Espiritualidade
Da Quaresma à Páscoa
Quarta-feira de Cinzas: És pó e ao pó voltarás
«És pó e ao pó voltarás» (Génesis 3,19).
Quando? Amanhã? No próximo ano? Daqui a 20 anos? Que importa... Esse grão de pó sobre a tua cabeça é o teu destino inelutável. Por isso emprega bem os teus curtos anos, converte-te, volta-te para Cristo, que só ele te pode dar perdão e vida.
É assim que começamos a Quaresma, tempo de conversão e austeridade, mas também tempo de uma alegria contida, a alegria de um coração purificado. Trata-se de nos prepararmos para as festas pascais. A Quaresma é o caminho para uma festa!
«Quando jejuardes, não mostreis um ar sombrio, como os hipócritas, que desfiguram o rosto para que os outros vejam que eles jejuam. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa» (Mateus 6,16).
Escutemos bem estas palavras e apliquemo-las como norma de conduta, não apenas na Quaresma mas em toda a nossa vida cristã, porque ela não é senão uma longa preparação para as festas pascais definitivas.
«Tu, porém, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto, para que o teu jejum não seja conhecido dos homens, mas apenas do teu Pai que está presente no oculto; e o teu Pai, que vê no oculto, há de recompensar-te» (Mateus 6,17-18).
Que grandeza há no silêncio – não o silêncio nefasto da falta mas no da virtude, que é perfeito quando dele não se tem consciencia – e que força se pode extrair dele. A alegria cristã é a simplicidade de uma fé, a seriedade de uma esperança, a vitalidade do amor.
Na Quaresma a liturgia despe-se dos seus aleluias e glórias, convidando-nos a um estreitamento de vida, a um despojamento do supérfluo, a um tempo de germinação escondida e profunda, iluminada sempre por uma esperança e uma espera. Ela convida-nos a entrar em nós mesmos para nos mergulhar nas fontes da vida, em Cristo. Ela incita-nos a reencontrar o nosso verdadeiro rosto num esforço de autenticidade e lucidez, na oração e na caridade, para que, modelados à imagem de Cristo, sejamos capazes de uma comunhão mais profunda no seu mistério.
Sim, porque o mistério de Cristo não é algo que esteja fora de nós; ele é o que nós somos e o que somos chamados a ser. O seu drama é o nosso. A nossa cruz não é outra que a de Cristo, é o seu amor em nós que a carrega. A nossa verdadeira vida é a vida do Ressuscitado em nós. Se a liturgia nos conduz pelos passos de Cristo é para nos ensinar o caminho que é também o nosso.
O drama que se evoca na Quaresma não é apenas a recordação de um acontecimento passado mas a atualização do drama de Cristo, aqui e agora, para nós, que nos coloca diante da opção decisiva da fé e do amor. Procuremos portanto estar em harmonia com o espírito da liturgia deste tempo e acolher a seiva de vida que nos oferece.
Um monge cartuxo
Quinta-feira depois das Cinzas: Chamados a um esforço escondido e solitário de recolhimento
«Tu, porém, quando orares, entra no quarto mais secreto e, fechada a porta, reza em segredo a teu Pai, pois Ele, que vê o oculto, há de recompensar-te» (Mateus 6,6).
Como pessoas de oração, eis o nosso programa para a Quaresma: entrar neste lugar secreto, oculto aos homens, que só o Pai vê. Somos chamados a um esforço de recolhimento e aprofundamento. Um esforço escondido e solitário que ninguém pode fazer por nós. É preciso afastarmo-nos de todas as nossas pequenas preocupações e dependências do amor-próprio; encontrar tempo para entrar nas profundezas do coração, num esforço de abertura e lucidez, e aí rezar ao nosso Pai.
É uma tarefa que exige perseverança e coragem. Porque é preciso aceitar ser o que somos em toda a nossa pobreza. É preciso enfrentar no silêncio as nossas dores secretas de que tentamos fugir pelas nossas atividades e tagarelices. É preciso suportar a obscuridade da fé pois esse lugar secreto também está oculto para nós, que não vemos o Pai. É preciso que nos apoiemos sobre a Palavra de Cristo: «O vosso Pai sabe do que precisais antes que vós lhe pedis». O meu Pai sabe! Que paz encontramos na envolvência do seu amor que abraçamos no segredo, na escuridão, por vezes no sofrimento. Ele sabe, Ele compreende.
Tentemos deixar brotar em nós a oração de Cristo, a oração do Filho. A nossa oração não é uma questão de técnica, truques, emoções subjetivas, mesmo que sublimes, nem de conhecimentos, mesmo que profundos. Ela é algo de infinitamente maior que nós, excede por todos os lados as capacidades do nosso coração. Ela é a oração de Cristo em nós. Uma oração que tem a sua fonte no amor eterno do Filho pelo Pai, que é este amor voltado para o Pai, que dEle recebe tudo, a Ele dando tudo num dom de si perfeito. Uma oração-amor que se exprime na linguagem humana do “Abbá”, paizinho, sobre as lágrimas de Cristo, nas suas noites de contemplação solitária na montanha, em toda a sua vida, sobretudo na sua morte «por nós» no madeiro da cruz. Oração-amor que abraça todos os homens de todos os tempos. Que esta oração-amor que transcende o tempo e o espaço habite em nós, fazendo dos momentos transitórios da nossa existência momentos, de alguma forma, eternos.
A carta de São Paulo aos Filipenses (3, 10-11) resume a essência da nossa Quaresma: «Assim posso conhecê-lo a Ele, na força da sua ressurreição e na comunhão com os seus sofrimentos, conformando-me com Ele na morte, para ver se atinjo a ressurreição de entre os mortos».
Paulo só persegue um objetivo: «Esquecendo-me daquilo que está para trás e lançando-me para o que vem à frente, corro em direção à meta, para o prémio a que Deus, lá do alto, nos chama em Cristo Jesus» (Filipenses 3, 13-14).
A nossa preparação para a Páscoa deve ser motivada por impulso semelhante.
Um monge Cartuxo
Sexta-feira depois das Cinzas: Da penitência das cinzas à alegria pascal
«A penitência, realçada na quarta-feira de cinzas, marca o itinerário da quaresma e a luz da Páscoa ilumina-o e dá-lhe sentido. A páscoa é a meta do nosso peregrinar, a dignidade e a liberdade de filhos de Deus a nossa condição. Da penitência (jejum) de quarta-feira de cinzas até à alegria da páscoa vai o processo de conversão quaresmal. Se for vivido com exigência e sacrifício gera a paz e a alegria.»
«Fazer caminho é a nossa vocação: “Onde moras” perguntaram os primeiros discípulos e perguntamos nós. Onde podemos encontrar Deus, fonte de amor verdadeiro e plenitude de vida? “Vinde e vede” convidou-os Jesus. Fazer caminho é tomar consciência do ponto de partida onde nos situamos e esforçar-se por progredir na bondade, na liberdade interior, no amor.»
A páscoa propõe-nos uma forma rejuvenescida de viver a fé. Não alcançamos, porém, esta novidade cristã sem sacrifício e renúncia. De facto, os ídolos deste mundo são mais atraentes do que o caminho de Deus. Como Jesus no deserto (1º domingo da quaresma) todos somos tentados a procurar a felicidade nos ídolos sedutores do poder, do dinheiro, dos prazeres do mundo. Os valores em moda, a vaidade, a preocupação pela aparência, a satisfação dos instintos naturais levam-nos a relativizar e a confundir o bem e o mal. Por isso, Jesus, que venceu as tentações, recomenda-nos vigilância, escuta da Palavra de Deus, oração, jejum e partilha de bens com os necessitados. São exercícios espirituais cuja prática exige esforço mas que se tornam fonte de enriquecimento espiritual.
«A quaresma convida-nos à oração mais atenta e interior, mais assídua e prolongada. Exercício também muito oportuno é o retiro, tempo de silêncio que favorece o diálogo interior com Deus.»
«A renovação da Aliança com Deus leva-nos a cultivar um olhar de fraternidade para o outro, de onde brotarão a solidariedade e a justiça. (...) A austeridade nos alimentos ou a privação de algumas distracções ou gastos supérfluos na quaresma são um sinal de liberdade e de solidariedade e permitem a partilha com quem precisa de ajuda.»
D. Manuel Pelino, bispo de Santarém
Mensagem quaresmal de 2012
Sábado depois das Cinzas: Pede à Quaresma
«E logo o espírito o impeliu para o deserto. E ele esteve no deserto quarenta dias, sendo tentado por Satanás» (Marcos 1, 12).
Pede à Quaresma que te ensine o caminho do deserto. Para que o teu coração se deixe purificar. Da tentação de tudo possuir. Do egoísmo do não-compromisso. Da ganância do isolamento. Ou da omnipotência de tudo realizar. E querer ser deus. E da ousadia de não saber esperar. E da certeza de possuir a verdade.
Pede à Quaresma que te mostre o caminho do deserto. Onde Jesus te dará o pão da Palavra e do silêncio. No deserto o coração saberá encontrar o silêncio que regenera e reinventa. No deserto o silêncio fará do teu coração uma fonte de onde pode jorrar a verdade de Deus.
«Seis dias depois, Jesus tomou consigo a Pedro, Tiago e João, e os levou, sozinhos, para um lugar retirado sobre uma alta montanha. Ali foi transfigurado diante deles» (Marcos 9, 2).
Pede à Quaresma que te ensine o caminho da montanha. Para que ouses subir ao lugar do encontro com o Deus da vida e da história. Na montanha contemplarás o Rosto. E fixarás nele o olhar. E descobrirás nele o teu rosto. E contemplarás todos os horizontes. Os do teu coração e todos aqueles onde o humano se espraia em tantos desafios.
Pede à Quaresma que te ensine o caminho da montanha. E ousarás descer para que o teu olhar de encantamento incendeie a vida por onde passas. E sejas sinal de ressurreição.
«Chegou, então a uma cidade da Samaria, chamada Sicar… Ali se achava a fonte de Jacob... Uma mulher da Samaria chegou para tirar água.» (cf. João 4, 5-7).
Pede à Quaresma que te ensine o caminho do poço de Sicar. Sentado à beira desse lugar de encontros singulares está Alguém que te oferecerá água viva. Outrora uma samaritana deixou-se enamorar pelo olhar e pelo coração livre de um sedento. Também ela não ousou recusar dessa água que sacia todas as sedes.
Pede à Quaresma que te ensine o caminho do poço de Sicar. Para que Deus se sente contigo e te sacie. E o teu poço-coração possa recriar-se e ser fonte. E alimentar outras nascentes. Também as que teimam em não jorrar. E saciar todas as sedes e as de todos os que se cruzam com a borda do teu poço.
«Partiu, então, e foi ao encontro do seu pai. Ele ainda estava ao longe, quando seu pai viu-o, encheu-se de compaixão, correu e lançou-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos» (Lucas 15, 20).
Pede à Quaresma que te ensine o caminho para o abraço de Deus. O caminho para esse lugar onde a festa nunca termina. O caminho para esse lugar de onde saíste para viver a vida do sem rumo e do sem sentido. Porque querias ser livre. Porque querias escutar as mil melodias que ainda não tinham sido tocadas no teu coração. Em vez disso a vida empurrou-te para um lugar de desespero onde nem as bolotas eram tuas amigas.
Pede à Quaresma que te ensine o caminho para o abraço de Deus. E ousa recomeçar. E ser filho. E vestir o traje da festa que o Amor prepara para ti a todo o instante.
«Não é preciso que vão embora. Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mateus 14, 16).
Pede à Quaresma que te ensine o caminho do coração do irmão. Daquele que está debruçado sobre o próprio coração em sangue. O coração daquele que a vida atirou para a beira da estrada e que agora espera um qualquer samaritano. O coração e a vida daquele que este tempo defraudou espera que tu sejas consolo e abrigo. Também abraço.
Pede à Quaresma que te ensine o caminho do coração do irmão. E ousa partilhar da tua pobreza. Daquilo que mesmo fazendo-te falta suavizará a dor de quem já nada tem. De quem já não tem onde morar ou de que se alimentar. Pede à Quaresma que te ensine o caminho da partilha e o coração do irmão pulsará com renovada esperança.
“Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só: mas se morrer, produzirá muito fruto” (João 12, 24).
Pede à Quaresma que te ensine o caminho de Jerusalém. A cidade santa espera que os teus passos sigam firmes na senda d’Aquele que já fez o mesmo caminhar. Arrisca nesse seguimento. Mesmo que a luz teime em esmorecer dentro de ti. Mesmo que te impeçam de caminhar atrás do Mestre. A cidade santa espera por ti.
Pede à Quaresma que te ensine o caminho de Jerusalém. Porque a vida e a felicidade que tanto desejas também passa por lá. Não ouses voltar as costas à cruz que a cidade te entrega. Segue atrás desse desejo de vida que nenhuma dor será capaz de enterrar. Pede à Quaresma que te ensine o caminho de Jerusalém. E deixa-te morrer. A terra que és será nova quando o milagre do grão de trigo irromper.
P. Manuel Afonso de Sousa, CSh
Diretor espiritual do Seminário Conciliar de S. Pedro e S. Paulo, Braga
1.º Domingo da Quaresma: Morrendo a toda a hora, fui encontrando sempre uma vida melhor
Eu não acredito na morte. Morrendo a toda a hora,
Fui encontrando sempre uma vida melhor.
...
O Próprio Deus tem de morrer, se para ti quer viver;
Como poderias tu herdar a sua vida sem a morte?
...
Vai onde não podes; olha onde não vês;
Escuta onde nada tine; estarás onde Deus fala.
...
Amor é essa pedra filosofal que separa o ouro da lama,
Que de nada faz tudo e em Deus me transforma.
...
A rosa é sem porquê; floresce porque floresce,
Não cuida de si própria, não pergunta se a vemos.
...
A Palavra ressoa em ti mais que na boca do outro;
Se podes calar-te diante dela, no mesmo instante a ouves.
...
Pensas pronunciar o nome de Deus no tempo?
Nem sequer numa eternidade Ele se diz.
...
Só o aniquilamento te eleva acima de ti próprio;
Quem mais aniquilado estiver, maior divindade terá.
...
Dá atenção a tudo o que está abaixo de ti. Se foges do relâmpago do tempo,
Como queres contemplar um relâmpago da eternidade?
...
O céu baixando, vem e faz-se terra;
Quando é que a terra se elevará e se fará céu?
Angelus Silesius
Trad.: José Augusto Mourão
Segunda-feira da primeira semana: Tomai esta Quaresma como possibilidade e não como peso
«“Ser vistos pelos outros” é tendência atávica e espontânea, que nos leva a viver mais superficial que verdadeiramente. O que é de facto grande mal e despiste certo.»
«Não foi o autocomprazimento, a autoimposição dos desejos, a demorada ambição do ter, do parecer ou do poder que nos fez olvidar os outros, bem como o significado autêntico da vida e da convivência?»
«Infelizmente e em tão excessiva medida, o “ser visto” e apreciado pelos outros, segundo os critérios do sucesso, da fama e da moda, pesaram muito nos objetivos, como sobrepesam agora nas frustrações e desistências. Infelizmente assim foi e também pode continuar a ser, se não voltarmos decididamente o olhar para Deus, “mais íntimo do que o nosso próprio íntimo e mais alto do que a nossa maior altura”, como ensinou Santo Agostinho.»
«O nosso mundo precisa de gente assim, que só a Deus dê honra e glória, nisso mesmo se honrando, em humildade sempre e louvor constante. Simples e finalmente assim, vivendo em Cristo para o Pai e para todos, como assinala a Cruz de todas as Quaresmas.»
«Quando nos esvaziarmos de nós para sermos de Deus, haverá lugar para todos, como sempre havia em Cristo. Ele cumpriu inteiramente a vontade do Pai, procurando-nos sem descanso. Olhou-nos fixamente com aquele olhar que recebeu do Pai, ansioso sempre do regresso dos pródigos.»
«Que atenção prestamos ou havemos de prestar, muito concretamente, a quem nos rodeia ou nos espera? Sucessivas notícias nos alertam para muitas gente que vive só e finalmente morre só e desapercebida, mesmo ao pé da porta…. Apelos redobrados solicitam-nos para refazermos vizinhanças, tão esquecidas. E isto mesmo, quando a tecnologia nos permite uma comunicação permanente, que não pode ficar-se por mera distração virtual. Até para não corrermos o risco de termos opinião sobre tudo, conhecendo realmente quase nada… Autojustificações ociosas, que nada resolvem e tudo alienam e adiam.»
«Somos cristãos do nome que nos deram. Mas sejamo-lo de facto, da vida que levamos no Espírito de Cristo (...).»
«Tomai esta Quaresma como possibilidade e não como peso. Concentremo-nos em Deus e nos outros, em quem Ele nos espera. Deus é simples, em si e para nós. Não sejamos nós tortuosos, pelas tristes sendas dos egoísmos mal desculpados. Deus está aqui: adoremo-Lo pois. Cristo está nos outros, sirvamo-Lo com alegria.»
«Concretizemos a atenção aos outros no aprofundamento ou recriação de vizinhanças, do modo mais positivo e prático que possa ser e a oração nos inspire, como acontece naqueles trechos evangélicos em que Jesus parte da oração para a ação imediata junto deste ou daquele, interpelando ou servindo.»
D. Manuel Clemente
Homilia na missa de Quarta-feira de Cinzas, 22.2.2012, Sé do Porto
Terça-feira da primeira semana: Multiplicar a generosidade e a solidariedade
Se queremos ser nómadas de Deus, se queremos viver dele, temos de criar uma liberdade muito grande face às coisas. A verdade é elas nos aprisionam. O que possuímos rapidamente nos possui a nós. Para o cristão um estilo de vida frugal testemunha melhor do que mil palavras a Fé em Deus. Estamos mergulhados num tempo em que tudo nos empurra para a competição... onde o desnecessário é-nos impingido pela publicidade como absolutamente necessário à nossa felicidade.
O Evangelho ensina-nos não a amontoar, mas a multiplicar. Jesus revela-nos as possibilidades de vida que um único pão esconde. Com um só pão podemos fazer muita coisa, se aprendermos a arte de multiplicar a vida. Multiplicar a generosidade, a solidariedade, a ternura, a capacidade de sofrer com os outros e de se pôr no seu lugar...
Alimentamo-nos uns dos outros. Somos uns para os outros, na escuta e na palavra, no silêncio e no riso, no dom e no afecto, um alimento necessário, pois é de vida (e de vida partilhada) que as nossas vidas se alimentam.
P. José Tolentino Mendonça
In Pai-nosso que estais na terra
Quarta-feira da primeira semana: Redescobrir a oração
A oração é um exercício fundamental na busca pela qualidade de vida. Nas indicações que não podem faltar, especialmente para a vida cristã, estão a prática e o cultivo disciplinado da oração. É um exercício que tem força incomparável em relação às diversas abordagens de autoajuda, como livros e DVD, muito comuns na atualidade.
A crise existencial contemporânea, em particular na cultura ocidental, precisa redescobrir o caminho da oração para uma vida de qualidade. Equivocado é o entendimento que pensa a oração como prática exclusiva de devotos. A oração guarda uma dimensão essencial da vida cristã. Cultivar essa prática é um segredo fundamental para reconquistar a inteireza da própria vida e fecundar o sentido que a sustenta.
É muito oportuno incluir entre as diversificadas opiniões, junto aos variados assuntos discutidos quotidianamente, o que significa e o que se pode alcançar pelo caminho da oração. Perdê-la como força e não adotá-la como prática diária é abrir mão de uma alavanca com força para mover mundos. A fé cristã, por meio da teologia, tem por tradição abordar a importância da oração ao analisar a sua estrutura fundamental, seus elementos constitutivos, suas formas e os modos de sua experiência. Trata-se de uma importante ciência e de uma prática rica para fecundar a fé.
A oração tem propriedades para qualificar a vida pessoal, familiar, social e comunitária. Muitos podem desconhecer, mas a oração pode ser um laço irrenunciável com o compromisso ético. É prática dos devotos, mas também um estímulo à cidadania. Ao contrário de ser fuga das dificuldades, é clarividência e sabedoria, tão necessários no enfrentamento dos problemas. Na verdade, a oração faz brotar uma fonte interior de decisões, baseadas em valores com força qualitativa.
A oração como prática e como inquestionável demanda, no entanto, passa, por razões socioculturais, por uma crise. Aliás, uma crise numa cultura ocidental que nunca foi radicalmente orante. O secularismo e a mentalidade racionalista se confrontam com aspectos importantes da vida oracional, como a intercessão e a contemplação. Diante desse cenário, é importante sublinhar: paga-se um preço muito alto quando se configura o caminho existencial distante da dimensão transcendente. O distanciamento, o desconhecimento e a tendência de banir o divino como referencial produzem vazios que atingem frontalmente a existência.
É longo o caminho para acertar a compreensão e fazer com que todos percebam o horizonte rico e indispensável da oração. Faz falta a clareza de que existem situações e problemas que a política, a ciência e a técnica não podem oferecer soluções, como o sentido da vida e a experiência de uma felicidade duradoura. A oração é caminho singular. É, pois, indispensável aprender a orar e cultivar a disciplina diária da oração. Tratar-se de um caminhar em direção às raízes e ao essencial. Nesse caminho está um remédio indispensável para o mundo atual, que proporciona mais fraternidade e experiências de solidariedade.
A lógica dominante da sociedade contemporânea está na contramão dessa busca. Os mecanismos que regem o consumismo e a autossuficiência humana provocam mortes. Sozinho, o progresso tecnológico, tão necessário e admirável, produz ambiguidades fatais e inúmeras contradições. Orar desperta uma consciência própria de autenticidade. Impulsiona à experiência humilde do próprio limite e inspira a conversão. É recomendação cristã determinante dos rumos da vida e de sua qualidade. A Igreja Católica tem verdadeiros tesouros, na forma de tratados, de estudos, de reflexões, e de indicações para o cultivo da oração, que remetem à origem do cristianismo, quando os próprios discípulos pediram a Jesus: “Ensina-nos a orar”. É uma tarefa missionária essencial na fé, uma aprendizagem necessária, um cultivo para novas respostas na qualificação pessoal e do tecido cultural sustentador da vida em sociedade.
D. Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo de Belo Horizonte, Brasil
Quinta-feira da primeira semana: A vida vem da morte e o que é do nada
Amo muito a beleza, mas em verdade só a digo bela
Se a vejo estar coberta por espinhos.
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Um coração que se contente com o lugar e o tempo
Não conhece na verdade a sua imensidade.
...
A palavra eterna ainda hoje nasce.
Onde? Onde tu em ti mesmo te perdeste.
...
Amigo, onde quer que estejas, não te deixes lá ficar.
É preciso incessantemente partir de luz em luz.
...
Quem o diria? Da treva provém a luz,
A vida vem da morte e o que é do nada.
...
A chuva não cai para si, o sol para si não brilha;
Tu também para os outros és criado, e não para ti.
...
A luz da glória brilha em plena noite,
Quem pode vê-la? Um coração que tem olhos e vigia.
...
Tu não irás para o céu (deixa a agitação)
Se tu próprio antes disso não fores já um céu vivo.
...
Uma centelha fora do fogo, uma gota fora do mar,
Homem, que podes tu ser sem teu regresso?
...
Amigo, já basta. Caso queiras ler mais,
Vai, torna-te tu próprio a escrita e a essência.
Angelus Silesius
Trad. José Augusto Mourão
Sexta-feira da primeira semana: Ele rasga o coração de homem para reencontrar a criança
o Senhor provoca a minha voz
a sua palavra rasga-me o coração
dir-lhe-ei que o seu passo me esmaga?
não, o Senhor está a lavrar o seu campo
em mim a vida respondeu
a vida que geme falou
como uma árvore testemunha perante o céu
da luz investida na terra,
assim a minha voz de homem testemunha perante o Senhor
da sua descida ao seio da criação
e a palavra de Deus suscita a minha memória,
a sua humilhação suscita o meu canto
acrescento-o ao grito da vida,
porque eu sou uma terra do Senhor
ele congrega todas as minhas idades,
rasga o coração de homem para reencontrar a criança
atravessa os meus bens em direção ao meu apelo de pobre
o do meu nascimento e o das proximidades do meu fim
o segredo do Senhor escavou o meu segredo
que a sua palavra crie raízes!
P. de la Tour du Pin
Trad. José Augusto Mourão
Sábado da primeira semana: Oração, humildade e domínio da mente
Dizia um ancião: «Se o teu pensamento mora em Deus, a força de Deus mora em ti».
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Se fazes o teu trabalho manual na tua cela e chega a hora da oração, não digas: «Acabarei primeiro de fazer os meus ramalhetes e o meu pequeno cesto e depois irei rezar», mas deves erguer-te imediatamente e prestar a Deus o dever da oração; se o não fizeres, pouco a pouco adquirirás o hábito de descurares o ofício divino e a oração e a tua alma ficará deserta de obras espirituais e corporais. Porque é logo de madrugada que deves demonstrar a tua vontade.
...
Disse o abade Pastor: O princípio de todos os males é a desatenção».
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Ao ergueres-te após o sono, antes de tudo e em primeiro lugar, que a tua boca dê glória a Deus, entre cânticos e salmos. Porque a primeira preocupação que ocupar o teu espírito a partir da alba irá continuar a moer dentro dele como uma mó para o resto do dia, seja trigo ou seja joio. Por isso sê sempre o primeiro a lançar o trigo, antes que o teu inimigo lance o joio.
...
Perguntou um irmão a um ancião: «Que devo fazer, já que a vaidade não para de me importunar?». E o ancião respondeu-lhe: «Tens razão, porque foste tu quem fez o céu e a terra». O irmão, sentindo-se arrependido, disse: «Perdoa-me, eu não fiz coisa nenhuma».
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Disse um ancião: «Sem dominar os lábios é impossível ao homem progredir numa só virtude que seja; porque a primeira das virtudes é saber dominar os lábios».
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Disse o abade Pastor: «Prosternai-vos perante Deus, não vos deis importância e mandai embora a própria vontade: estes são os meios com que a alma pode trabalhar».
...
Perguntaram ao abade Elias: «De que modo poderemos salvar-nos nestes tempos?». E ele respondeu: «Salvar-nos-emos se não tivermos estima por nós próprios».
...
O abade Ammon interrogou o abade Pastor sobre os pensamentos impuros e os vãos desejos do coração humano. E o abade respondeu: «Pode um machado vangloriar-se de conseguir fazer alguma coisa se não houver aquele que o utiliza para cortar ou rachar? Também tu não deves cultivar tais pensamentos e eles não terão qualquer influência em ti!».
...
Um irmão interrogou um ancião e disse-lhe: «Que queres que faça a estes maus pensamentos que me invadem o coração?». E o ancião respondeu-lhe: «Pensa nas vestes que colocas em cima dum banco e ali permanecem esquecidas, sem que ninguém lhes pegue ou as retire de lá: acabarão esquecidas e não mais terão utilidade para ninguém. Mas se tu tratares delas e as vestires constantemente, as mesmas durarão e não se estragarão. Assim acontece com os maus pensamentos, se lhes falares e neles te comprazeres, eles estenderão cada vez mais as suas raízes no teu coração, crescerão e nunca mais te largarão. Mas se, pelo contrário, não falares com eles e, ainda que eles te comprazam, lhes tiveres ódio, eles acabarão por definhar e sairão do teu coração».
Ditos e feitos dos Padres do Deserto, ed. Assírio & Alvim
2.º Domingo da Quaresma: Viver todos os dias a fragilidade, a tentação, a confiança
Somos chamados a viver o dom de Deus, até ao fim, na fragilidade, na fraqueza, na confiança e na tentação. Podem variar de género os problemas que vivemos, ou de frequência, ou de intensidade, mas acompanhar-nos-ão sempre. As tentações vão existir sempre. O que muda, num processo de maturação humana e espiritual, é a nossa maneira de acolhê-las. É pelo discernimento da natureza das tentações que nos assaltam que compreendemos, muitas vezes, a nossa singularidade e diversidade, o real impacto da vida em nós, a nossa realidade submersa e os seus ilegíveis vestígios. A tentação humaniza-nos. É uma via. São Paulo bem rezou três vezes ao Senhor para que afastasse o espinho da sua carne (2 Coríntios 12,8). Mas em vão. A resposta foi: «basta-te a minha graça, porque a força manifesta-se na fraqueza.» (2 Coríntios 12,9).
Mestre Eckhart explica o «grande proveito e utilidade» das tentações: fazendo-nos travar um interminável combate, fazendo-nos passar à resistência vigilante elas, mesmo se nos humilham, mantêm-nos centrados em Deus.
É isso mesmo: o sonho da perfeição pode ainda ser um caminho que trilhamos pela superfície ou constituir uma ilusão que nos impede de aceder ao verdadeiro e paradoxal estado da vida. Levamos tanto tempo até perder a mania das coisas perfeitas, isentas da trepidação do real, e nos curarmos deste impulso que nos exila no conforto das idealizações, ou vencermos o vício de sobrepor à realidade um cortejo de falsas imagens!
Thomas Merton escreve, de forma emocionada, alguma coisa que nos devia fazer parar: «O Cristo que nós descobrimos realmente em nós mesmos distingue-se daquele que nos esforçamos, em vão, por admirar e idolatrar em nós. Bem pelo contrário: Ele quis identificar-se com aquilo que nós não amamos em nós próprios, porque Ele tomou sobre si a nossa miséria e o nosso sofrimento, a nossa pobreza e os nossos pecados… Jamais encontraremos paz se dermos ouvidos à cegueira que nos diz que o conflito está superado. Só teremos paz se formos capazes de escutar e abraçar a dança contraditória que agita o nosso sangue…É aí que se escutam melhor os ecos da vitória do Ressuscitado».
São Paulo compreendeu-o, porque responde: «De bom grado, portanto, prefiro gloriar-me nas minhas fraquezas, para que habite em mim a força de Cristo. Por isso me comprazo nas fraquezas, nas afrontas, nas necessidades, nas perseguições e nas angústias, por Cristo. Pois quando sou fraco, então é que sou forte.» (2 Coríntios 12,9-10). Paulo testemunha a Fé como uma hipótese paradoxal: quando sou fraco, então é que sou forte. A Fé resiste e matura nas necessidades, nas angústias, nas afrontas, nos sofrimentos, isto é, no interior de uma existência assaltada pela tentação. Não se trata de escamotear ou de superar essa experiência: é no interior dessa experiência, que eu sou forte. É um paradoxo, claro. Mas é aí que a própria experiência espiritual se realiza.
O grande obstáculo a uma vida de Deus não é a fragilidade e a fraqueza, mas a dureza e a rigidez. Não é a vulnerabilidade e a humilhação, mas o seu contrário: o orgulho, a autossuficiência, a autojustificação, o isolamento, a violência, o delírio de poder. Dizum poema de Lao Tsé: «Os homens quando nascem são tenros e frágeis. A morte torna-os duros e rijos. As ervas e as árvores quando nascem são tenras e frágeis. A morte torna-as esquálidas e ressequidas. O duro e o rígido conduzem à morte. O fraco e o flexível conduzem à vida».A força de que verdadeiramente precisamos, a graça de que necessitamos, não é nossa, mas de Cristo E Ele dá-nos o exemplo do que é abraçar inteiramente a humanidade no seu dramatismo, já que foi «nas suas feridas que encontramos a cura» (Isaías 53,5).
P. José Tolentino Mendonça
Pai-nosso que estais na terra, ed. Paulinas
Segunda-feira da segunda semana: Peregrinar ao coração
Assumir-se peregrino é, antes de mais, aceitar peregrinar ao próprio coração. Só a partir daí podemos caminhar com outros como experiência de autêntica fraternidade. (...) Todos nós, no decorrer da nossa história, em muitos momentos fomos feridos. Como resposta defensiva a estas situações fomos encontrando, ainda que inconscientemente, os nossos próprios mecanismos de proteção; estes permitiram-nos “sobreviver”, mas a partir de uma ilusão, de uma não verdade no olhar sobre nós e sobre os outros, transformando-se assi, e, obstáculo no acesso ao nosso eu profundo e, como consequência, no acolhimento confiante e gratuito do outro. Estes mecanismos de proteção são identificados, por exemplo, como medos, inseguranças ou falsas seguranças, e, até mesmo, bloqueios.
Peregrinar ao coração – entrar no deserto – é tantas vezes um processo doloroso, porque marcado pelo encontro com estes “fantasmas” que nos habitam. No entanto, o afrontar esta realidade é condição de acesso ao nosso eu profundo, “lugar” da nossa identidade de seres criados à imagem e semelhança de Deus, “lugar” a partir do qual nos experimentamos em harmonia com o Todo, e por isso, “lugar” onde nos sentimos livres. Só a partir daqui é possível o encontro autêntico com o outro, é possível a escuta. (...)
O outro, particularmente aquele que nos parece mais estranho, aquele que é mais diferente, é frequentemente o mais revelador das nossas próprias sombras e, por isso, o mais decisivo do ponto de vista do crescimento pessoal. As feridas que trazemos em nós, fazendo-nos sofrer, a nós e àqueles que connosco se relacionam, contêm em si um potencial imenso de vida quando, precisamente, a partir daí, nos abrimos à infinita ternura de Deus.
A fragilidade, na experiência do encontro com Jesus, é o lugar privilegiado da Graça. Zaqueu testemunha-o de forma muito expressiva: «Senhor, vou dar metade dos meus bens aos pobres e, se defraudei alguém em qualquer coisa, vou restituir-lhe quatro vezes mais» (Lucas 19, 8). Quando entramos na nossa sombra e aí nos experimentamos amados tal como somos, o nosso coração convertido pela misericórdia dilata-se para além de todas as fronteiras.
Carlos Maria Antunes
"Atravessar a própria solidão", ed. Paulinas
Terça-feira da segunda semana: O único tempo que temos é agora
Prestar atenção porquê? Porque amiúde andamos distraídos. Ou, pior, olhamos indiferentes, sem ver. Ou pior ainda: olhamos invejosos, com aquele olhar vesgo que mata e petrifica. A atenção e o espanto perante a natureza, há muito tempo que ciência moderna os matou. Prestar atenção, observar o mundo como quem o vê pela primeira vez, em silêncio e em jejum, como que saído das mãos de Deus, é cultivar um sadio e franciscano reencantamento do mundo. (...)
Prestar atenção é também “ler com verdade dentro de si mesmo”, descobrir-se antecedido numa relação de doação de próprio ser. E a essência do ser é comunhão, afirmava o trapista Thomas Merton. (...)
Para a experiência cristã, a hora que vai chegar é sempre “agora”: “Mas vai chegar a hora, e é agora…” (Jo 4, 23: Sed venit hora, et nunc est…). É “agora” para a Samaritana de Sicar, junto ao poço de Jacob, e é igualmente “agora” para o Samaritano que não passou adiante e foi o próximo do homem que descia de Jerusalém para Jericó, e é sempre “agora” para cada um de nós. O único tempo que temos é agora. Entre o já e o ainda-não pascais, a Quaresma é também, agora, o pretexto litúrgico e pastoral para todos os dias prestarmos “atenção uns aos outros” e nos “estimularmos ao amor e às boas obras”.
João Rosa
Professor da Universidade da Beira Interior
In Agência Ecclesia
Quarta-feira da segunda semana: Vivência espiritual dos Cartuxos na finalidade, preparação e normas
Finalidade da Quaresma
Para o monge cartuxo, aliás como para todo e qualquer cristão, a finalidade última de toda a Quaresma é ser uma preparação para a Páscoa. Não para um simples ver, recordar e presenciar em espírito a Paixão e Ressurreição do Senhor, senão para ter nelas uma vivificante “participação”, uma real “comemoração”, que nos permita retomar a vida cristã, se porventura estava perdida ou cortada, ou intensificá-la ao máximo se vivida com sinceridade.
A meta dessa vital “comemoração” será uma “vida nova” com Cristo, que ficará plasmada: numa maior intimidade com Ele, numa efetiva renúncia a Satanás, às suas obras e pompas e numa fidelidade sempre crescente a Cristo. É por isso que no cume da Grande Vigília Pascal renovaremos as nossas promessas batismais e votos monásticos.
Preparação
Porém, essa vida nova em Cristo, a Páscoa, “não se improvisa como realidade a viver; nem sequer pode ser entendida nas suas urgências santificadoras, senão em proporção e à medida em que se tenha vivido durante toda a Quaresma a eficácia transformante de todos os elementos desta instituição” (Teologia e espiritualidade do Ano Litúrgico, p. 295).
Para chegarmos a esse fim, durante seis semanas o nosso espírito submete-se a uma “formação” e “preparação” litúrgicas vividas com intensidade e lealdade: a oração mais intensa, a abnegação pessoal, o jejum corporal, as obras de piedade e uma intensa participação litúrgica serão os elementos monásticos que facilitarão a purificação e a disponibilidade do nosso espírito para viver em plenitude o mistério de Cristo na sua Paixão, Morte e Ressurreição. Porque a Quaresma não tem sentido se não levar para uma Páscoa real, viva, participada no nosso interior e esplendente em nós como o mistério da Luz, da Vida.
Normas estatuárias
Para compreendermos a vivência quaresmal cartusiana, nada melhor do que lembrarmos alguns pontos dos Estatutos em que se expressa a dimensão cristológica do monaquismo cartusiano. A vida do monge não pode ficar numa mera e pessoal contemplação admirativa do Mistério de Cristo, embora se pense que ela está cheia de amor. Não basta só a contemplação interior. Esta deve manifestar-se também externamente para que tenha realmente uma dimensão cristológica. É por isso que os Estatutos Cartusianos vão traçando desde o começo até o fim aspetos concretos da nossa vida e observância em que devemos imitar a Cristo.
A respeito da nossa vivência quaresmal, mencionemos só estes pontos chaves:
- “O próprio Jesus, cuja virtude não podia encontrar apoio no retiro nem obstáculo na sociedade dos homens, contudo, para nos instruir com o seu exemplo, antes de começar a sua pregação e os seus milagres, quis submeter-Se em certo modo a uma prova de tentações e jejuns na solidão. D’Ele refere a Escritura que, deixando a multidão dos discípulos, subia sozinho ao monte para orar. E, quando já estava iminente o tempo de Paixão, deixou os Apóstolos para orar a sós, dando-nos com isto o melhor exemplo de quanto a solidão favorece a oração, pois não quer orar acompanhado, nem sequer dos seus Apóstolos” (Est. Prólogo, n. 9).
- “Não devemos passar aqui em silêncio um mistério que merece toda a nossa atenção: foi ele, o Senhor e Salvador do género humano, que Se dignou mostrar-nos em sua própria pessoa o primeiro modelo vivo da nossa Ordem, quando, a sós no deserto, Se entregava à oração e a exercícios da vida interior, macerava o corpo com jejuns, vigílias e outros frutos de penitência e vencia as tentações do inimigo com as armas do espírito” (Ib. n. 10).
- “Cristo sofreu por nós, deixando-nos o exemplo, para que sigamos os seus passos. Assim fazemos quando aceitamos as provas e angústias da vida e quando, na liberdade dos filhos de Deus, abraçamos a pobreza e renunciamos à vontade própria. Mas, segundo a tradição monástica, devemos também seguir a Cristo no seu jejum do deserto, castigando o corpo e mantendo-o em servidão, para que a nossa alma resplandeça com o desejo de Deus” (Est. c.7. n. 1).
Um Cartuxo da Scala Coeli
Quinta-feira da segunda semana: A Quaresma cartusiana
Embora os textos transcritos deixem bem traçado o caminho que o monge cartuxo deve percorrer durante a sua Quaresma, todavia digamos duas palavras sobre essa Quaresma cartusiana; não no sentido que esta seja diferente da Quaresma de todo o cristão, mas sim pelo facto que ela traz todos os anos uma peculiar “mensagem litúrgica” para quem a vive intensamente.
Pelo facto mesmo de ser a Quaresma uma intensa preparação para a Páscoa, um tempo de reforma interior, uma época em que a nossa luta contra o inimigo comum deve acentuar-se, e umas semanas em que somos especialmente chamados a imitar o nosso Mestre acompanhando-O na oração, no jejum, no retiro e na penitência, foi tida em grande estima por todos os monges e vivida com o maior fervor e piedade. Se o ideal do monge é viver a sua vocação cristã com todo o radicalismo, é evidente que esse ideal abrange, dir-se-ia dum modo especial, a vivência quaresmal.
De facto, é daqui que brotaram as diversas práticas quaresmais nas Ordens monásticas de todos os tempos, proporcionando ou impondo aos monges meios especiais para essa tarefa: retiro mais intenso, leituras, orações especiais, abstenção de visitas e correspondência epistolar, penitências corporais, mortificação interior… Se a santidade foi e é sempre incompatível com a satisfação dos sentidos e apetites, é evidente que a mortificação corporal e espiritual impõe-se a todo o aspirante à santidade. Pretender santificar-se doutro modo seria uma ilusão, uma quimera.
Os legisladores monásticos consideraram a penitência interior e exterior como necessária, embora nenhum deles tivesse a intenção de mortificar seus monges, pelo gosto de os ver padecer. As suas prescrições dirigiam-se sobretudo para a ordem moral, pois a austeridade da vida e as exigências do espírito são a melhor e salutar penitência. E todo o cristão, monge ou não, precisa duma purificação pessoal em maior ou menor grau. E se insistem em práticas positivas é porque estas estão dirigidas para o mais profundo da alma. Assim fala-se: da oração mais intensa, da compunção e da pureza do coração, da lectio divina como alimento da alma e da liturgia como o melhor caminho para a busca e o encontro com Deus.
Um Cartuxo de Scala Coeli
Sexta-feira da segunda semana: Práticas dos Cartuxos
Na Cartuxa, os Estatutos encarregam-se de dar certas normas práticas para a vivência quaresmal. Assim por exemplo, como especial oração quaresmal recitamos todos os dias os sete Salmos Penitenciais com as Ladainhas dos Santos, e cada dia, menos aos domingos, recitamos, nas Vésperas, o salmo 50, eminentemente penitencial.
No plano dos jejuns, temos o “jejum da Quaresma”. Este consiste em tomar uma só refeição forte, ao meio-dia e uma ligeira colação pela tardinha. Nas sextas-feiras o jejum é pão e água para aqueles que podem fazê-lo. Além da abstinência perpétua de carne, na Quaresma acrescentamos a abstinência de lacticínios, quer dizer, do leite e seus derivados. Entre as refeições, não comemos nem bebemos nada salvo a água.
Todavia, também sobre esta observância quaresmal vigora a tradicional discrição cartusiana e a maternal humanidade das Regras: “Se em qualquer circunstância ou com o tempo, um monge verificar que alguma das nossas observâncias ultrapassa as suas forças (…) combine com o Prior, em filial confiança, a mitigação que lhe convém, ao menos por algum tempo. Mas, tendo sempre em conta o apelo de Cristo, veja o que pode fazer; e o que não pode dar ao Senhor pela observância comum, ofereça-o doutro modo” (Est. c. 7. n. 1).
Não é preciso dizer que todos devem estar abertos à inspiração do Espírito Santo, para o caso de Este sugerir ou pedir algo especial. Contudo, a tradição monástica sempre teve em conta o inconveniente que pode existir nas penitências voluntárias não regulares e nos fervores indiscretos. De facto, o demónio não tenta o monge só com coisas más, mas também com coisas boas: mais rigor, mais mortificação, maiores penitências corporais… Os Estatutos Cartusianos, seguindo nisso as normas de Cassiano e depois aceites pela Regra do Mestre e de São Bento, advertem claramente: “Nenhum de nós se entregue a exercícios de penitência além dos indicados nestes Estatutos, sem o conhecimento e a aprovação do Prior. Mas, se este quiser fazer a algum de nós uma concessão em alimento, sono ou qualquer outra coisa, ou impor algo duro e penoso, não temos o direito de recusar, não aconteça que, resistindo-lhe, estejamos a resistir, não a ele, mas ao Senhor, de quem ele faz as vezes junto de nós. Por numerosas e variadas que sejam as nossas observâncias, não esperamos delas qualquer proveito sem o bem da obediência” (c. 7. n. 8).
Um Cartuxo de Scala Coeli
Sábado da segunda semana: a ascese do monge Cartuxo
Na almejada transformação quaresmal, a parte principal, não era preciso indicá-lo, pertence a Deus, à ação do Espírito Santo. Contudo, essa ação divina não prescinde, antes reclama a colaboração ascética do monge. Em consequência, este procurará a purificação:
- da mente, através duma oração mais intensa, para entrar melhor no pensamento de Deus; quer dizer, na aceitação do Seu querer a respeito de nós. É a “metanoia” que pregava o Batista como preparação para o reino de Deus;
- do coração, mediante a abnegação de nós mesmos e a mortificação das nossas tendências pecaminosas. É do coração donde sai todo o mal que fazemos (cf. Mt 15. 18-19);
- do corpo, através da mortificação corporal que nos ajuda a nos libertar da lei do pecado que vive em nós. Esta mortificação está reclamada também pelos pecados dos membros do Corpo Místico a que pertencemos.
Dimensão eclesial da nossa Quaresma
O fruto primeiro desta purificação quaresmal será recuperar uma viva consciência da nossa inserção em Cristo, crescermos na nossa identificação com Ele e sermos com Ele “redentores” de toda a Humanidade.
Deste modo, a Quaresma cartusiana adquire uma esplêndida dimensão eclesial: jejuamos em favor de toda a Igreja, de todos os homens, embora só Deus, e não aqueles, deve estar a par do que acontece no nosso espírito; reside aí o plano mais profundo da mística cristã. As palavras de São Paulo: “O amor de Cristo nos impele!” (2 Cor 5. 14), valem também para o Cartuxo, do mesmo modo que aquelas outras: “Cumpro no meu corpo o que falta à Paixão de Cristo, pela Sua Igreja”(Col 1. 24). De facto, os Estatutos lembram esta dimensão quando advertem que “a união com Deus não nos fecha em nós mesmos (…) antes abre o nosso espírito e dilata o nosso coração para abrangermos o mundo inteiro e o mistério da Redenção de Cristo” (c. 34. 2); e também: “Pela penitência tomamos parte na Obra redentora de Cristo, que sobretudo com a oração ao Pai e a Sua imolação salvou o género humano cativo e oprimido pelo pecado” (ib. 4).
Um Cartuxo de Scala Coeli
3.º Domingo da Quaresma: silêncio
Os seres humanos têm a necessidade vital do tempo e do silêncio interior, para refletir e examinar a vida e os seus mistérios, e para crescer de modo gradual até atingir um domínio amadurecido de si mesmos e do mundo que os rodeia. A compreensão e a sabedoria são o fruto de uma análise contemplativa do mundo, e não derivam de uma simples acumulação de factos, por mais interessantes que sejam. São o resultado de uma introspeção que penetra o significado mais profundo das coisas, na relação de umas com as outras e com o conjunto da realidade.
João Paulo II, 12.5.2002
Um aspeto que é preciso cultivar com maior compromisso, no interior das nossas comunidades, é a experiência do silêncio. Temos necessidade dele "para acolher nos nossos corações a plena ressonância da voz do Espírito Santo, e para unir estreitamente a oração pessoal à Palavra de Deus e à voz pública da Igreja". Numa sociedade que vive de maneira cada vez mais frenética, muitas vezes atordoada pelos ruídos e perdida no efémero, é vital redescobrir o valor do silêncio. Não é por acaso que mesmo para além do culto cristão, se difundem práticas de meditação que dão importância ao recolhimento. Por que não começar, com audácia pedagógica, uma educação ao silêncio no contexto de coordenadas próprias da experiência cristã? Que esteja diante dos nossos olhos o exemplo de Jesus, que "tendo saído de casa, se retirou-se num lugar deserto para ali rezar" (Mc 1, 35).
João Paulo II, 4.12.2003
Na Cruz vemos que o silêncio de Jesus é a sua última palavra ao Pai, mas vemos também como Deus fala através do silêncio. De facto, a dinâmica feita de palavra e silêncio, que caracteriza a oração de Jesus, manifesta-se também na nossa vida de oração em duas direções. Por um lado, ensina-nos que a escuta e o acolhimento da Palavra de Deus exige o silêncio interior e exterior, afastando-nos de uma cultura barulhenta que não favorece o recolhimento. Por outro lado, há também o silêncio de Deus na nossa oração, que muitas vezes gera em nós a sensação de abandono. Mas, olhando para o exemplo de Cristo, sabemos que esse silêncio não é ausência: Deus está sempre presente e nos escuta. E, assim, podemos dizer que Jesus nos ensina a rezar, não só com a oração do Pai nosso, mas também com o exemplo da sua própria oração, indicando-nos que temos necessidade de momentos tranquilos vividos na intimidade com Deus, para escutarmos e chegarmos à «raiz» que sustenta e alimenta a nossa vida.
Bento XVI, 7.3.2012
Segunda-feira da terceira semana: A liturgia é o melhor meio para viver intimamente a Quaresma
“O monge é um “ser litúrgico”, não pelo seu “fazer”, senão pelo seu “ser”; quer dizer, não por seguir passo a passo o desenvolvimento exterior da Liturgia, senão por assumir interiormente o mistério litúrgico como conteúdo total da sua vida e modelo da sua contemplação” (A Igreja em plenitude, p.198).
Por isso dizemos que o melhor meio para viver a Quaresma é a íntima vivência da liturgia quaresmal. Os Estatutos lembram-nos: “Em todas as celebrações litúrgicas Cristo ora por nós, como nosso Sacerdote, e em nós, como nossa Cabeça, de tal modo que reconhecemos n’ Ele as nossas vozes, e em nós a Sua” (Est. 3. 7).
“Os monges, quando celebram o Oficio Divino, são a voz e o coração da Igreja. É ela que, por eles, apresenta ao Pai, em Cristo, o culto de adoração, louvor, suplica, e humildemente pede perdão para os pecados. Esta função de tanta importância, os monges exercem-na em toda a sua vida; mas a um título mais explícito e público, na santa Liturgia” (Id. 21. 8).
“O propósito da nossa vida monástica compromete-nos a estarmos sempre vigilantes na presença de Deus; eis porque a nossa vida inteira é como uma liturgia que, em certos momentos se torna mais manifesta, quer levemos diante de Deus a oração oficial da Igreja, quer sigamos o movimento do nosso coração. É sempre o mesmo Senhor que, em nós, exerce o seu sacerdócio, rezando ao Pai no único Espírito” (ib. 15).
Os elementos da liturgia quaresmal cartusiana (antífonas, responsórios, leituras, melodias, etc.) são realmente uma obra de arte, uma joia do carisma oracional da Igreja. Nós conservamos a celebração do Ofício Divino tal como no-la legaram os nossos fundadores (1084), com os seus esquemas e formulários, mas com preciosos enriquecimentos aportados com a renovação litúrgica do Vaticano II, principalmente pelo que se refere as leituras.
A respeito destas, três semanas antes da Quaresma iniciamos já a leitura do Pentateuco, como princípio da História da salvação, até a primeira semana da Paixão. Nas duas semanas da Paixão, em que a celebração litúrgica contempla em cheio o mistério redentor no aparente triunfo das forças do mal, lemos o livro de Jeremias e as Lamentações. No último sábado de Paixão, a liturgia cartusiana evoca e revive a presença de Maria Santíssima na Paixão do seu Filho mediante uma festa especial com rito de 12 leituras, em honra da Mãe Dolorosa: é chamada “Compaixão de Nossa Senhora”.
As leituras são 12 aos domingos e três nos dias ordinários e cada uma tem um Responsório tirado das diversas histórias apresentadas nas leituras. É um abundante alimento espiritual que encontra o seu complemento nas preces e diversas orações das diferentes Horas canónicas. No rito cartusiano conservamos todas as Horas menores.
Um Cartuxo de Scala Coeli
Terça-feira da terceira semana: Espaço para a autenticidade
Gosto, mas gosto muito, que a primeira palavra de Jesus no Evangelho de João seja uma pergunta (e seja aquela pergunta): “Que procurais?” (Jo 1,38). Consola-me ir percebendo que o que sustenta a arquitetura dos encontros e dos desencontros que os Evangelhos relatam é uma espécie de coreografia de perguntas, um intenso tráfico interrogativo, construído a maior parte do tempo a tatear, sem saber bem, com muitas dúvidas, muitos disparos ao lado, muita incapacidade até de comunicar. Isso é uma âncora, por muito que nos custe, pois uma vida só assente em respostas é uma vida diminuída, à maneira de uma primavera que não chegou a ser.
Não sei como vai rebentar em nós a primavera, como se vai acender este reflorir que a natureza insinua, este renascer que o gesto pascal de Jesus espantosamente (res)suscita na nossa humanidade. Sei apenas que nas perguntas, mesmo naquelas que são difíceis e nos estremecem, reencontramos a vida exposta e aberta, certamente mais frágil, mas a única que nos permite tocar as margens de uma existência autêntica.
Todos somos habitados por perguntas e elas cartografam zonas silenciosas, territórios de fronteira do nosso ser. Estes dias reencontrei a pergunta de Pilatos (ainda no Evangelho de João): “O que é a verdade?” (Jo18,38). E dei comigo a aproximar esta pergunta de uma das frases emblemáticas de Jesus: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,2). Sem querer relativizar a natureza densamente dogmática do enunciado, dei comigo, porém, a revisitá-lo em chave existencial. E era como se Jesus, mestre da vida que incessantemente se reformula em nós, nos desafiasse a uma apropriação. Sim, a uma apropriação.
É necessário que perante a multidão dos caminhos percorridos e a percorrer cada um de nós diga: “eu sou o caminho que percorro”. É decisivo que as verdades que acordamos não sejam uma sobreposição, mas uma expressão profunda do que somos: “eu sou a verdade”. É urgente que a vida não seja só a acumulação do tempo e do seu cavalgar sonâmbulo, mas que cada um, pelo menos uma vez, possa dizer plenamente: “eu sou a vida”. Acho que é disto que o mistério pascal fala.
José Tolentino Mendonça
Quarta-feira da terceira semana: Abre o teu Evangelho e medita nos seus ensinamentos sobre a oração
- Abre o teu Evangelho, olha para ele e toma nota do que te vou dizer.
Deu-me um lápis.
- Procura, primeiramente, no Evangelho de São Mateus, o sexto capítulo, e lê, desde o quinto ao nono versículo (Mt 6,5-8). Aqui está a preparação ou a introdução. Ensina, que não é na vaidade, nem no meio do barulho, mas num lugar isolado e tranquilo que se deve orar; orar para pedir perdão pelos nossos pecados, em união com Deus. Não se deve fazer muitos pedidos sobre as necessidades do dia a dia, como fazem os pagãos.
Depois, lê ainda do nono até ao décimo quarto versículo (Mt 6,9-13), onde encontras a forma da oração, isto é, as palavras que devemos pronunciar. Tudo o que precisamos para a nossa vida está aqui sabiamente reunido. Lê também o décimo quarto e décimo quinto versículos deste capítulo e verás qual a condição que é necessária manter, para que a oração seja efetiva, pois se não perdoarmos aos que nos ofendem, Deus não perdoará os nossos pecados.
No sétimo capítulo, do sétimo ao décimo segundo versículo, encontramos os meios para o sucesso na oração e a aprovação na esperança: pedir, procurar, bater. Esta expressão intensa representa uma parte da oração e o exercício principal, para que a oração não só esteja presente em todas as ações, mas que as supere no tempo. Esta é a principal riqueza da oração... Verás o exemplo no décimo quarto capítulo do Evangelho de São Marcos, do trigésimo segundo versículo ao quadragésimo, onde o próprio Jesus Cristo repete as mesmas palavras na oração. Encontramos um exemplo semelhante no Evangelho de São Lucas (cf. Lc 11,5-13) na parábola do amigo importuno e na parábola do juiz iníquo e da viúva (cf. Lc 18,1-14), apresentando o mandamento de Jesus, que nos manda rezar sempre, a toda a hora e em qualquer lugar; orar e não desanimar, isto é, não se entregar à preguiça.
Além destes sensatos conselhos, o Evangelho de São João mostra-nos ainda um ensinamento fundamental sobre a misteriosa oração interior do coração. Em primeiro lugar, assistimos à conversa de Jesus Cristo com a samaritana, onde é revelado o culto interior a Deus do espírito e da verdade, como Deus deseja, e que representa a verdadeira oração permanente, como uma nascente de água viva a jorrar para a vida eterna.
Mais à frente, no décimo quinto capítulo, do quarto versículo ao oitavo, descreve-se, ainda de forma mais clara, a força, a potência e a necessidade da oração interior, isto é, o refúgio da alma em Cristo, na recordação eterna de Deus.
Depois, lê, no décimo sexto capítulo, do vigésimo terceiro ao vigésimo quinto versículo, no mesmo Evangelho. Que mistério aí se nos apresenta! Vê que a oração em nome de Jesus, ou como é conhecida, a oração de Jesus «Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim!», se repetida frequentemente, tem uma força enorme, e ilumina o nosso coração. Isso nos é dado ver nos Apóstolos, que, sendo discípulos de Jesus Cristo há menos de um ano, aprenderam a rezar ao Senhor, isto é, o «Pai-Nosso».
Sabemos também que, no fim da sua vida terrena, Jesus Cristo lhes desvendou o seu mistério, para que a oração fosse definitivamente um sucesso. Ele disse-lhes: «Nesse dia nada me perguntareis. Em verdade vos digo que tudo quanto pedirdes a meu Pai, em meu nome, Ele vos dará. Até agora, nada pedistes em meu nome; pedi e recebereis» (Jo 16,23-24). Assim sucedeu. Quando os Apóstolos aprenderam a dizer a oração em nome de Jesus Cristo, então, realizaram-se milagres admiráveis, e eles próprios ficaram maravilhados!
Vês agora a ligação e a plenitude do ensinamento sobre a oração, tão sabiamente exposta no Evangelho? Se, depois, começares a leitura das Epístolas dos Apóstolos, aí encontrarás, consequentemente o ensinamento da oração.
Para continuarmos as observações anteriores, indico-te algumas passagens que revelam os atributos da oração. Nos Atos dos Apóstolos, descreve-se a prática, isto é, o exercício aplicado e permanente na oração dos primeiros cristãos, instruídos na fé em Jesus Cristo (cf. Act 4,31). Indicam-nos os frutos ou os resultados da oração permanente, isto é, a expansão do Espírito Santo e das suas dádivas àqueles que oram.
Verás algo semelhante no décimo sexto capítulo, nos versículos vinte e cinco e vinte e seis. Continua, ordenadamente a leitura das Mensagens dos Apóstolos e verás:
1) como a oração é necessária em todos os atos da vida (Tg 5,13-16);
2) como o Espírito Santo ajuda a rezar (Jd 20-21; Rm 8,26);
3) como devemos rezar com o espírito (Ef 6,18);
4) como é necessário, ao orarmos, sossego ou paz interior (Fl 4,6-7);
5) como é necessário orar sem cessar (1 Ts 5,17);
6) finalmente, notamos que devemos rezar não só por nós, mas por todos (1 Tm 2,1-5).
Relatos de um peregrino russo, ed. Paulinas
Quinta-feira da terceira semana: É este o tempo favorável
Momento favorável é uma indicação que o apóstolo Paulo faz dirigindo-se aos cristãos em Corinto. É uma referência ao dia da salvação, mas que deve ser incorporada nas situações do dia a dia. Nunca se pode perder a hora certa para coisas importantes na vida familiar, social e cultural. Aproveitá-la é caminho para o êxito. (...) O tempo da Quaresma (...) é uma sábia e indispensável indicação de um tempo especial para a vida de cada pessoa.
Neste tempo da Quaresma ecoa a profecia que convida insistentemente para um encontro com Deus, de todo o coração. É um processo de reconfiguração qualificada da própria vida que inclui todas as circunstâncias do tecido da sociedade. O ápice da qualificação de qualquer vida pessoal é a consistência da própria interioridade como fonte sustentadora da paixão pela verdade, o gosto pela solidariedade e a coragem de lutar pela justiça. É cultivar a honestidade na palavra dada, no respeito aos outros e, particularmente, na condução da coisa pública e do bem comum.
Pensar a salvação como momento favorável é reconhecer que ninguém pode furtar-se ao propósito existencial de reconciliação, com Deus e com o semelhante, superando inimizades. É aproximar-se do pobre, do indefeso e do inocente. Trata-se também de uma reconciliação consigo mesmo, um movimento reverso ao que leva à depressão, à vida vivida nos disparates da arbitrariedade e das tiranias do desejo. O convite central deste tempo da Quaresma, o voltar-se para Deus, se concretiza na indicação direta do imperativo “convertei-vos”. Cria a convicção indispensável de que não apenas os sistemas, os governos, os funcionamentos administrativos, os mecanismos da sociedade merecem uma revisão, mas também o si mesmo de cada um.
É o si mesmo de cada um a alma e o sustento de processos, de famílias, de instituições, de lideranças lúcidas e da indispensável capacidade cidadã de indignar-se com o mal. O tempo da Quaresma tem a finalidade educativa de motivar a correção do orgulho que perpetua insanidades, atrasa reconciliações e enjaula a possibilidade de se viver mais solidariamente. Quem percorre o caminho quaresmal escutando a Palavra de Deus, falando menos, contemplando mais, sensibilizando-se sob o impulso da caridade fraterna, alcança uma qualificação ancorada na força de valores. Fazem a diferença no que são, onde estão e no exercício de suas responsabilidades.
D. Walmor Oliveira de Azevedo, arcebispo de Belo Horizonte
Sexta-feira da terceira semana: Que amo eu, quando Vos amo?
A minha consciência, Senhor, não duvida, antes tem a certeza de que Vos amo. Feriste-me o coração com a Vossa palavra e amei-Vos. O céu, a terra e tudo o que neles existe, dizem-me por toda a parte que Vos ame. Não cessam de o repetir a todos os homens, para que sejam inescusáveis. Compadecer-Vos-eis mais profundamente daquele de quem já Vos compadecestes, e concedereis misericórdia àquele para quem já foste misericordioso. De outro modo, o céu e a terra só a surdos cantariam os Vossos louvores.
Que amo eu, quando Vos amo? Não amo a formosura corporal, nem a glória temporal, nem a claridade da luz, tão amiga destes meus olhos, nem as doces melodias das canções de todo o género, nem o suave cheiro das flores, dos perfumes ou dos aromas, nem o maná ou o mel, nem os membros tão flexíveis aos abraços da carne. Nada disto amo, quando amo o meu Deus. E contudo, amo uma luz, uma voz, um perfume, um alimento e um abraço, quando amo o meu Deus, luz, voz, perfume e abraço do homem interior, onde brilha para a minha alma uma luz que nenhum espaço contém, onde ressoa uma voz que o tempo não arrebata, onde se exala um perfume que o vento não esparge, onde se saboreia uma comida que a sofreguidão não diminui, onde se sente um contacto que a saciedade não desfaz. Eis o que amo, quando amo o meu Deus. (...)
Entoe vossos louvores aquele que compreende, e quem não compreende enalteça-Vos também! Oh! quão sublime sois! Contudo a Vossa morada são os humildes de coração! Levantais os que caíram, e não caem aqueles de quem Vós sois a altura! (...)
Nós agora somos inclinados a praticar o bem, depois que o nosso coração o concebeu, inspirado pelo Vosso Espírito. Mas, ao princípio, desertando de Vós, éramos arrastados para o mal. Contudo, Vós, meu Deus e único Bem, nunca deixastes de nos beneficiar. Com a Vossa graça algumas obras realizámos; mas estas não são eternas. Depois de as termos praticado, esperamos repousar na Vossa grande santificação. Vós sois o Bem que de nenhum bem precisa. Estais sempre em repouso, porque sois Vós mesmo o Vosso descanso.
Quem, dos homens, poderá dar a outro homem a inteligência deste mistério? Que anjo a outro anjo? Que anjo aos homem? A Vós se peça, em Vós se procure, à Vossa porta se bata. Deste modo, sim, deste modo se há-de receber, se há-de encontrar e se há-de abrir a porta do mistério.
Santo Agostinho
In Confissões
Sábado da terceira semana: Que é que o cristão deve ser?
Que é que o cristão deve ser? Alguém que empenha a sua vida pelos irmãos, porque ele próprio deve a sua ao crucificado. Mas que pode ele, seriamente, dar aos irmãos? Não apenas coisas visíveis; a sua dádiva - o que a ele próprio foi dado - mergulha nas realidades invisíveis de Deus. «Vós morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus» (Cl 3,3).
Se pensasse poder tornar visível e dar tudo o que ele é, o cristão ter-se-ia feito mera superfície e nada mais de profundo teria para dar. Há coisas que pode dar e mostrar; mas não se encontram no campo em que é habitual delinear a Igreja visível: culto, festas, sacramentos, ofícios sagrados. São antes sementes da vida divina que, transportadas por estes canais, deverão florescer nos cristãos. É difícil expressá-las em conceitos porque, mais do que uma realidade expressável, são um perfume que emana de Deus. «Somos o bom odor de Cristo...» (2 Cor 2,15). Paulo transcreve com muitos nomes o jardim do amor, que aqui e agora começa a florescer: «Terna compaixão, bondade, humildade, mansidão, paciência, perdão recíproco... paz de Cristo..., sobretudo a caridade» (Cl 3,12-15). E ainda: «Caridade, alegria, paz, longanimidade, benignidade, fidelidade, mansidão, temperança...» (Gl 5,22), onde é importante advertir que, logo a seguir à caridade, vem a alegria, e que dela devem derivar todos os modos da caridade, do perdão, como reflexo daquilo que foi dado aos cristãos por Jesus (Cl 3,13) e, portanto, por Deus (Ef 4,32-5,2), «como oferta e sacrifício de agradável odor a Deus» (ibid., 5,2).
«Alegrai-vos! Que a vossa bondade seja conhecida por todos... Por nada vos deixeis inquietar» (Fl 4,4-6). Alegria na fraqueza, fraqueza sem preocupação, na qual se torna visível uma misteriosa superioridade. Por detrás das bem-aventuranças do Sermão da Montanha para os mansos, os misericordiosos, os pacíficos, os pobres, por detrás das instruções para não retribuir as ofensas e não resistir, depois da ressurreição do Senhor como fonte que tudo alimenta, jorra a alegria. Estêvão morre na alegria, vê os céus abertos. Paulo quer morrer na alegria e convida todos a alegrarem-se com ele (Fl 2,17-18). Consciente do céu aberto, do centro patente de todas as coisas, o cristão, mesmo na vida ordinária, vive de uma fonte que nunca se esgota, que brota da própria profundidade de Deus e através dele mana para a vida eterna (Jo 4,14). No amor que flui, Deus pronunciou um sim definitivo a tudo, e nós devemos e podemos responder com o nosso ámen irrevogável (2 Cor 1,18-20), numa afirmação serena, absoluta, da existência (...).
O cristão deve tentar, sempre de novo, determinar o seu lugar, para retamente poder orar e agir. Encaminha-se para os seus irmãos partindo de Deus e, com os irmãos, olha para Deus. No caminho de Cristo, portanto. Não apenas no caminho do mundo para Deus. Mas a curva que Jesus percorre não é calculável porque, no meio, está plantado o abismo de cruz, inferno, ressurreição. Também a curva do cristão se não pode calcular. Pode, por isso, abandonar toda a preocupação e deixar-se inserir por Deus na fraqueza. Que ele, enquanto homem entre os homens, colabore de modo solidário e por dever com todos na comum obra presente e futura, é natural e não há necessidade de tal recordar ou até enaltecer. «Se alguém não quer trabalhar também não coma» (2 Ts 3,10). Exaltar expressamente a «abertura ao mundo» dos cristãos é supérfluo, porque eles próprios são uma parte do mundo e devem comportar-se simplesmente como qualquer outro. Só que os cristãos são, ademais, algo de diferente, que se não pode encaixar no «mundo». Trazem, de facto, o testemunho do amor sempre maior de Deus e, se quiserem, irradiam este amor no mundo. O seu mandato é atestar, se necessário com a morte, que o amor é superior à morte, é vida eterna.
Hans Urs von Balthasar
In Córdula, ed. Assírio & Alvim
4.º Domingo da Quaresma: Na alegria do espírito
Nosso Senhor dizia: “Quando jejuardes, não mostreis um ar tristonho” (Mt 6, 16). Talvez daí brote este detalhe interessante da Quaresma: a frequente advertência de que a alegria cristã deve acompanhar toda a nossa travessia quaresmal.
Com efeito, são muitas as orações ou coletas em que a Igreja pede para seus filhos “uma alegre penitência”, um “jejuar com alegria” e outras expressões semelhantes. É que a penitência cristã vai acompanhada da alegria do espírito que gera uma doce e tranquila confiança na misericórdia do Senhor. E a Quaresma cria uma dupla alegria: a alegria do dever cumprido, dedicando a Deus de modo especial este tempo quaresmal a Ele consagrado; e a alegria da esperançosa Páscoa que esperamos como triunfo da vida de Jesus e como vitória da graça divina sobre o mal que reside em nós. É certo que a Quaresma não deixa de ser “um sacrifício”; mas por ser “voluntário” e oferecido com amor generoso, torna-se “em santa e alegre devoção”. Aliás, sendo a Páscoa a fonte da alegria cristã, é natural que nos aproximemos dessa fonte com gozo e que percebamos já um gosto antecipado da mesma.
Assim sendo, o cartuxo não vive a sua Quaresma como “tempo de tristeza”, mas sim de alegria e esperança porque, como filho de Deus, coloca n’Ele a origem e a fonte de toda a sua felicidade. O Mistério de Cristo vivido na Quaresma não é algo que esteja fora de nós; ele é o que somos e estamos chamados a ser em Cristo. O Seu drama é o nosso. Nossa cruz não é senão a de Jesus e é o Seu amor quem a leva em nós. Nossa verdadeira vida é a do Ressuscitado em nós. Se a Liturgia quaresmal nos leva pelo caminho da Cruz, é para nos ensinar que esse caminho é também o nosso. Cristo tem vencido na Sua luta contra o pecado e a morte, e o poder vitorioso da Sua vida e do Seu amor é-nos comunicado na celebração sacramental do seu Mistério renovado na Liturgia. “Com a recordação dos mistérios da Redenção, a Igreja oferece aos fiéis as riquezas das obras e merecimentos do seu Senhor, a ponto de os tornar como que presentes a todo o tempo, para que os fiéis, em contacto com eles, se encham de graça” (Sacrosanctum Conclilium n. 102).
Temos razão em nos gloriarmos na Cruz de Cristo. O rosto exprime o gozo que vai no coração, e o ardor do coração penetra todo o homem e lhe comunica forças “para dar com alegria” a observância quaresmal: “Deus ama a quem dá com alegria” (2 Cor 9.7). E assim se prepara o cartuxo para tomar parte na Ressurreição do seu Senhor. “Vem, Senhor Jesus” (Ap 22. 20).
Um Cartuxo de Scala Coeli
Segunda-feira da quarta semana: Chamo, agarro-me, quero - e ninguém me responde
Na escuridão...
Senhor, meu Deus, quem sou eu para que Tu me abandones? Sou uma filha do teu amor - que se tornou a mais odiada - aquela que abandonaste como indesejada - como não amada. Eu chamo, agarro-me, quero - e ninguém me responde - não há ninguém a Quem possa agarrar-me - não, Ninguém. – Sozinha. A escuridão é tão profunda - e eu estou sozinha. - Indesejada, abandonada. - A solidão do coração que deseja amar é insuportável. - Onde está a minha fé? - mesmo lá no fundo, aí mesmo, nada existe a não ser vazio e escuridão.
- Meu Deus - que dolorosa é esta dor desconhecida. Dói sem cessar. - Não tenho fé. - Não me atrevo a proferir as palavras e os pensamentos que me povoam o coração - e me fazem sofrer uma agonia indescritível. São tantas as perguntas sem resposta que vivem dentro de mim - tenho receio de as trazer à luz - por serem blasfemas. – Se Deus existe, - por favor perdoa-me. - Confiança em que tudo acabará no Céu com Jesus. - Quando tento elevar o pensamento para o Céu - o vazio é de tal maneira convincente que esses mesmos pensamentos regressam como punhais afiados e me ferem a alma. – Amor - a palavra - nada traz. - Dizem-me que Deus me ama - e contudo a realidade da escuridão e da frieza e do vazio é tão grande que nada me toca a alma. Antes de se iniciar a obra - havia tanta união – amor – fé - confiança - oração - sacrifício. - Terei cometido um erro ao submeter-me cegamente ao chamamento do Sagrado Coração? Não é o trabalho que está em dúvida - porque estou convencida de que é Dele e não meu. - Não sinto - não me entra no coração um simples pensamento - uma só tentação de tomar como minha qualquer parcela do trabalho.
Sempre a sorrir - as Irmãs e as pessoas fazem cada observação. - Acham que a fé, a confiança e o amor me enchem todo o meu ser e que a intimidade com Deus e a união à Sua vontade me devem absorver o coração. - Se soubessem - até que ponto a minha alegria é a capa com a qual cubro o vazio e a infelicidade.
Apesar de tudo - esta escuridão e este vazio não são tão dolorosos como a ânsia de Deus. - A contradição que receio que me desequilibre. - O que estás Tu a fazer meu Deus a criatura tão pequena? Pediste-me para imprimires a Tua Paixão no meu coração - é esta a resposta?
Se isto for para Tua glória, se Tu obténs uma gota que seja de alegria com isto - se houver almas que se aproximam de Ti - se o meu sofrimento saciar a Tua Sede - aqui estou eu meu Senhor, com alegria aceito tudo até ao final da vida - e sorrirei à Tua Face Oculta - sempre.
Beata Teresa de Calcutá
In "Vem, sê a minha luz", ed. Aletheia
Terça-feira da quarta semana: Rezar a Quaresma com os Salmos (I)
A fé precisa de se alimentar incessantemente de palavras que a construam; o amor precisa de dizer sempre as mesmas coisas sem no entanto nunca as repetir.
Os versículos breves que a seguir se propõem podem ajudar o crente a permanecer diante de Deus ao longo do dia, quer como oração curta quer como meditação contínua.
Há um manancial de orações nos salmos, que são como uma escola de atitudes religiosas de quem segue Cristo, também Ele formado nesse ensinamento desde a sua infância.
Adoração
Tu
Tu Senhor, permaneces para sempre
e o teu nome será lembrado por todas as gerações.
Eles deixarão de existir, mas Tu permanecerás;
Mas Tu permaneces sempre o mesmo,
os teus anos não têm fim. (cf. 102, 13.28)
Prostrai-vos a seus pés,
pois Ele é santo! (99, 5)
Eu
Eu sou pobre e desvalido (cf. 40, 18)
Os meus dias são como a sombra que declinae eu vou secando como a erva (102, 11)
Diante de ti a minha existência é como nada;
o homem não é mais do que um sopro!
Ele passa como simples sombra!
É em vão que se agita (39, 6-7)
Pela grandeza do teu amor, entrarei na tua casa
para te adorar, com reverência, no teu santo templo (5, 8)
Louvai o Senhor, nosso Deus, com alegria;
prostrai-vos diante do seu monte santo,
pois o Senhor, nosso Deus, é santo! (99, 9)
Quem como Tu, ó Deus? (71, 19)
Súplica
O Senhor está no alto dos céus mas está próximo do coração dilacerado, escuta-o e responde-lhe.
Tu
Levanto os meus olhos para ti (123, 1)
Ergo para ti as minhas mãos;como terra seca, a minha alma está sedenta de ti (143, 6)
Clamo por ti, Senhor (28, 1)
Eu
Quando um pobre invoca o Senhor, Ele atende-oe liberta-o das suas angústias.
Saboreai e vede como o Senhor é bom
O Senhor está perto dos corações contritos
e salva os espíritos abatidos (34, 7.9.19)
Um grito impaciente
O pobre clama com toda a impaciência e insistência de quem sofre; a familiaridade com que se exprime é extraordinária.
Tu
Tu és meu pai,
és o meu Deus e o rochedo da minha salvação! (89, 27)
Eu
O Senhor é o refúgio do oprimido;
a sua defesa, no tempo de angústia.
Os que conhecem o teu nome, Senhor, confiam em ti,
pois nunca abandonaste quem te procura.
[O Senhor] não esquece o clamor dos infelizes
O pobre não será esquecido eternamente,
nem para sempre se há de perder a esperança dos infelizes. (9, 10-11.13.19)
Levanta-te, Senhor! Ó Deus, ergue a tua mão
e não te esqueças dos miseráveis.
Porque há de o ímpio desprezar a Deus
e dizer no seu coração que Tu não castigas?
Mas Tu vês a angústia e o pesar,
observas tudo e tomas essa causa nas tuas mãos.
A ti se abandona confiadamente o pobre;
Tu és o amparo do órfão.
Ouve, Senhor, o grito dos humildes;
atende-os e conforta-os no seu coração. (10, 12-14.17)
Lamentação
Lamentação dos pequenos, dos humildes diantes dos sofrimentos: injustiça social, opressão, perseguição, doença, tristeza, isolamento, prisão. São pessoas de carne que vibram intensamente.
Tu
Só Tu és grande
e realizas maravilhas (86, 10)
Tu modelaste as entranhas do meu ser (139, 13)
A minha sorte está nas tuas mãos (16, 5)
Eu
Males sem conta me cercam;
as minhas iniquidades caem sobre mim, sem que as possa ver!
São mais numerosas que os cabelos da minha cabeça;
por isso, o meu ânimo desfalece (40, 13)
Tu me envolves por todo o lado
e sobre mim colocas a tua mão (139, 5)
São tantos os que se levantam contra mim! (3, 2)
A minha dor está sempre presente (38, 18)
Falta
A distância entre «Tu» e «Eu» parece ampliar-se e a solidão é mais profunda.
Tu
Tu não és um Deus que se agrade do mal (5, 5)
Eu
Lembra-te de mim, Senhor,
pelo teu amor.
Por amor do teu nome, Senhor,
perdoa o meu pecado, pois é muito grande (25, 7.11)
Perdão
A ternura e piedade de Deus ultrapassam o abismo sob a forma de perdão, ao encontro da humilde confissão da falta. O pobre não se esconde; a sua fé incitao cada vez mais a convidar Deus a conhecer o seu coração, a purficá-lo, a renová-lo.
Tu
Tu, Senhor, és um Deus misericordioso e compassivo,paciente e grande em bondade e fidelidade (86, 15)
Tu, Senhor, salvas os homens e os animais.
Ó Deus, que maravilhosa é a tua bondade! (36, 7-8)
Eu
Confessarei ao Senhor a minha falta (32, 5)
Examina-me, Senhor, e vê o meu coração;
põe-me à prova para saber os meus pensamentos (139, 23)
Lava-me de toda a iniquidade;
purifica-me dos meus delitos.
Cria em mim, ó Deus, um coração puro;
renova e dá firmeza ao meu espírito (41, 12)
O sacrifício agradável a Deus é o espírito contrito;
ó Deus, não desprezes um coração contrito e arrependido (51, 19)
Todo o mortal se pode aproximar de ti,
com as suas obras e pecados.
São muitas as nossas faltas,
mas Tu as perdoas (65, 3-4)
Bendiz, ó minha alma, o Senhor,
e todo o meu ser louve o seu nome santo.
É Ele quem perdoa as tuas culpas
e cura todas as tuas enfermidades (103, 1-3)
Um Cartuxo
Quarta-feira da quarta semana: Rezar a Quaresma com os Salmos (II)
Escândalo
Os inimigos dos pobres (e também de Deus) são os maus e os orgulhosos. Confrontam-se dois mundos, das trevas e das luzes. Os fiéis a Deus parecem ser esmagados, e daí vem o escândalo, quase uma crise de fé perante a prosperidade dos pecadores. Deus esconde o seu rosto. Está longe e o pobre fica só e indefeso.
Tu
A tua bondade, Senhor, chega até aos céus,
e a tua fidelidade, até às nuvens.
Tua justiça é como os montes altíssimos,
os teus juízos são como o abismo profundo (36, 6-7)
Eu
Por um triz não escorreguei,
ao sentir inveja dos ímpios,
ao ver a prosperidade dos maus (73, 2-3)
[Deus] desvia o rosto para não ter de ver mais (10, 11)
Até quando, Senhor?
Esqueceste-me para sempre?
Até quando me esconderás a tua face?
Até quando terei a minha alma em cuidados,
e o meu coração em angústia, todo o dia?
Até quando triunfará o meu inimigo sobre mim? (13, 2-3)
Ouve, Senhor, a voz da minha súplica,
tem compaixão de mim e responde-me.
O meu coração murmura por ti,
os meus olhos te procuram;
é a tua face que eu procuro, Senhor. (27, 7-
Indignação
Aos sarcasmos dos ímpios respondem as maldições estranhas para os nossos ouvidos cristãos mas que não eram senão um apelo exaltado ao restabelecimento da justiça divina, concebida sob os limites da retribuição. Não julguemos que o seu ardor contra as forças do mal seja uma não virtude, ainda que a sua expressão nos choque.
Eu
Não mais levantem a cabeça os que me cercam;
caia sobre eles a malícia dos seus lábios.
Chovam sobre eles carvões acesos;
sejam atirados para covas donde não mais se levantem. (140, 10-11)
Mas a mim, triste e aflito,que a tua salvação, ó Deus, me restabeleça.
Louvarei, com cânticos, o nome de Deus;
hei de glorificá-lo com ações de graças.
Isto agradará mais a Deus do que o sacrifício de um touro,
do que uma vítima perfeita e sem mancha.
Que os humildes vejam isto e se alegrem,
e os que buscam a Deus se encham de coragem,
porque o Senhor escuta os necessitados
e não despreza o seu povo cativo.
Louvem-no o céu e a terra,
os mares e quanto neles se move. (69, 30-35)
Uma fé purificada
Os sofrimentos e as derrotas humanas podem ser o caminho obscuro pelo qual Deus nos conduz ao abandono total, a uma espécie de despojamento diante dEle através de uma purificação dramática da nossa fé.
Tu
Ó Deus, os teus caminhos são santos.
Que Deus haverá tão grande como Tu?
O mar foi para ti um caminho;
caminhaste por entre águas caudalosas
e ninguém descobriu as tuas pegadas.
Conduziste o teu povo como um rebanho (77, 14.20-21)
Eu
Do fundo do abismo clamo a ti, Senhor!
Senhor, ouve a minha prece!
Estejam teus ouvidos atentos
à voz da minha súplica!
Se tiveres em conta os nossos pecados,
Senhor, quem poderá resistir?
Mas em ti encontramos o perdão;
por isso te fazes respeitar.
Eu espero no Senhor! Sim, espero!
A minha alma confia na sua palavra.
A minha alma volta-se para o Senhor,
mais do que a sentinela para a aurora.
Mais do que a sentinela espera pela aurora,
Israel espera pelo Senhor;
porque nele há misericórdia
e com Ele é abundante a redenção.
Ele há de livrar Israel
de todos os seus pecados. (130)
O sofrimento conduz à invocação, à confiança na fé. A experiência da nossa pobreza íntima convida ao abandono nas mãos de Deus, porque junto dEle está o amor.
O caminho da eternidade
O sofrimento adquire dignidade porque é o caminho que conduz a Deus. O pobre caminha na verdade quando o seu olhar se fixa totalmente na vontade de Deus.
Tu
O amor e a fidelidade caminham à tua frente (89, 15)
Tu, Senhor, estás perto;
todos os teus mandamentos são verdadeiros (119, 151)
Senhor, Tu manténs acesa a minha lâmpada (18, 29)
Eu
Dirige-me na tua verdade e ensina-me (25, 5)
Antes de me teres humilhado, eu pecava;
mas, agora, cumpro a tua palavra (119, 67)
Abriste-me os ouvidos para escutar
Esse é o meu desejo, ó meu Deus;
a tua lei está dentro do meu coração (40, 7.9)
Sou um peregrino nesta terra;
não me escondas os teus mandamentos (119, 19)
Sou humilde e desprezível,
mas não me esqueço dos teus preceitos (119, 141)
Ensina-me a cumprir a tua vontade,
pois Tu és o meu Deus (143, 10)
Guia-me pelo caminho eterno (139, 24)
Estou contigo
Para além de toda a procura, de todo o sentimento, de todo o pensamento, Deus afirma-se soberanamente Deus: «Estou contigo, mais íntimo de ti que tu próprio».
Tu
Eu sou o Senhor, teu Deus (50, 7)
Eu
Outrora, o meu coração exasperava-se
e consumiam-se as minhas entranhas.
Eu era um louco, sem entendimento,
como um animal na tua presença.
No entanto, estive sempre contigo,
e Tu me conduziste pela mão;
guiaste-me com o teu conselho
e, por fim, me receberás na tua glória.
Quem mais tenho eu no céu?
Na terra só desejo estar contigo.
Ainda que o meu corpo e o meu coração desfaleçam,
Deus será sempre o meu refúgio e a minha herança.
Para mim, a felicidade é estar perto de Deus.
Em ti, Senhor Deus, pus a minha confiança (73, 21-26.28)
O lugar da paz
Silêncio, humildade, confiança, entrega total a Deus: tais são as atitudes essenciais do pobre. Um crédito infinito aberto a Deus na alegria, na paz e no louvor.
Tu
Ó minha força, é para ti que eu me volto,
pois Tu, ó Deus, és a minha fortaleza.
O amor do meu Deus virá ao meu encontro (59, 10-11)
Eu
Senhor, o meu coração não é orgulhoso,
nem os meus olhos são altivos;
não corro atrás de grandezas
ou de coisas superiores a mim.
Pelo contrário, estou sossegado e tranquilo,
como criança saciada ao colo da mãe;
a minha alma é como uma criança saciada!
Israel, espera no Senhor,
desde agora e para sempre (131)
No coração do pobre desprovido dele mesmo – e mesmo desta disposição – Deus abre os caminhos profundos da sua paz; Ele fá-lo entrar na sua morada, onde canta na alegria as maravilhas do seu amor.
Felizes os que em ti encontram a sua força (84, 6)
Deito-me em paz e logo adormeço,
porque só Tu, Senhor, me fazes viver em segurança (4, 9)
Eu, pela grandeza do teu amor,
entrarei na tua casa (5, 8)
Cantarei ao Senhor pelo bem que Ele me fez (13, 6)
Bendito seja o Senhor,
que, pelo seu amor, fez maravilhas por mim (31, 22)
Um Cartuxo
Quinta-feira da quarta semana: Quem poderá compreender a riqueza de uma só das vossas palavras?
Quem poderá compreender, Senhor, toda a riqueza de uma só das vossas palavras? Como o sedento que bebe da fonte, muito mais é o que perdemos do que o que tomamos. A palavra do Senhor apresenta aspetos muito diversos, segundo as diversas perspetivas dos que a estudam. O Senhor pintou a Sua palavra com muitas cores, a fim de que cada um dos que a escutam possa descobrir nela o que mais lhe agrada. Escondeu na sua palavra muitos tesouros, para que cada um de nós se enriqueça em qualquer dos pontos que medita.
A palavra de Deus é a árvore da vida, que de todos os lados oferece um fruto bendito, como a rocha que se abriu no deserto, jorrando de todos os lados uma bebida espiritual. «Comeram – diz o Apóstolo – uma comida espiritual e beberam uma bebida espiritual.»
Aquele que chegou a alcançar uma parte deste tesouro, não pense que nessa palavra está só o que encontrou, mas saiba que apenas viu alguma coisa de entre o muito que lá está. E porque apenas chegou a entender essa pequena parte, não considere pobre e estéril esta palavra; incapaz de apreender toda a sua riqueza, dê graças pela sua imensidade inesgotável. Alegra-te pelo que alcançaste, e não te entristeças pelo que ficou por alcançar. O que tem sede alegra-se quando bebe, e não se entristece por não poder esvaziar a fonte. Vença a fonte a tua sede, e não a tua sede a fonte, poderás ainda beber dela quando voltares a ter sede; se, ao contrário, saciada a sede, secasse a fonte, a tua vitória seria a tua desgraça.
Dá graças pelo que recebeste, e não te entristeças pelo que sobrou e deixaste. O que recebeste e alcançaste é a tua parte, e o que deixaste é ainda a tua herança. O que não podes receber imediatamente por causa da tua fraqueza, poderás recebê-lo noutra altura se perseverares. E não tentes avaramente tomar tudo dum só fôlego o que não podes abarcar duma vez, nem desistas, por preguiça, do que podes ir conseguindo pouco a pouco.
Santo Efrém
Sexta-feira da quarta semana: Viver e morrer à míngua de alto
A sedução (tentação) do cristianismo não está no milagre ou no pão que sacia - o milagre secularizou-se, as obras de misericórdia converteram-se em obras sociais. A medicina, as ONGs, a FAO fazem hoje milagres tão grandes como aqueles vistos e engrandecidos em praticamente todas as religiões, chame-se a isso magia ou feitiçaria. O que seduz no cristianismo é a existência de um Deus sensível ao coração, a proximidade, a presença para além da morte - é que alguém tenha ressuscitado por mim: «Eu sou o pão da vida: quem vem a mim nunca mais terá fome, quem acredita em mim nunca mais terá sede».
O Evangelho diz que a multidão seguia Jesus, primeiro pela fama que tinha de fazer milagres, depois porque lhe matara a fome. Jesus conhecia bem essas armadilhas: não há proeza que não traga o aplauso e a sagração. Passamos a vida a ignorar que não é a necessidade que define o que somos mas o desejo que é em nós atravessado pela alegria e a tristeza.
Aquilo que deseja o homem não pode ser trocado contra nenhum dos valores objetivos que é possível adquirir gerindo as suas pulsões. O Outro do desejo não tem preço, não é da ordem do representável, mensurável, comparável, nem da ordem do ter, é da ordem do ser e da falta de ser. Essa alteridade não tem valor mercantil - tem o rosto do Amor. Há em nós um desejo de ser ou de viver que nenhum alimento do mundo pode saciar. O que é desejado em nós não são tanto os objetos de que parecia termos necessidade mas aquilo que subjaz ao fundo de que vivemos, o dom da vida. Este dom não o podemos transformar em valor. É um dom que, sob um fundo de vazio, apela ao dom da presença. É neste presente que nos reconhecemos, feito da paciência ou da alegria dos encontros.
Os sabichões aparecem sempre cozidos à sombra e ao murmúrio: como pode Ele dizer que é o pão vivo descido do céu? Como podem estar unidos o céu e a terra? O pão vivo? Mas o pão fabrica-se! Eles não procuram um sinal. Eles sabem de um saber fechado. Eles são os defensores da realidade face a alguém que descarrila. A sua recriminação testemunha da sua resistência ao acreditável.
A esse saber, Jesus opõe o movimento que atrai para ele: «ninguém pode vir a mim se». É o Pai que atrai, não a vontade. Há em cada um como um poder de atração para este Filho. É ele que alimenta a filiação inscrita em nós como promessa: «todos serão instruídos Deus». Acreditar em Jesus é reconhecer nele uma palavra já ouvida no segredo, palavra do Pai que revela a verdade escondida desde a origem. A origem distingue-se do começo. É o dom da vida sempre presente como uma fonte que não deixa de jorrar. A origem, o Pai, encontra-se onde está o Filho. No universo das Escrituras, o pão dado aos pais por Deus é uma figura do dom originário mas não o próprio dom porque «no deserto os vossos pais comeram e morreram». O pão da vida - pão do Filho - apresenta-se como dom da própria origem e gera nos corpos uma outra perspetiva da vida e da morte.
Tudo se compra ou vende - é o que se chama satisfação das necessidades mais elementares ou mais dispendiosas e fúteis. Estar satisfeito é ter obtido prazer - a satisfação é a marca de que alguma coisa funcionou bem, a marca de um sucesso. A publicidade faz da satisfação do cliente a finalidade do comércio que gloria: «Se não ficar satisfeito, reembolsamos»! É preciso distinguir a pulsão (ser satisfeito mais ou menos por um objeto de consumo) do desejo (que abre ao encontro entre dois sujeitos que se reconhecem a partir de uma mesma origem).
Bem sabia João Crisóstomo: «os ricos nunca põem termo à paixão da riqueza; os pobres esforçam-se por alcançá-los e assim um frenesim incurável os agrilhoa a todos - até a amizade e o parentesco deixam de contar». Quaisquer que sejam os valores que adquiramos pelas nossas próprias forças, nenhum valor acrescentado apaziguará a nossa fome ou sede de ser. Ser desalterado não depende do que podemos ter, pensar ou fazer porque a vida recebe-se gratuitamente. Nós procuramos o que nos falta no objeto de que os sentidos se apropriam de maneira pulsional - a relação com o objeto parcial - o seio, a imagem, o sexo, o dinheiro - apazigua a tensão pulsional.
Sem uma resolução apaziguadora, a tensão pulsional pode aumentar até à dor e ao desprazer. Mas o sujeito do desejo nunca está satisfeito - o conhecimento do outro escapa a qualquer objetivo. Mas nós, como a criança, não vivemos apenas dos objetos que de modos diferentes investimos, nós vivemos também duma presença espiritual que nos atrai, que respiramos. O que é desejado é a Palavra de vida -é esse o desejo do pobre. O pobre é o necessitado: o que quer que faça ou tenha falta-lhe o necessário que é este sopro, este espírito, este «pouco» invisível que transforma o presente em presença.
Ninguém lá chega saturado de riquezas - o desejo não se pode preencher na ordem do ter - o que é desejado não é um objeto pulsional, é a Palavra de vida. A pobreza conduz à alegria recebida e dada sem dinheiro, sem valor de uso ou troca, graciosamente - o pobre encontra a alegria no viver com.
As palavras de Jesus não se dirigem à necessidade de compreender mas ao ser de carne e às pulsões que animam o vivente. Jesus coloca a relação com ele ao mesmo nível de necessidade que a satisfação das nossas pulsões mais elementares. Não são palavras dirigidas a puros espíritos ou a uma carne animal. Despertam a fome e a sede da nossa verdade desconhecida, misturadas com toda a espécie de apetites.
Amar é receber a vida como um dom e não encarniçar-se para conservar o que, inevitavelmente, se perde. A gestão preocupante do futuro é um modo de investimento que faz com que o fim seja aumentar o capital para assegurar o futuro. O que acaba de acontecer é que ao presente do amor se substitui a preocupação obsessiva do futuro. É assim que deixamos de perceber que o presente em que estamos tem o gosto da salvação. O sistema bancário não é a nossa salvação. O Filho do Homem é o corpo de carne atravessado pela Palavra que dá vida desde a origem. Que o Ressuscitado nos dê o gosto da salvação no presente. O amor maior, sem estratégia, é aquele que dá a vida àquele que ama. O que seduz no cristianismo é esta economia do dom sem medida que o Filho encarna e que a Eucaristia torna presente.
José Augusto Mourão
Sábado da quarta semana: Acende a tua candeia
«Ou qual é a mulher que, tendo dez dracmas, se perde uma, não acende a candeia, não varre a casa e não procura cuidadosamente até a encontrar? E, ao encontrá-la, convoca as amigas e vizinhas e diz: Alegrai-vos comigo, porque encontrei a dracma perdida.” Digo-vos: Assim há alegria entre os anjos de Deus por um só pecador que se converte.» (Lucas 15, 8-10)
Esta parábola aparece-nos no capítulo 15 do Evangelho de São Lucas e ombreia com outras duas, talvez mais conhecidas e utilizadas pela Liturgia, as parábolas da Ovelha Perdida e do Filho Pródigo. Por isso, este importante capítulo 15 é também chamado por alguns «o Evangelho dos perdidos».
A experiência de perda marca a nossa existência de várias formas. Perdemo-nos do Pai e da casa paterna. Perdemo-nos na fraternidade. Perdemo-nos no tempo e no redil. Perdemo-nos... Há um espiritual negro que canta: «Por vezes sinto-me perdido como criança sem mãe/Por vezes sinto-me perdido como criança sem mãe».
Ao fazermos o balanço deste tempo da nossa vida assomam, naturalmente, ao nosso coração as suas perdas. Jesus ajuda-nos a encontrarmo-nos, sem disfarçar ou minorar o dramatismo dos nossos desencontros, mas mostrando que eles podem constituir oportunidades para «adentrar-se» no conhecimento de Deus e de nós próprios. Como Moisés, somos chamados a dizer: «Vou adentrar-me mais para ver melhor esta grande visão: por que razão não se consome a sarça?» (Ex 3,3).
O paradoxo do amor de Deus é este: pelas perdas ficámos a conhecer, por exemplo, até que ponto o pastor está disposto a ir para resgatar a ovelha perdida. Ele vasculha o mundo «até a encontrar» (Lc 15,4). E, quando a encontra, «põe-na alegremente aos ombros» (Lc 15,5). Ficámos com o inesquecível retrato daquele Pai que, literalmente, «cobre de beijos» (Lc 15,20) as feridas de amor de ambos os filhos.
Neste contexto, a pequena parábola de Lucas 15,18-10 tem um sabor especial. Diferentemente das outras, ela conta uma perda interior, quase íntima: há uma parte do tesouro que se perde dentro da própria casa.
Penso que, sem grandes explicações, todos sabemos o que é isso. Reparem: não perdemos tudo, nem a maior parte sequer. De dez dracmas a mulher perdeu uma. Quase não se dá por nada. Mas quem vive essa perda, percebe o que isso representa: um arrefecimento, um abrandamento, uma quebra na inteireza de vida, na unidade ampla do sim de amor que nos constitui.
É algo semelhante ao que o Espírito critica à Igreja de Éfeso, no livro do Apocalipse: «Conheço as tuas obras, as tuas fadigas e a tua constância... Tens constância, sofreste por causa de mim e não perdeste a coragem. No entanto, tenho uma coisa contra ti: abandonaste o teu primitivo amor» (Ap 2,2-4). Tendo perdido uma moeda, a vida continua, mas não da mesma maneira.
A maior parte das vezes, o nosso pecado não é apenas deixarmo-nos aprisionar a males concretos, mas é perdermos uma medida alta, exigente e vigilante, a medida profética e inteira do Reino em nós, e conformarmo-nos a isso, como se não nos fizesse realmente falta. Este é um problema espiritual típico de uma vida adulta, de um cristianismo avançado, em que nos espreitam as tentações do cinismo e do desleixo em relação ao «primitivo amor». Mais depressa nos pomos à procura de umas chaves ou de umas moedas que não sabemos onde param... Habituamo-nos, assim, a uma vida espiritual diminuída, amolecida, feita de meias tintas e de meias verdades, e falta-nos a ousadia das verdades inteiras. Desistimos momentaneamente de viver de Deus e de Deus só. Mas é isso que queremos?
Escreve a poeta Sophia de Mello Breyner Andresen: «Meia verdade é como habitar meio quarto/ Ganhar meio salário/ Como só ter direito/ A metade da vida.» De que nos alimentamos e como vivemos nós? Vida inteira ou meia vida?
José Tolentino Mendonça
In O tesouro escondido, ed. Paulinas
5.º Domingo da Quaresma: Fazemos falta a Deus
É de nós que Deus aguarda
A coroação ou a descoroação de uma esperança sua.
Terrível amor, terrível caridade,
Terrível esperança, responsabilidade verdadeiramente terrível,
O Criador tem necessidade da sua criatura, pôs-se a ter necessidade da sua criatura.
Nada pode fazer sem ela.
É um rei que tivesse abdicado nas mãos de cada um dos seus súbditos.
Simplesmente o poder supremo. Deus tem necessidade de nós, Deus tem necessidade da sua criatura.
Por assim dizer condenou-se assim, condenou-se a isso.
Fazemos-lhe falta, a sua criatura faz-lhe falta.
Aquele que tudo é tem necessidade de aquilo que nada é.
Aquele que tudo pode tem necessidade de aquilo que nada pode.
Ele entregou os seus plenos poderes.
Aquele que é tudo nada é sem aquele que nada é.
Aquele que pode tudo nada pode sem aquele que nada pode.
Assim a jovem esperança
Retoma, reverte, refaz.
Restaura todos os mistérios
Como restaura todas as virtudes.
Nós podemos fazer-lhe falta.
Não responder ao seu apelo.
Não responder à sua esperança. Ser-lhe um defeito. Faltar-lhe. Não aparecer.
Terrível poder.
Os cálculos de Deus mediante nós podem não dar certo.
As previsões, as previdências, as providências de Deus
Mediante nós podem não dar certo,
Pela falta do homem pecador.
Os conselhos de Deus mediante nós podem faltar.
A sabedoria de Deus mediante nós pode falhar.
Terrível liberdade do homem.
Nós podemos fazer que tudo falte.
Podemos estar ausentes.
Não acudir no dia em que nos chamem.
Podemos não responder ao apelo
(Exceto no vale do Juízo)
Terrível favor.
Podemos fazer falta a Deus.
Eis a situação em que ele se pôs,
A má situação.
Pôs-se no caso de ter necessidade de nós.
Que imprudência! Que confiança!
Se bem se mal colocada, de nós depende.
Que esperança, que teimosia, que preconceito, que força incurável de esperança.
Em nós.
Que despojamento, de si, do seu poder.
Que imprudência.
Que imprevisão, que imprevidência,
Que improvidência
de Deus.
Nós podemos faltar.
Nós podemos fazer falta.
Nós podemos falhar.
Terrível favor, terrível graça.
Aquele que tudo faz dirige-se àquele que nada pode fazer.
Aquele que tudo faz tem necessidade de aquele que nada faz.
E como nós dobramos os sinos com toda a força pela Páscoa,
A bom dobrar,
Nas nossas pobres, nas nossas triunfantes igreja,
No sol e bom tempo do dia da Páscoa,
Assim Deus por cada alma que se salva
Dobra e redobra os sinos da Páscoa eterna.
Charles Péguy
In O pórtico do mistério da segunda virtude
Segunda-feira da quinta semana: Caridade material e espiritual
A misericórdia, segundo a linguagem bíblica, deve ser feita; «Vai e faz tu também o mesmo (Lc 10, 37), diz Jesus ao doutor da Lei , a quem contou a parábola do samaritano. De Jesus, que realiza curas, diz: «faz tudo bem feito» (Mc 7, 37; cf. At 10, 38). Os discípulos, portanto, a partir de agora conhecem a vontade de Deus: a misericórdia («Prefiro a misericórdia ao sacrifício»: Mt 12,7); e também sabem como eles próprios devem querê-la e praticá-la: seguindo as pegadas deixadas no caminho percorrido por Jesus e aprendendo com Ele, que é «manso e humilde de coração» (Mt 11, 29).
Fundamento da transmissão feita por Deus ao homem da capacidade de «fazer misericórdia» é o mandamento do amor dado por Jesus e a prática de amor que Ele próprio viveu: «Como Eu vos amei, amai-vos também uns aos outros» (Jo 13, 34); «Como o Pai me amou, também Eu vos amei» (Jo 15, 9). Este amor só pode ser concreto e visível, efetivo e não simplesmente afetivo, operante e prático, e não só íntimo e inexpressivo. A primeira carta de João recorda-o várias vezes: «Não amemos com palavras nem com a boca, mas com obras e com verdade (1 Jo 3, 18); «Se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu coração, como é que o amor de Deus pode permanecer nele?» (1 Jo 2, 17); «Aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê (1 Jo 4, 20). (...)
Escreve Ambrósio de Milão: «Seria uma grave culpa se um fiel permanecesse na necessidade, embora tu o soubesses; se tu soubesses que ele está desprovido de meios, sente fome, sofre tribulações, sobretudo se se envergonha da sua indigência; seria grave culpa a tua se, estando ele reduzido à escravidão pelos seus ou fosse caluniado, não o ajudasses; se um justo ee encontrasse na prisão por dívidas, entre penas e tormentos, e não obtivesse nada de ti, no seu sofrimento; se no momento do perigo, quando fosse conduzido à morte, para ti tivesse mais valor o teu dinheiro do que a vida de quem está prestes a morrer».
Em suma, na raiz das obras de caridade está presente o rosto do Deus misericordioso e a necessidade do homem: elas nascem da experiência do amor de Deus e cumprem o mandamento do amor ao próximo.
A ideia de «obras de misericórdia espirituais», a par daquelas ordenadas ao «corpo» do homem, parece brotar da interpretação alegórica do texto de Mateus 25 por parte de Orígenes: as obras aí indicadas têm um valor «material», mas também «espiritual». (...)
Afirma Cesário de Arles: «Tu podes dizer-me: “Não tenho nada para dar ao pobre: não posso jejuar com frequência nem abster-me do vinho e da carne”. Mas porventura podes dizer-me que não podes ter caridade? Essa cuja posse aumenta quanto mais for dada... [Com efeito], há duas formas de esmola: uma do coração e outra do dinheiro. A esmola do coração consiste em perdoar a ofensa sofrida. Por vezes, gostarias de dar alguma coisa a um pobre, mas não tens nada; pelo contrário, perdoar ao pecador, podes sempre fazê-lo, basta que o queiras. Pode acontecer que não tenhas nada para dar aos pobres, nem ouro, nem prata, nem roupa, nem trigo, nem vinho, nem tampouco azeite; mas, quanto a amar todos os homens, a querer para os outros aquilo que queres para ti e a perdoar aos teus inimigos, nunca poderás encontrar justificações para não o fazeres. Com efeito, se na tua adega ou no teu celeiro não há nada que possas dar, podes sempre extrair, do bom tesouro do teu coração, qualquer coisa para oferecer».
Luciano Manicardi
In " caridade dá que fazer, ed. Paulinas
Terça-feira da quinta semana: Deus é vidente do coração
1. Pelo chamamento do Nome sagrado, os inimigos perdem força. Porque temos disso conhecimento, não deixamos de invocar o nome de Deus em nossa ajuda. É isso que é a oração. A Escritura diz: «reza sem cessar» (1 Ts 5, 17).
2. Lembra-te que Deus é vidente do coração, olha para ele. Chama-o para o teu coração, pois vem na Escritura: «fecha a porta, reza em, segredo ao teu Pai» (Mt 6, 6). Fechemos pois a boca, e rezemos no coração. Aquele que fecha a boca e invoca Deus, ora-lhe no coração, cumpre o mandamento.
3. O teu trabalho do coração deve constar da oração permanente a Deus. Se quiseres ser bem sucedido, inicia o trabalho sem preguiça, com esperança, e Deus abençoar-te-á pelo sucesso.
4. O chamamento permanente do Santo Nome é o medicamento que mata não só as paixões, mas a própria ação. Assim, como o médico investiga qual o medicamento mais adequado ou o emplastro que melhor vai tratar a ferida do doente, e ele atua sem que a pessoa tenha consciência disso, assim, ao chamarmos pelo nome de Jesus, matamos as paixões, sem termos a noção de como isso aconteceu.
5. O Senhor disse: «pedi e ser-vos-á dado» (Lc 11, 9). Ora ao Deus Sacro, para que Ele te envie o Espírito Santo Consolador e que Este, ao chegar, te ensine tudo e revele os seus segredos. Tem-no como guia, que Ele não permite que haja fascínios ou distrações no coração, não deixa passar a incúria para o pensamento, não permite distrações ou sonolências, fortalece o coração, eleva a mente. Agarra-te a Ele, tem fé nele, ama-o.
6. Quando tiveres a sensação que as artimanhas do inimigo te impedem de orar, não entres com ele em discussão, esforça-te por chamares pelo Santo Nome, que Deus ajudar-te-á e anula as espertezas dos inimigos.
7. Da verdadeira oração consta a conversa com Deus, sem distrações, reunindo todos os nossos sentimentos. O homem atinge esse patamar quando morre para toda a gente, para o mundo e para tudo o mais. Durante a oração, não deve ter nada no pensamento para além de estar com Deus e com Ele conversar.
Sermões de São Varsonofi, o Grande, e de São João
In Relatos de um peregrino russo, ed. Paulinas
Quarta-feira da quinta semana: Respirar Deus
A atenção é o mutismo permanente do coração, onde com Jesus Cristo, Filho de Deus e Deus, e só com Eles, respira e chama por Ele sem interrupção, permanentemente, e com Ele corajosamente luta contra os inimigos, e a Ele, que tem o poder, confessa os seus pecados.
A abstinência é a forte implementação e permanência da mente à porta do coração. Desse modo, ela vê como os pensamentos indesejados se aproximam, ouve o que dizem e fazem estes géneros do mal, qual a imagem que os demónios desenham para melhor a arrebatarem para o sonho e assim seduzi-la. Se agirmos com firmeza, então ela mostrar-nos-á a arte da luta contra esses pensamentos.
Os tipos de abstinência: primeiro - olhar consciente para os sonhos, ou para as propostas; segundo - ter o coração sempre profundamente silencioso, e, em silêncio, afastar-se de qualquer intento, e rezar; terceiro – invocar humildemente a ajuda permanente de Nosso Senhor, Jesus Cristo; quarto - ter na alma a permanente lembrança da morte; quinto, o mais eficiente de todos - olhar para o céu, sem se lamentar na terra. (...)
Como o sal dá bom sabor ao pão e a qualquer outra comida, evita que a carne se deteriore, e mantém-na intacta durante muito tempo, assim se entende a conservação no coração do feliz pensamento e da maravilhosa ação. Estas ações temperam, de uma forma sagrada, o interior e o exterior do homem, afastam a fetidez dos pensamentos maus e mantém-nos permanentemente na bondade.
Quanto mais vigilante a mente estiver, mais ardente será o teu desejo de orar a Jesus, e também, quanto mais negligentemente vigiares a mente, mais dele te afastarás. E, como a vigilância ilumina fortemente o ar da mente, assim a abstinência do doce chamamento de Jesus, normalmente entristece-a.
O permanente chamamento de Jesus, com desejo caloroso, cheio de felicidade e alegria, leva a que o ar do coração, da extrema atenção se encha do delicioso silêncio. Acontece a mesma coisa para que a oração se purifique completamente. Jesus Cristo, Filho de Deus.
A condição sagrada surge da lembrança permanente e do chamamento de Nosso Senhor, Jesus Cristo, em harmonia com Ele, na abstinência e com a oração na mente, como uma ação única e necessária. Em verdade, para que esta ação se realize sempre da mesma maneira devemos invocar o nome de Jesus Cristo. Chamamo-lo com o coração ardente, para que Ele connosco comungue e para que saboreemos o seu nome. A repetição é a mãe dos hábitos, tanto em relação aos bons, como em relação aos vícios, e o hábito acaba por dominar como a natureza. Chegados a uma tal situação, a própria mente procura os seus inimigos, como o cão de caça procura a lebre nos arbustos. Enquanto o cão procura para comer, a mente procura para derrotar e expulsar.
O grande David, o mais experiente nestes assuntos, diz ao Senhor: «Ó minha força, é para ti que eu me volto, pois Tu, ó Deus, és a minha fortaleza» (Sl 59 [58],10). Assim, a guarda da força do silêncio do coração e do pensamento, do qual nascem todas as virtudes, depende da colaboração do Senhor, que nos transmite os ensinamentos quando o chamamos sempre, e afasta-se de nós, quando desnecessariamente o esquecemos, e acaba com o silêncio do coração, tal como a água acaba com o fogo. Por isso, não te entregues à incúria do sono pernicioso e, em nome de Jesus Cristo, flagela os teus inimigos. Este doce Nome agarra-se à tua respiração e reconhecerás o fruto do silêncio.
Sermões de Santo Isaías, O Presbítero, de Jerusalém
In Relatos de um peregrino russo, ed. Paulinas
Quinta-feira da quinta semana: O alimento do jejum
Dentre todos os ensinamentos divinos, devemos explicar de preferência, com a ajuda do Senhor, o que escutamos agora em último lugar: Alegre-se o coração dos que procuram o Senhor (Sl 104, 3).
Além disso, vem muito a propósito o facto de sentirmos o efeito do jejum nos nossos ventres. Alegrar-se-á o nosso coração, se sentirmos que as nossas mentes passam fome. Quando nos nossos banquetes se servem algumas iguarias saborosas, logo se alegram as fauces dos que procuram o alimento. Quando diante de nós se apresentam quadros de várias cores e agradavelmente pintados, logo se alegram os olhos dos que procuram ver algo estético. Alegram-se os ouvidos dos que procuram a melodia. Alegra-se o olfato dos que procuram os bons odores. Alegre-se o coração dos que procuram o Senhor.
Sem dúvida que cada realidade, que se apresenta diante dos nossos diversos órgãos dos sentidos, deleita cada um dos sentidos. Na verdade, não é o som que deleita o olhar, nem a cor que deleita o ouvido.
Ora, para o nosso coração, o Senhor é luz, é voz, é odor e é alimento. E, pelo facto de Ele não ser nada disto, é que Ele é tudo isto. E, pelo facto de Ele ser o criador de tudo isto, é que Ele não é nada disto. Ele é luz para o nosso coração, e por isso lhe dizemos: «Na tua luz veremos a luz» (Sl 35, 10). Ele é som do nosso coração, e por isso lhe dizemos: «Far-me-ás ouvir uma palavra de gozo e de alegria» (Sl 50, 10). É odor para o nosso coração, e é por isso que se diz acerca dele: «Nós somos o bom odor de Cristo» (2 Cor 2, 15). Mas se vós, por terdes jejuado, andais à procura de alimento, «Felizes os que têm fome e sede de justiça» (Mt 5, 6). Ora do próprio Senhor Jesus Cristo se disse que se fez para nós justiça e sabedoria (cf. 1 Cor 1, 30).
Eis que o manjar já está preparado. Cristo é justiça e nunca falta. Esse manjar não nos é preparado por nenhum cozinheiro, nem nos é trazido de além-mar por mercadores, como os frutos exóticos. É alimento que pode ser saboreado por todo aquele que tem sãs as fauces do homem interior. É alimento que, referindo-se a si mesmo, diz: «Eu sou o pão vivo que desceu do céu» (Jo 6, 51). É alimento que restabelece e que não se acaba. É alimento que não desaparece, quando se consome. É alimento que sacia os famintos e permanece inteiro. Quando fordes daqui para as vossas mesas, não podereis comer nada assim.
Ora, uma vez que viestes para receber este manjar, comei-o bem. Mas quando fordes embora, digeri-o bem. Com efeito, come-o bem e digere-o mal, aquele que ouve a palavra de Deus e não a põe em prática (cf. Mt 7, 26). Na verdade, a esse não lhe aproveita o suco proveitoso do alimento, mas com a indigestão acaba por vomitar o alimento cru e enjoativo.
Santo Agostinho
Sermão 28, sobre o Salmo 104, pregado durante o jejum quaresmal
Trad.: Fr. Isidro Lamelas
Sexta-feira da quinta semana: Se Deus é amor, a caridade não deve ter fim
Diz o Senhor no Evangelho de João: Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros (Jo 13,35). E também se lê numa Carta do mesmo Apóstolo: Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece Deus. Quem não ama, não chegou a conhecer Deus, pois Deus é amor (1Jo 4,7-8).
Examine-se a si mesmo cada um dos fiéis, e procure discernir com sinceridade os mais íntimos sentimentos de seu coração. Se encontrar na sua consciência algo que seja fruto da caridade, não duvide que Deus está com ele; mas esforce-se por tornar-se cada vez mais digno de tão grande hóspede, perseverando com maior generosidade na prática das obras de misericórdia.
Se Deus é amor, a caridade não deve ter fim, porque a grandeza de Deus não tem limites. Para praticar o bem da caridade, amados filhos, todo o tempo é próprio. Contudo, estes dias da Quaresma, a isso nos exortam de modo especial. Se desejamos celebrar a Páscoa do Senhor com o espírito e o corpo santificados, esforcemo-nos o mais possível por adquirir essa virtude que contém em si todas as outras e cobre a multidão dos pecados.
Ao aproximar-se a celebração deste mistério que ultrapassa todos os outros, o mistério do sangue de Jesus Cristo que apagou as nossas iniqüidades, preparemo-nos em primeiro lugar mediante o sacrifício espiritual da misericórdia; o que a bondade divina nos concedeu, demo-lo também nós àqueles que nos ofenderam.
Seja, neste tempo, mais larga a nossa generosidade para com os pobres e todos os que sofrem, a fim de que os nossos jejuns possam saciar a fome dos indigentes e se multipliquem as vozes que dão graças a Deus. Nenhuma devoção dos fiéis agrada tanto a Deus como a dedicação para com os seus pobres, pois nesta solicitude misericordiosa ele reconhece a imagem de sua própria bondade.
Não temamos que essas despesas diminuam nossos recursos, porque a benevolência é uma grande riqueza e não podem faltar meios para a generosidade onde Cristo alimenta e é alimentado. Em tudo isso, intervém aquela mão divina que ao partir o pão o faz crescer, e ao reparti-lo multiplica-o.
Quem dá esmola, faça-o com alegria e confiança, porque tanto maior será o lucro quanto menos guardar para si, conforme diz o santo Apóstolo Paulo: Aquele que dá a semente ao semeador e lhe dará pão como alimento, ele mesmo multiplicará vossas sementes e aumentará os frutos da vossa justiça (2Cor 9,10), em Cristo Jesus, nosso Senhor, que vive e reina com o Pai e o Espírito Santo pelos séculos dos séculos. Amen.
S. Leão Magno
Sábado da quinta semana: Reaprender a arte da procura (I)
«Qual é a mulher que, tendo dez dracmas, se perde uma, não acende a candeia, não varre a casa e não procura cuidadosamente até a encontrar? E, ao encontrá-la, convoca as amigas e vizinhas e diz: “Alegrai-vos comigo, porque encontrei a dracma perdida.” Digo-vos: Assim há alegria entre os anjos de Deus por um só pecador que se converte.» (Lucas 15, 8-10)
A mulher tinha dez moedas e, tendo perdido uma, não pensou comodamente que ainda ficaria com nove: decidiu procurar a parte perdida do seu tesouro. «Tu és a minha esperança, ó Senhor Deus, e a minha confiança desde a juventude», reza o Salmo 71. E há uma juventude de alma que aqui se joga. A mulher não culpou ninguém pela perda, não procurou bodes expiatórios, não ficou de mau humor, nem deprimida... mas também não se deixou ficar de braços cruzados.
E nós? Se calhar ainda nos restam nove ou sete ou cinco ou três moedas... E podemo-nos tentar consolar e enganar com elas, fingindo que não damos pela falta de uma outra vida, de uma outra frescura, de um coração inteiro. O primeiro momento da reconciliação é a decisão interior que nos leva a retomar, precisamente, a arte da procura e da inteireza. «Para ser grande, sê inteiro», dizia Fernando Pessoa. E o grande desafio da vida espiritual não é, claro, o da grandeza, mas o da inteireza. Sermos nós próprios. A pequena parábola de Lc 15,8-10 oferece-nos uma espécie de pedagogia da inteireza, propondo-nos um itinerário:
Acender a luz
Às escuras não vejo nada, repito apenas a escuridão que tende a ampliar-se e a confundir-nos. Preciso, por isso, da luz de Deus para me poder olhar. «A lâmpada de Deus não se apagou» (l Sm 3,3).
O importante nos balanços espirituais que podemos fazer da nossa história não é tanto a mera perscrutação com os nossos olhos humanos. Como bem explica São Paulo, «nós vemos como num espelho e de maneira confusa» (l Cor 13,12). «O Verbo é a Luz verdadeira, que, ao vir ao mundo, a todo o homem ilumina», diz-nos o Prólogo de São João (Jo 1,9). Acendamos a palavra do Verbo de Deus no nosso coração, tomemos Jesus como critério. «Em ti está a fonte da vida e é na tua luz que vemos a luz» (SI 36,10). «Quanto tempo perdido, quanto trabalho adiado, por inadvertência deste ponto. Tudo se define a partir de Cristo» - recordou-nos com audácia Bento XVI, na sua visita a Portugal.
Cumpra-se a promessa de Isaías que os Evangelhos ecoam: «O povo que jazia nas trevas viu uma grande luz; e aos que jaziam na sombria região da morte irrompeu uma claridade» (Mt 4,16). Façamos nossa a oração de Pedro: «A quem iremos nós, Senhor? Só Tu tens palavras de vida eterna!» (Jo 6,68).
José Tolentino Mendonça
In O tesouro escondido, ed. Paulinas
6.º Domingo da Quaresma: Reaprender a arte da procura (II)
«Ou qual é a mulher que, tendo dez dracmas, se perde uma, não acende a candeia, não varre a casa e não procura cuidadosamente até a encontrar? E, ao encontrá-la, convoca as amigas e vizinhas e diz: “Alegrai-vos comigo, porque encontrei a dracma perdida.” Digo-vos: Assim há alegria entre os anjos de Deus por um só pecador que se converte.» (Lucas 15, 8-10)
Varrer
Varrer é um verbo ativo. Não fico apenas a lamentar o sucedido. Aceito «varrer», limpar, transformar, aclarar. Amontoam-se poeiras e desordens de todo o tipo. Penso, muitas vezes, no minúsculo planeta do Principezinho, a personagem criada por Saint-Exupéry.
«Como em todos os planetas, no planeta do Principezinho havia ervas boas e ervas daninhas e, logo, sementes boas de ervas boas e sementes daninhas de ervas daninhas. Mas as sementes são invisíveis. Dormem no segredo da terra até que a uma lhe dê para acordar... Então, espreguiça-se e começa a lançar timidamente um pequeno rebento inofensivo e encantador em direção ao Sol. Se é um rebento de rabanete ou de roseira, pode crescer à vontade. Mas mal se perceba que é de uma planta daninha, é preciso arrancá-lo imediatamente. No planeta do Principezinho havia umas sementes terríveis... eram as sementes de embondeiro. O solo estava infestado delas. Ora, se só se reparar num embondeiro quando este já for bastante grande, nunca mais ninguém se vê livre dele. Atravanca o planeta todo. Esburaca-o com as raízes. E um planeta muito pequeno, com muitos embondeiros, acaba fatalmente por explodir. "É uma questão de disciplina", dizia-me, dias depois, o Principezinho. "De manhã, quando nos levantamos, lavamo-nos e arranjamo-nos, não é? Pois lá também é preciso ir limpar e arranjar o planeta"... Às vezes, não faz mal nenhum deixar um trabalho para depois. Mas com os embondeiros, é sempre uma catástrofe. Uma vez fui a um planeta habitado por um preguiçoso. Não esteve para se ralar com três arbustos...»
Mesmo se a nossa vida se parece a um ínfimo planeta, os trabalhos são inúmeros e diários. No fundo, trata-se de aceitar que a vida reclama de mim, nesta hora, um enérgico sim. Tenho de lutar para ser eu. Se não varrer a minha casa, ela deixa de ser habitável, deixa de ser minha...
No diário de Paul Claudel há uma frase curiosa: «A vida espiritual não é uma questão de portas, mas de janelas.» De facto, não se trata de sair do que sou ou de buscar na exterioridade a solução, mas de abrir as janelas e deixar o ar de Deus entrar, deixar circular o vento do Espírito.
Procurar cuidadosamente
A nossa procura de conversão não é exterior. Não pretendemos chegar a fazer uma tabela ou uma lista onde amontoamos as nossas imperfeições, como se entre elas não existisse um nexo... e nesse nexo não estivesse, de facto, o que eu sou. Há razões de fundo e obstáculos interiores em nós que é necessário identificar. «Procurar cuidadosamente», ensina a mulher da parábola. Nós também temos de ir ao fundo e procurar a raiz daquilo que nos desvitaliza espiritualmente. Talvez seja um enorme, um terrível medo... Talvez seja uma insegurança fundamental no amor de Deus... Talvez me falte a confiança e também, por isso, a minha coragem é incipiente... Talvez tudo nasça de uma incapacidade de perdoar, isto é, de sobrepor às feridas e humilhações sofridas a certeza de que o amor é o único bem... Eu procuro cuidadosamente. Pudéssemos nós dizer com Santa Teresa Benedita da Cruz: «A minha procura da verdade foi autenticamente uma oração.»
Alegrai-vos comigo
A reconciliação ficaria inacabada se ela não desembocasse num reencontro com a alegria. Muitas vezes, a alegria é circunstancial: contamos ou ouvimos uma história engraçada, há uma situação divertida que se cria, etc. Mas a mulher alude a uma coisa diferente quando diz: «Alegrai-vos comigo.» Há uma genuína e transbordante alegria por aquilo que Deus faz acontecer em nós: a revitalização surpreendente e pascal da nossa vida. A alegria não é, então, um aparato exterior, mas nós próprios nos tornamos motivo de alegria uns para os outros, uma alegria sentida não apenas na terra, mas que invade os próprios céus.
José Tolentino Mendonça
In O tesouro escondido, ed. Paulinas
Meu querido Jesus,
Desde a minha infância que me chamaste e me guardaste para ser Tua - e agora que ambos tomámos a mesma estrada - agora Jesus - eu vou no sentido errado.
Dizem que os que estão no inferno sofrem uma dor eterna devida à perda de Deus - que estariam dispostos a sofrer tudo aquilo se tivessem a mais pequena esperança de possuir a Deus. - Na minha alma sinto justamente essa dor terrível da perda - de Deus não me querer - de Deus não ser Deus - de Deus não existir realmente (Jesus perdoa-me estas blasfémias por favor - disseram-me que escrevesse tudo). Esta escuridão que me rodeia por todos os lados - não consigo elevar a alma para Deus - nem luz nem inspiração alguma me entram na alma. - Falo do amor pelas almas - de um terno amor a Deus – as palavras passam-me pelas palavras [sic, lábios] - e eu anseio com uma ânsia profunda acreditar nelas. - Porque trabalho? Se Deus não existe – a alma não pode existir. - Se a Alma não existe então Jesus — também Tu não és verdade. - O Céu, que vazio - nem um pensamento do Céu me entra no espírito - porque não há esperança. - Tenho receio de escrever estas coisas horríveis que me passam pela alma. – Devem magoar-Te.
No meu coração não há fé - nem amor - nem confiança - há tanta dor - a dor da ânsia, a dor de não ser querida. - Quero a Deus com toda a força da minha alma - mas há entre nós - esta separação terrível. - Deixei de rezar - pronuncio as palavras das orações da comunidade - e faço tudo o que posso para retirar de cada palavra toda a doçura que ela tem para dar. - Mas a minha oração de união deixou de lá estar. - Deixei de rezar. - A minha alma deixou de estar unida a Ti - e contudo quando ando sozinha pelas ruas - falo Contigo durante horas seguidas - da minha ânsia de Ti. - Que íntimas são tais palavras - e no entanto que vazias, porque me deixam longe de Ti. -
O trabalho não me traz alegria, nem atrativo, nem zelo. Lembro-me de dizer à Madre Provincial que saía de Loreto - pelas almas - por uma única alma - e ela não compreendeu as minhas palavras. - Faço o possível. - Gasto-me - mas estou mais do que convencida - de que a obra não é minha. Não duvido de que foste Tu que me chamaste, com tanto amor e tanta força. - Foste Tu - eu sei que foste. É por isso que a obra é Tua e continuas a ser Tu - mas deixei de ter Fé - não acredito. - Jesus não permitas que a minha alma seja enganada - não permitas que eu engane seja quem for.
No chamamento disseste-me que eu teria de sofrer muito. - Dez anos - meu Jesus, fizeste em mim segundo a Tua vontade - e Jesus ouve a Minha oração - se isto Te agrada - se a minha dor e o meu sofrimento - a minha escuridão e a minha separação Te proporcionam uma gota de Consolo - meu querido Jesus, faz de mim o que quiseres - enquanto quiseres, que nada te importem os meus sofrimentos e a minha Dor. Sou Tua. - Imprime na minha alma e na minha vida os sofrimentos do Teu Coração. Não Te importes com o que eu sinto. - Não Te importes sequer com a minha dor. Se a minha separação de Ti, - levar outros a Ti e no seu amor e na sua companhia Tu encontrares alegria e satisfação - pois bem, Jesus, estou disposta com todo o meu coração a sofrer tudo o que sofro - não apenas agora - mas para toda a eternidade – se tal fosse possível. Apenas quero a Tua felicidade. – Quanto ao resto . por favor não Te incomodes – mesmo que me vejas desmaiar de dor. – Tudo isto é a minha vontade – quero saciar a Tua Sede com cada gota de sangue que possas encontrar em mim. – Não me permitas fazer-Te mal seja de que maneira for – tira-me a capacidade de Te magoar. – De alma e coração trabalharei pelas Irmãs – porque são Tuas. Todas e cada uma delas – são Tuas.
Peço-Te apenas uma coisa – por favor não Te incomodes a regressar depressa. Estou disposta a esperar por Ti para toda a eternidade. –
A Tua pequenina
Beata Teresa de Calcutá
In Vem, sê a minha luz, ed. Alêtheia
Terça-feira da Semana Santa: Luís Miguel Cintra lê o Evangelho da Paixão de Jesus segundo São Marcos
Princípio da narrativa da Paixão de Jesus Cristo no Evangelho segundo São Marcos: «Faltavam pois dois dias para chegar a Páscoa, em que se começavam a comer os pães asmos e os príncipes dos sacerdotes e os escribas andavam buscando modo como prenderiam por traição a Jesus, para o matarem, mas eles diziam: “Não convém que isto se faça no dia da festa, para não suceder que no povo se excite algum motim”».
Quarta-feira da Semana Santa: Luís Miguel Cintra lê o Evangelho da Paixão de Jesus segundo São Mateus
«Foi Jesus a uma granja chamada Getsémani e disse a seus discípulos: “Assentai-vos aqui enquanto eu vou acolá e faço oração”. E tendo tomado consigo a Pedro e aos dois filhos de Zebedeu, começou a entristecer-se e a angustiar-se. Disse-lhes então: “A minha alma está numa tristeza mortal. Demorai-vos aqui e vigiai comigo.” E adiantando-se uns poucos de passos prostrou com o rosto em terra fazendo oração e dizendo: “Pai meu, se é possível passe de mim este cálice. Todavia não se faça nisto a minha vontade mas sim a tua”.»
Quinta-feira da Semana Santa: Luís Miguel Cintra lê o Evangelho da Paixão de Jesus segundo São Lucas
«E chegada que foi a hora, pôs-se Jesus à mesa e com ele os doze apóstolos. E disse-lhes: “Tenho desejado ansiosamente comer convosco esta Páscoa antes da minha Paixão. Porque vos declaro que não a tornarei mais a comer até que ela se cumpra no Reino de Deus”. E depois de tomar o cálice deu graças e disse: “Tomai-o e distribuí-o entre vós. Porque vos declaro que não tornarei a beber do fruto da vide enquanto não chegar o Reino de Deus”.
Sexta-feira da Semana Santa: Luís Miguel Cintra lê o Evangelho da Paixão de Jesus segundo São João
«“Eu dou-vos um novo mandamento: Que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos amei, para que vós mutuamente vos ameis. Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros.” Disse-lhe Simão Pedro: “Senhor, para onde vais tu?”. Respondeu-lhe Jesus: “Para onde Eu vou não podes tu agora seguir-me, mas seguir-me-ás depois”. Disse-lhe Pedro: “Por que não posso eu seguir-te agora? Eu darei a minha vida por ti”. Respondeu-lhe Jesus: “Hás-de dar a tua vida por mim. Em verdade, em verdade te digo que não cantará o galo sem que tu me negues três vezes. Não se turbe o vosso coração. Credes em Deus, crede também em mim”. (...) “Como o Pai me amou, assim vos amei Eu. Permanecei no meu amor.”»
Sábado Santo: A oitava palavra sobre a Cruz
«As últimas sete palavras do nosso Redentor sobre a Cruz» configuram uma artificiosa montagem, tomando os relatos da Paixão dos quatro Evangelhos canónicos. Estas sequências bíblicas mantêm, entre si, linhas de continuidade narrativa (para simplificar: perspectivam, segundo a mesma fé, uma história comum), mas fazem-no sem abdicar de uma estratégia literária e teológica diferenciada, a ponto de ser reconhecível a voz, e o timbre da voz, de cada evangelista. Em Marcos, por exemplo, a cruz é o momento da revelação do segredo messiânico de Jesus, mantido a custo, mas mantido, ao longo de toda a narrativa. Contudo, o centurião romano que ali declara, como elocução culminante, «este homem era verdadeiramente filho de Deus», em Lucas profere algo que diz o mesmo e outra coisa: «este homem era verdadeiramente justo». Lucas escreve para judeo-cristãos, mas também para cristãos vindos do paganismo, e aquele “verdadeiramente justo” tem uma duplicidade semântica que visa o seu heterogéneo auditório: Jesus é tanto o inocente, vitimado pelos aparelhos religioso e político (coisa que um grego ou um romano poderiam entender), como é o «justo sofredor», essa figura atravessada por referências profético-messiânicas, que alguém de cultura judaica certamente decifraria.
As composições litúrgicas medievais, ou boa parte do teatro sagrado coevo e posterior, mostram-se, porém, mais interessados em retirar um argumento dramático coeso, do que propriamente iluminar destrinças. Daí irrompeu uma tradição. O próprio Franz Haydn o testemunha, descrevendo cenograficamente a liturgia para que acedeu compor, corria o ano de 1786:
«Ao meio-dia, as portas da Igreja eram fechadas e a cerimónia tinha início. Após um prelúdio estipulado, o bispo subia ao púlpito, proclamava a primeira das sete palavras e pronunciava um sermão acerca dela. Tendo terminado, descia e prostrava-se diante do altar. Esta pausa era preenchida com música. Depois o bispo pronunciava a segunda palavra, a terceira, e assim por diante, enquanto que a música sucedia às respectivas prédicas».
"As últimas sete palavras" constituem uma meditação sobre a morte de Jesus. Num texto que escreveu sobre a sequência da Páscoa (e que intitulou - justamente! -, “Uma das mais belas histórias do mundo”), a romancista Marguerite Yourcenar diz que o estatuto destas derradeiras palavras nos obriga, talvez, a aproximá-las das breves recomendações, comovedoras mas afinal muito frequentes, que, por exemplo, jovens soldados trocam entre si diante do perigo ou murmuram a um companheiro antes de fechar os olhos para sempre: um pedido para que se cuide da mãe ou se faça chegar a notícia a um irmão querido; uma palavra de encorajamento dirigida aos que restam, um ténue gesto de afecto, quase invisível já de tão extremo. O texto de Yourcenar sublinha, assim, como a morte de Jesus, na sua singularidade, se torna ícone do incontável sofrimento do mundo.
Mas o que as "Sete palavras" declinam não é simplesmente a monodia do drama humano. Há um segredo entre estas palavras. O dispositivo narrativo criado pela colagem dos textos salta de evangelho para evangelho, mas começa e acaba com Lucas («Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem» - Lc 23,24, ao princípio, e, «Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.» - Lc 23, 46, ao concluir). No desenho inclusivo que os dois momentos estabelecem, percebe-se que o destinatário das palavras de Jesus não é um confidente qualquer: é o próprio Deus. E o modo como Jesus o evoca, chamando-o Pai, confere ao diálogo uma densíssima intimidade, tanto mais paradoxal quanto ele é se encontra na situação de um anátema, prestes a padecer uma morte reservada aos infiéis, e afronta o aparente e inexpugnável silêncio da parte de Deus.
Mas há um segredo. É o da expressão derradeira, já depois de proferidas todas as palavras, e que apenas Marcos e Mateus nos transmitem. Entre as “Sete palavras” inseria-se já um grito: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» (ou «Meu Deus, Meu Deus a que me abandonaste?», segundo algumas traduções contemporâneas). Mas depois desse, Jesus soltou ainda um outro grito, e então expirou. Perante este último, o véu do templo rasgou-se em dois, de alto a baixo. Isto é, o sagrado perde a sua reserva e desloca-se para o profano mais escandaloso: na carne daquele inocente, no corpo torturado, no lancinante silêncio que sucedeu ao seu grito reside agora a revelação de Deus.
Percebe-se, então, que todas as palavras anteriores se ligam misteriosamente a esta oitava palavra, e todas juntas se elevam diante de nós como uma aporia intransigente e intemporal. Contemplamos o mistério de Deus e o do Homem no mais devastador silêncio que o mundo conheceu. Mas desse, precisamente, partirá o “grande levantamento”, a “radical insurreição”.
José Tolentino Mendonça
Domingo de Páscoa: A ressurreição
«No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi de manhãzinha, ainda escuro, ao sepulcro e viu a pedra retirada do sepulcro. Correu então e foi ter com Simão Pedro e com o outro discípulo que Jesus amava e disse-lhes: “Levaram o Senhor do sepulcro e não sabemos onde O puseram”. Pedro partiu com o outro discípulo e foram ambos ao sepulcro. Corriam os dois juntos, mas o outro discípulo antecipou-se, correndo mais depressa do que Pedro, e chegou primeiro ao sepulcro.»
Imagens: Agnes Martin
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Atualizado em
04.03.14