico» do século XIX (na obra A juventude).
Ao terminar, e precisamente tendo em conta a alma cristã que pulsa sob a superfície da nossa civilização, gostaríamos de lançar um apelo que impeça a dissolução da nossa especificidade, da nossa autenticidade, da nossa gloriosa identidade. É um discurso passível de mil facetas: escolhemos apenas três – tendo em conta os limites desta reflexão apenas provocatória e quase impressionista –, compondo com elas um tríptico ideal no qual todos consigam reconhecer-se e empenhar-se, visto que «não nos podemos dizer cristãos» pelas razões que Benedetto Croce já formulara na sua famosa intervenção de 1942, em La Critica.
Acima de tudo é necessário lutar contra o esquecimento em relação às próprias raízes, aos valores constitutivos e à identidade genuína da Europa. O escritor francês Georges Bernanos, numa sua análise sobre o esvaziamento da alma da nossa sociedade desenvolvida no ensaio La France contre les robots, (França contra os robots), declarava: «Uma civilização não se desmorona como um edifício; seria muito mais exato dizer que se vai esvaziando pouco a pouco da sua substância, até restar apenas a casca.» Corremos o risco de que a Europa se reduza, precisamente, à casca, a um tronco seco, tendo secado a seiva das suas profundas raízes cristãs, votada apenas à virtualidade (os «robôs» que assomavam sobre o panorama europeu dos anos quarenta, em que vivia Bernanos), decalcada sobre modelos extrínsecos, como o americano contemporâneo.
As catedrais e os monumentos gloriosos transformam-se então, como dizia o poeta alemão Wilhelm Willms, em «cascas de caracol vazias», percorridos apenas por distraídos enxames de turistas, privados de coração, de vida, de cânticos, de vozes e de fé. Os nobres sinais da nossa cultura reduzem-se, assim, a meras conchas, sem o eco do mar do passado.
Habituamo-nos de tal modo à pobreza e ao vazio, que já não os vemos como tais, segundo a advertência do filósofo alemão Martin Heidegger na sua obra Sendas interrompidas (Gebrochene wege): «O tempo da noite do mundo é o tempo da pobreza, porque o mundo vai-se tornando cada vez mais pobre. Já se tornou tão pobre que não consegue reconhecer a falta de Deus como falta.» Contra o esquecimento, há que redescobrir a recordação, no seu significado etimológico de «trazer de volta ao coração», ou seja, à consciência da nossa humanidade, os valores nascidos da nossa civilização.
Uma segunda luta a travar é a luta contra a superficialidade, a banalidade, a vacuidade, a vulgaridade e a fealdade. É um retorno à ética e à beleza, que foram as estrelas fixas do céu da civilização europeia ao longo dos séculos, estimulado, precisamente, pela mensagem cristã, um anúncio de justiça e de beleza, de verdade e de luz, de amor e de harmonia.
Tinha razão Benedetto Croce, ao recomendar, num opúsculo de 1935, intitulado Orientações: «Não vos detenhais a pensar para onde é que vai o mundo, mas para onde deveis ir vós, para não espezinhar cinicamente a vossa consciência, para não vos envergonhardes do vosso passado traído.» É necessário um sobressalto de moralidade, um suplemento de alma, uma purificação nas fontes da beleza, realidades que tornaram a Europa um estandarte entre os povos do mundo.
É muitas vezes citado o apólogo que o filósofo cristão dinamarquês Søren Kierkegaard deixou nos seus diários: «O navio está nas mãos do cozinheiro de bordo, e aquilo que o megafone do comandante transmite não é a rota, mas o que comeremos amanhã.»
Cada vez mais aquela espécie de Moloc da comunicação, que é a televisão, lança as suas mensagens a multidões de pessoas de mãos erguidas, em sinal de rendição ou de adoração, mensagens relativas àquilo que devemos comer, vestir, às modas e aos modos de vida. Falta uma voz que indique a rota, o sentido da vida, que nos interpele sobre o bem e sobre o mal, sobre o justo e o injusto, sobre o verdadeiro e o falso, sobre a vida e a morte.
Por fim, há um último empenho necessário que queremos evocar, para voltarmos a ser autenticamente europeus, que é o da luta contra os extremos, os excessos, a espiral das puras antíteses. Recordava-nos a cultura grega que o sábio é um homem meth’orios, «de fronteira», capaz de avançar com inteligência e cautela sobre o cume escarpado de um monte, ao longo do qual se estendem duas vertentes (como o definiu o judeu alexandrino Fílon, no seu escrito Sobre os sonhos). Com efeito, por um lado pode-se deslizar pela vertente de um sincretismo que se transforma em relativismo incolor e que apaga e dissolve a nossa identidade específica. Dostoievski gritava com veemência: «A Europa renegou Cristo. Por isso, e só por isso, está a morrer.» Por outro lado, corremos o risco de nos precipitarmos na vertente do fundamentalismo, que se transforma em exclusivismo aceso e que anula todo o respeito e ignora todo o valor alheio, numa espécie de fuga iconoclástica, ao mesmo tempo feroz e amedrontada, em relação a tudo aquilo que é diferente.
É indispensável, pelo contrário, reencontrar a grande tradição do diálogo, do confronto entre as culturas e as religiões, no espírito daquele Cristianismo genuíno – tantas vezes traído –, que via as semina Verbi, ou seja, as «sementes do Verbo» divino na multiplicidade da busca humana. Conscientes da própria identidade, não nos tornamos integristas, mas capazes de confronto, de «examinar todas as coisas, conservando aquilo que é bom», como sugeria Paulo aos cristãos gregos de Tessalónica (cf. 1Ts 5,21).
Será, portanto, subindo ao longo do curso do rio da história europeia, até às suas nascentes, que conseguiremos repropor uma Europa que não seja apenas geográfica ou económica. E que essa peregrinação ideal, necessária para crentes e agnósticos, é decisiva, recordava-o, de modo sugestivo, um dos maiores poetas do século XX, Thomas S. Eliot, um americano que escolheu a Europa por sua pátria: «Um cidadão europeu pode não acreditar que o Cristianismo seja verdade e, no entanto, aquilo que diz e faz brota da cultura cristã da qual é herdeiro. Sem o Cristianismo, nem sequer teria havido um Voltaire ou um Nietzsche. Desaparecendo o Cristianismo, desapareceria toda a nossa cultura, desapareceria todo o nosso rosto.»
Card. Gianfranco Ravasi
Presidente do Pontifício Conselho para a Cultura
In Quem és Tu, Senhor? - Encontros e desencontros com o Homem que mudou a História, ed. Paulinas
11.04.13



Jesus Cristo: perfil de um comunicador fascinante
"Quem és Tu, Senhor?": ateus ou crentes, escritores ou filósofos, ninguém é indiferente a Cristo, diz presidente do Pontifício Conselho para a Cultura





