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Entre a beleza do anúncio e a crueza da realidade

Eu sempre gostei da figura de S. Tomé. Homem realista e existencial que exige o ver para crer. Não que nele se haja extinguido a capacidade de abarcar o mistério profundo das coisas. Não! Apenas aquele modo muito leal que exige o sinal, o sacramento, que alicerce a sua fé. De tal forma isto é assim, que, quando Cristo o convida: «Tomé, mete aqui a tua mão», toda a sua capacidade de aderir ao mistério de Jesus de Nazaré ressuscitado se manifesta numa afirmação inequívoca: «Meu Senhor e meu Deus». E isto, antes mesmo de chegar a meter a mão. Como compreendo bem este homem, exigindo o sinal visível da sua adesão! Como ele nos deve falar hoje e agora! Sinal de tantos milhares de homens que têm sede do Deus vivo, do Deus da libertação do homem e do povo, e são iludidos na sua expectativa e reta intenção.

Falaram-lhes dum Deus que ama os homens e com eles veio armar tenda na Terra. E que veem eles? Um Deus que se encerra nos templos, na teia bem urdida duma liturgia separada da vida e dos problemas muito concretos que lhes afligem, ilegitimamente, o corpo e o espírito.

Falaram-lhes dum Deus libertador do povo e suas opressões, no Egito e na Babilónia. E que veem eles? Um Deus aliado dos poderosos e dos que têm na mão as forças do domínio, que mantém o povo longe dos bens da Terra, do corpo e do espírito que Deus deixou a todos e para todos.

Ensinaram-lhes que Deus lhes deu uma terra como herança; e que o maná dado no deserto era igual para todos e ninguém podia apanhar mais que a medida precisa para cada dia, porque apodrecia. E que veem eles? Um acumular desmedido e desenfreado de bens, por parte duma minoria nunca saciada, e uma distribuição dos sobejos, à maneira de migalhas ou esmolas que têm que chegar para todos os outros. E não só no que diz respeito aos bens do corpo, que também aos do espírito: pois esses são sobremesa mal digerida pelos que podem comer sempre lautas refeições.

Revelaram-lhes um Deus que fez uma aliança de paz com os homens. Cristo, em nome de Deus, foi chamado Príncipe da Paz. E que veem eles? Uma guerra contínua e devastadora que aniquila diariamente irmãos; e uma vasta multidão tentando justificá-la, como se alguma vez alguma guerra pudesse ser chamada santa ou ter justificação à luz do Evangelho. Guerra para a qual são invocados legítimos direitos, não deixando transparecer nem discutir os inconfessados interesses económicos que a provocam, a mantêm e a defendem.

Pregaram-lhes que Cristo é a Vida, e que veio para que os homens tenham a vida e a tenham em abundância. E que veem eles? Que a vida não merece a pena. Não porque eles não pressintam que ela encerra algo de muito belo e inexplicável, mas porque isso lhes parece muito poético, muito longínquo, muito de predestinados. Eles sentem-se afogados por necessidades prementes, por procuras de tal modo primárias, que tentam logicamente esquecer a brutalidade do trabalho através de prazeres alienantes e embrutecedores. Assim a própria procura da vida lhes rouba a capacidade e o desejo do sonho, que é a alma da vida.

Por fim, também ouviram dizer que Jesus de Nazaré havia formado uma sociedade nova que tinha um só coração e uma só alma, em que os membros punham tudo em comum, onde ninguém dizia «Isto é meu!», mas antes «Tudo é de todos», e que distribuía os bens segundo as necessidades de cada um. E que viram eles? Aqui não viram nada. Esperam ver! Alguns até leram num livro, que se diz relatar a vida dos primeiros cristão e dá pelo nome de Atos dos Apóstolos, uma descrição da vida de um grupo que parece ter feito essa experiência comunitária. Mas eles não sabem se é verdade. Sofrem se acaso não tiver sido. Mas duvidam que o seja, por lhes parecer que, se o fosse, já alguns dos novos discípulos de Jesus deviam ter tentado experiências semelhantes. Por isso andam à procura. Por isso estão à espera... Por isso muitos deixaram já de esperar e esqueceram-se que lhes tinham falado dessas coisas. Outros, mais inconformados ou talvez mais honestos, foram procurar noutros sítios e, com menos promessas, encontraram menos desilusões.

E nós? Que nos reste ao menos a coragem de Tomé! A dúvida existencial de Tomé: «Se não vir, eu não acredito!» Talvez ela ponha em dúvida as nossas certezas cristãs, as nossas bem arquitetadas noções de vida, as nossas cómodas sínteses evangélicas e nos leve à procura de qualquer coisa de novo. De novo, de certo, de feliz, de criador e de inaudito! De ainda não experimentado! E, no entanto, tão primitivo como a vida simples da comunidade cristã dos primeiros séculos!

Que S. Tomé nos leve a duvidar da segurança da nossa sociedade, chamada justa de direito mas que os factos revelam tão injusta. Que dai nasça a coragem duma cidade nova, onde a palavra irmão tenha o sabor da verdade. Então podem surgir Tomés a gritar: «Se não meter a mão no teu lado não acreditarei». Podem gritar porque, se o seu grito for honesto como o de Tomé e encontrarem o que este encontrou, acabarão todos por dizer: «Meu Senhor e meu Deus!»

Teremos nós Igreja imaginação suficiente para tornar real o sonho de Deus proposto por Cristo?

 

P. Alberto Neto
Capela do Rato, Lisboa, 6.5.73
In Padre Alberto Neto - Testemunhos de uma voz incómoda, Texto Editora
02.07.12

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