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O génio do futuro é mestiço

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O génio do futuro é mestiço

«Intimo-os a todos, senhores ateus, a explicarem-me em que consiste a salvação do mundo. Onde lhe descobrem uma saída normal? Respondam, homens da ciência, industriais, membros de associações, apóstolos dos salários, etc. No crédito? Mas o que é afinal o crédito? Aonde nos conduzirá ele?» (Fëdor Dostoievskij, "O idiota")

A crise que estamos a atravessar parece (e é) demasiado longa; para alimentar a esperança de a superar, uma esperança que não seja vã, teremos de ser capazes de reconhecer o pulular de novas formas de vida – empresas, trabalho, inovações – que vão germinando à sombra da economia. Porque elas existem realmente. No entanto, as características da nova fase do capitalismo irão depender de qual das economias será hoje capaz de "atrair", absorver e valorizar a energia jovem, intelectual e tecnológica que, dentro e fora da "teia" (web) está a brotar.

Nas atuais condições, o capitalismo financeiro e globalizado parece, de longe, o mais artilhado para atrair para o seu campo a componente mais criativa da sociedade; graças aos poderosos meios financeiros de que dispõe, certamente, mas também pelo grande fascínio que os seus símbolos exercem sobre os jovens mais capazes. Como mostram Eve Chiapello e Luc Boltanski no livro “Il nuovo spirito del capitalismo”, recentemente traduzido para italiano (Mimesis), foi a sua capacidade de englobar e reciclar a componente mais criativa de cada geração que, até hoje, determinou o grande sucesso do capitalismo no séc. XX.

Convém ter presente que a nossa economia é composta por, pelo menos, quatro economias diferentes (mesmo se os responsáveis pela política fiscal, pelos incentivos, pelas políticas industriais, continuam a pensar que há só um capitalismo). 

A primeira – que pode ainda chamar-se “capitalismo” – é composta por empresas, bancos, companhias de seguros, fundos de investimento, que se constituem exclusivamente para aproveitar oportunidades de lucro ou, o que é cada vez mais frequente, para gerir rendimentos.

São quase sempre grandes organizações cuja propriedade está muito fracionada, com gestores pagos para além de todo o bom senso; operam a nível global e escolhem a localização da sede fiscal e das unidades produtivas com o único objetivo de minimizar a carga fiscal e maximizar os lucros. E conseguem-no porque dispõem de meios para contratar excelentes consultores fiscais, autênticos “santos” de paraísos fiscais e sindicais.

É um capitalismo que cria eficientes organizações filantrópicas, patrocina mesmo, com doses homeopáticas dos seus lucros, projetos de investigação científica e de intervenção social; mas o seu objetivo, o único verdadeiro objetivo que o move é realizar o máximo de dinheiro possível no mais curto espaço de tempo.

As multinacionais dos jogos a dinheiro são o tipo puro deste capitalismo que engloba já muitas empresas compradas por fundos de "private equity"; nestes anos de grave carestia de financiamento e de liquidez estão a comprar, a preços ótimos, milhares de empresas em dificuldade. “Salvam”-nas, por vezes, no plano financeiro, mas muito frequentemente não salvam o trabalho; e quase sempre o projeto do fundador perde a alma, ainda que, com fins de lucro, permaneçam o antigo nome e as velhas marcas.

É um processo que se está a realizar em vasta escala; não é raro que se cruze com a economia ilegal, sempre na busca de empresas em crise de capitais. (...)

Há, depois, uma segunda economia, feita de empresas que só na forma se assemelham às do primeiro capitalismo. Apercebemo-nos disso logo que entramos nos locais de trabalho e falamos com empresários, gestores e trabalhadores. A cultura que as move é diferente; mais profundo e amplo é o horizonte em que se movem. É o “capitalismo” das empresas familiares.

Por detrás do projeto de empresa há aqui a presença de uma pessoa concreta e de uma família que marca uma primeira diferença radical. O capitalismo familiar não garante por si só honestidade, boa gestão e ética (vemos isso todos os dias). No entanto, a presença de uma família à frente de uma empresa muitas vezes garante que os proprietários estão interessados em permanecer no longo prazo e não em maximizar lucros de muito curto prazo. Sem o eixo do tempo e o horizonte do futuro bem visíveis na firma, o trabalho não é amigo do capital e do “patrão”. Esta segunda economia é ainda a parede mestra do nosso sistema económico e civil.

Existe também uma terceira economia chamada por vezes, precisamente, "Terceiro Setor". É constituída pela economia cooperativa e social, por organizações sem fins lucrativos, pela finança territorial e ética, pelas empresas de “inspiração ideal” e por todo aquele fervilhar de atividades económicas que brotam do coração da comunidade cristã e da sociedade civil organizada. Floresce dos ideais maiores da economia.

Em tempos de crise esta terceira economia tem continuado a crescer, mas está também a viver uma crise epocal cuja raiz reside sobretudo no esvaziamento do húmus ético do seu terreno. Na verdade, são a segunda e a terceira economias as que mais sofrem as consequências da deterioração de capitais de virtudes civis que nas décadas passadas fez florescer essas empresas. Pelo contrário, o primeiro capitalismo cresce muito bem nos terrenos empobrecidos de húmus civil – basta pensar, mais uma vez, nas multinacionais do jogo que proliferam nos desertos das instituições e das famílias.

Mas existe ainda uma quarta economia (e ficamos por aqui, mesmo se poderíamos continuar com a economia pública, a criminal, a subterrânea…). Está criando trabalho, está inovando no campo da designada economia da partilha ("sharing economy") que procura os financiamentos para novas empresas não nos circuitos tradicionais, mas na rede ("crowd-funding") e cresce a um ritmo exponencial.

É o trabalho que nasce do variado mundo do consumo crítico, da muito difundida agricultura biológica de última geração, na qual o empresário agrícola é cada vez mais uma mulher jovem, licenciada, que fala quatro línguas e divide o seu tempo entre a empresa e viagens internacionais.

É aqui que se encontram muitos dos novos trabalhos que vão aparecendo nos cuidados pelos bens culturais, na arte, na música, ou de antigos moinhos a água reaproveitados para produzir energia, trabalho e soberania energética. E dá-nos tanta beleza, uma beleza verdadeiramente nos pode salvar.

É também esta uma economia não óbvia, feita de atividades muito diversas entre si mas que têm como denominador comum uma ideia de economia tendencialmente colaborativa, na qual o trabalho e a riqueza não nascem primariamente da concorrência, mas da cooperação e da busca de vantagens mútuas.

Uma economia de alta intensidade de jovens, muitos dos quais imigrados, onde a procura do máximo lucro não é o primeiro objetivo, porque as prioridades são a sustentabilidade ambiental, a dimensão estética, o gosto pela criatividade coletiva, a alegria de ver territórios doentes e envenenados voltar a florir, a invenção de "Apps" (aplicações) de gestão: não é por acaso que “produtos frescos” em fim de prazo de validade dos supermercados, de desperdício se possam transformar na base da alimentação de muitas casas de gente pobre. Uma nova economia na qual gratuidade e (um certo) mercado convivem e crescem em conjunto.

O capitalismo financeiro-especulativo está a entrar de forma maciça não apenas na segunda economia das empresas familiares, mas, com os poderosos meios de que dispõe e com uma refinada retórica está a ocupar também o Terceiro Setor. A única possibilidade de que estas economias ainda diferentes se possam salvar e crescer é conseguir uma grande aliança com a quarta economia jovem e criativa que se movimenta em novos "ambientes", fala outras "linguagens", pensa, age e imprime a três dimensões.

As economias diversas da do primeiro capitalismo terão hoje que conseguir trazer a quarta economia para o seu terreno. E entretanto agir também em áreas liminares, nas zonas mestiças de fronteira, com o primeiro capitalismo. Dentro de certos limites, variáveis e móveis em cada época, também o primeiro capitalismo pode produzir bons frutos. Em todas as épocas isso aconteceu.

O primeiro capitalismo torna-se inimigo da economia, do trabalho, do bem comum quando, como hoje, sai das margens e inunda casas e campos. Os encontros mais fecundos são os inesperados e improváveis. É a biodiversidade, em todas as suas formas naturais e civis, que nos nutre e a todos enriquece.

Para vencer este desafio que hoje parece impossível, é essencial também uma mudança simbólica, linguística e de comunicação. A economia civil (a segunda e a terceira economias) deve deixar de recorrer apenas a vocabulários de ética, virtude, altruísmo, dom e solidariedade. Precisa de utilizar o registo semântico da partilha, da excelência, da criatividade, aplicando-os a objetivos maiores que o puro lucro.

As pessoas excelentes, sobretudo as jovens, conseguem-se atrair pedindo-lhes coisas grandes e propondo-lhes desafios difíceis. O mundo da economia civil não atrai ainda suficientemente jovens criativos e inovadores porque não foi capaz de renovar adequadamente o código simbólico, de traduzir as suas palavras grandes (gratuidade, fraternidade, bem comum) em outras palavras e novos sinais capazes de entusiasmar as pessoas melhores nas fases melhores da sua vida e transformar, depois, o entusiasmo em projetos de trabalho e de vida.

Ainda estamos a tempo para, pelo menos tentar.

 

Luigino Bruni
In "Avvenire", 4.1.2015
Trad.: José Alberto Bacelar Ferreira, P. António Bacelar
Publicado em 10.03.2015 | Atualizado em 25.04.2023

 

 
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O primeiro capitalismo cresce muito bem nos terrenos empobrecidos de húmus civil – basta pensar, mais uma vez, nas multinacionais do jogo que proliferam nos desertos das instituições e das famílias
Existe ainda uma quarta economia (e ficamos por aqui, mesmo se poderíamos continuar com a economia pública, a criminal, a subterrânea…). Está criando trabalho, está inovando no campo da designada economia da partilha ("sharing economy") que procura os financiamentos para novas empresas não nos circuitos tradicionais, mas na rede ("crowd-funding") e cresce a um ritmo exponencial
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