/head
O texto que define o paradigma ecológico de forma totalmente não-maniqueia, isto é, de modo em que o absoluto ontológico que constitui o ato do mundo é – e é apenas – inteiramente positivo é Génesis 1. Esta leitura não é uma leitura religiosa. A sua interpretação pode ser religiosa, mas o cerne lógico – segundo o «logos» humano – do texto não é religioso.
Trata-se da evidência humanamente haurida da absoluta bondade do ato prístino do real, incluindo neste o próprio real antropológico. É interessante que a versão dos LXX use, quando refere, no que é a linguagem própria do mito onto-poiético, o termo «anthropon» («ἂνθρωπον») aquando da criação do ser humano (1, 26), assim se referindo necessariamente à complementar dualidade sexual e genérica da humanidade; é em 1, 27 que surge a referência à diferenciação em macho «arsen» («ἂρσεν»), e fêmea «thely» («θῆλυ»).
Ora, após cada momento de sucessiva poiese – nós dizemos «criação» – dos elementos que constituem o ato dinâmico e cinético do mundo, esse que, precisamente, cria o mundo, o poeta do mundo, afirma, ao que parece para si próprio e para um possível eco mundano, que, também sucessivamente, tudo o que acabou de poetizar, de criar, é bom. Bom sem qualquer restrição.
Em termos laicos, é apenas o sentido do infinito atual que medeia entre o nada abosolto e o haver algo, por mais ínfimo que seja, que permite, metafisicamente, intuir que isso que assim poetisa o mundo, quer dizer, que, através de tal poema, impede o nada do mundo, tem de ser infinitamente potente na relação com o nada ou, falho tal, exatamente, nada: nem poeta, nem poema, nem escrita sobre tal. É nesta intuição e seu sentido que se apoia a noção do divino – não o do Pascal beato, claro, mas o do Pascal metafísico e matemático – como isso que é capaz de justificar «que haja ser e não nada», consequentemente, de forma poética fundamental, que haja mundo.
Ainda nada disto é religioso. Trata-se apenas da evidência de que há um necessário infinito ontológico atual que impede o nada. A este infinito, o Génesis, em 1, atribui a qualidade poética que explica miticamente o ser do mundo.
O mito situa imediatamente o ato cultural que é na fronteira do religioso com o não-religioso. Todos os mitos servem para dar razão, precisamente poética, simbólica, de tudo isso para que não há forma não-mítica de discurso, de «logos»: e não há «logos»/palavra porque não há «logos»/intuição.
Génesis diz, em 1, então, da maravilha que o ser humano encontrou logicamente no mundo em que se encontrou, e de que não se achou como fonte ontológica cabal: isso que tenha posto isto em ser pô-lo como algo de perfeita beleza, manifestação da perfeita bondade do poema, entendido como necessário reflexo da bondade do poeta. Deste ponto de vista, Génesis 1 é o poema que canta a perfeição própria do mundo como criatura. Esta perfeição não pode, neste momento da existência do mundo, ser comparada com qualquer outra forma menor, pois, exatamente, nunca houve qualquer forma menor (a forma maior é a do poeta).
A grandeza do ato do mundo decorre do contraste absoluto com o absoluto da sua inexistência, sem mais; da sua impresença; da sua anterior impresença. Daqui, desta intuição, nasce o sentido de que o mundo é criado a partir do nada, ou, já em terreno propriamente religioso, de que Deus cria o mundo a partir do nada.
Ora, tal não é logicamente possível. A intuição de Génesis 1 implica que haja isso que, impedindo o nada, pode criar. Pode criar. O que quer dizer, logicamente, que pode não criar. É a partir de esta possibilidade de poder não criar – diversa de mitos necessitaristas em que o mundo é necessariamente posto em ser, diversa mesmo da metafísica platónica e de seus discípulos – que nasce a intuição segundo a qual o poeta do mundo – seja isso o que for ou quem for – é algo de comparável a um ato que é compreensível a partir do sentido humano próprio do que é o ato de vontade: o poeta do mundo cria não por necessidade – sol-bem platónico, uno plotiniano, ambos produtores necessários –, mas porque quer.
Como este querer analogado antropologicamente significa dar o ser a algo que, em absoluto, o não tinha, tal significado constitui o paradigma do que é o amor: querer o bem de algo ao ponto de tal querer se «materializar» ontologicamente como o ser desse mesmo algo.
Génesis 1 narra, assim, a eclosão do absoluto do ser do mundo, na sua imensa variedade, fruto da diferença poética que constitui cada paradigma ontológico, dado no escalonamento dos sete dias, como se de um poema de sete versos se tratasse, em que o «logos» do poeta, não magicamente, mas no e do acorde das duas notas da sua voz, o amor e a palavra, «retira» do nada todas as coisas.
De notar, ainda, que o poeta não produz coisas estáticas, fixas, mas dons de possibilidade, possibilidades de possibilidades, se se quiser; sementes de ato, se se preferir. O dom do poeta do mundo não é um poema acabado, mas o mote poético perfeito como convite a que cada criatura, em seu modo ontológico próprio, seja, também ela, um poeta, copoeta, alargando infinitamente a diferencialidade e a diferença do poema inicialmente posto pelo primeiro poeta.
Ora, até ao fim do poema posto em Génesis 1 não há senão beleza, manifestação ontológica do ontológico bem que tudo constitui como «logos» perfeito do perfeito poeta.
Não há, neste poema do absoluto poeta e do absoluto seu poema, qualquer realidade a que possa corresponder ou a que corresponda isso que se designa como «mal».
Génesis 1 constitui, deste modo, e de forma totalmente indesmentível, o manifesto do absolto da bondade não apenas como possível, mas como atual. Esta bondade não é ética, política ou em qualquer outra forma relativamente superficial, mas ontológica. Ontológica como poema, como puro poema do puro poeta.
Trata-se, então, de um texto de uma grandeza antropológica ímpar, pois consubstancia a realidade de algo que nós, os medíocres, sempre entendemos como impossível: que o ser humano possa sequer pensar o bem absoluto. Ironicamente, de um ponto de vista laico, alguém o pensou.
É aqui que radica a espantosa grandeza desta abertura poética da Bíblia, na sua visão laica: que um ser humano sem outra referência que não seja antropológica possa ter pensado tal raia o inacreditável.
Ironicamente, se fosse esta a única possibilidade, tal ser humano teria uma grandeza que o habitual ser humano crente não tem, pois, o habitual insiste em ter da criação uma visão maniqueia, em que, direta ou indiretamente, acusa o criador de ter criado um mundo imperfeito; imperfeito porque em dissonância entre o bem e o mal, pelo criador necessariamente cocriados.
Todavia, Génesis 1 não é um texto laico, e o laico que entendesse a grandeza poética do que em tal texto é dito seria indistinguível de um crente digno do nome, isto é, de alguém que acredita no que está dito no primeiro capítulo do primeiro livro da Bíblia: que Deus é ontologicamente bom, porque é isso que metafisicamente se opõe ao nada, e que é ativamente bom porque criou um mundo perfeitamente bom; tão bom que inclui a possibilidade de bem para a humanidade que, necessariamente implica que, como Deus escolhe, o ser humano possa também escolher, o que implica que possa não querer agir ontologicamente bem como Deus, ainda que possa.
O laico inteligente de que nos servimos para perceber a grandeza ontológica positiva da criação merece estar no seu laico céu metafísico. Quanto ao dito crente que insiste em fazer de Deus coisa maniqueia à sua imagem e semelhança, invertendo a hierarquia sagrada, esse, já tem a sua recompensa de um inferno lógico de que nunca sairá, a menos que aceite intuir que tudo o que é é bom e que é o seu perverso amor ao mal que cria o mal. E, assim, de todos nós. É esta a única «ecologia» porque é o literal «logos» da casa que é o poema da criação. O inferno é a sua antítese, como se vai descobrindo cada vez mais claramente.