Peregrinação
Fátima: destino de vidas, preces e conversões
Uma promessa feita na guerra
Agostinho Gonçalves, 74 anos, reformado
Os grandes olhos azuis inudam-se de lágrimas ao chegar todos os anos a Fátima para oferecer um remo de cravos brancos a Nossa Senhora. De entre as pessoas do grupo que dirige escolhe sempre duas mulheres para o acompanharem na chegada à capelinha de Nossa Senhora do Rosário. Uma deverá ser solteira e a outra casada. A solteira levará os cravos brancos. A casada carregará a cruz. E Agostinho segue no meio das duas, «na vez do padre», para esta oferenda marcada por inúmeras rezas, que dirigirá entre o grupo.
Há 51 aos que cumpre esta peregrinação. Foi uma promessa de vida e de sangue que fez quado esteve na guerra do Ultramar, em Angola. Durante três anos disparou «contra os pretos». Não sabe se matou alguém. «Provavelmente, sim.» O que sabe é que teve muito medo. E que aos 21 anos pediu à mãe de Cristo para ser poupado e regressar inteiro. Ou quase. Na cidade de Carmona, em Angola, num ataque subterrâneo em que participou, uma metralhadora disparou na sua mão direita, desfazendo-lhe parte do dedo anelar. «Andei três dias com um farrapo a estancar o sangue», recorda Agostinho.
As memórias de guerra não lhe saem da cabeça. Mas tornou-se depois um homem mais espiritual. Nunca falhou Fátima. Nos últimos anos, já não percorre os 193 quilómetros a pé. É poupado a boa parte do caminho a bordo da carrinha de apoio. Efeitos da trombose e do AVC, que o deixaram a coxear. A mulher fica em casa porque não aguenta. «Eu virei sempre. Até morrer.»
Pazes feitas com Deus
Margarida Reis, 38 anos, gestora de marketing
O robusto cajado de madeira que a ampara no caminho e a ajuda a suportar as dores da ciática, que vêm e vão, foi-lhe oferecido pelo grupo de peregrinos que a acompanha desde Santarém. Não conhecia ninguém antes de se pôr ao caminho. Foi o padre da sua paróquia de Oeiras que organizou esta peregrinação entre escuteiros e fiéis. E Margarida decidiu juntar-se a eles. Para fazer as pazes com Deus.
Durante três dias e mais de 60 quilómetros a palmilhar campo e estrada, teve de se despojar de todo o conforto com que vive no dia a dia. Nunca tinha andado tanto na vida. Não se recorda de estar tanto tempo trajada com fato de treino e ténis, sem joias ou maquilhagem. Nunca dividira a casa de banho com ninguém, muito menos experimentara alguma vez tomar duche junto de dez outras mulheres. Mas fê-lo. Nunca lhe passou pela cabeça que um dia dormiria no chão de uma garagem de bombeiros, com o corpo esticado num retângulo de espuma, literalmente encostado às cabeças e aos pés de dezenas de peregrinos.
«Pensei em trazer o cartão de crédito, mas se o trouxesse não resistia e caía em tentação.» Apesar do esforço nunca pensou desistir. Há dois anos repetiu que Deus não existe. Não pode existir. Desde que a irmã mais velha morreu no final de uma gravidez, com uma septicemia, a sua fé desmoronou-se. «Mas é impossível viver sem acreditar em Deus.»
Nove dias na estrada para Fátima
Armandina Rentes, 59 anos, doméstica
Este ano voltou a despedir-se do marido às cinco horas da manhã e juntou-se a um grupo para caminhar nove dias seguidos pelas margens da estrada nacional 17 até terra sagrada. As suas pernas aguentaram de novo os mais de 300 quilómetros que separam Mogadouro de Fátima. E nem as hérnias discais, as tendinites e as artroses a fizeram vacilar. «Não é o corpo que me leva, mas o amor a Cristo e a Nossa Senhora.»
Todas as noites dorme com a cruz de Cristo enfiada na fronha da almofada, porque lhe dá força, proteção e paz interior. «O meu marido tem ciúmes. Chama-lhe farracho. Diz que lhe quero mais do que a ele.»
A crise é para ela uma palavra estrangeira que vem nos telejornais: «Só me governo com aquilo que tenho e com o que a terra me dá.» E só quando a terra ameaçou secar é que fez esta mesma caminhada a pão e água. Estava aflita com uns problemas no seu terreno porque um vizinho queria cortar-lhe a água de um ribeiro que servia para regar a horta. «Felizmente o tribunal deu-me razão. E eu cumpri o meu trato com Nossa Senhora.»
Desta vez não leva nenhuma promessa. Apenas a alegria de fazer parte deste ritual de fé que cumpre há dez anos. E já se sente parte dele. «Faço falta nesta caminhada. Sou filha de um endireita, portanto sou eu que faço os curativos de quem precisa, rezo para o meu grupo, conto anedotas e canto.» Cerra os olhos para cantar os versos com que encoraja os seus: «Quem é minha luz é Jesus. Quem é minha guia é Maria. Quem é meu amparo é José. Valha-me Jesus, Maria, José!» E segue o seu destino. «É quando as minhas sapatilhas voam.»
Caminhar descalço
António Paiva, 48 anos, mestre de obras
Após 12 horas a andar descalço, as solas dos pés de António Paiva estão quase intactas, à exceção de uma pequena bolha no pé direito já rebentada e curada pelo próprio.
A primeira noite é passada nas instalações dos bombeiros de Ceia, que, como todas as outras que ficam nos caminhos para Fátima, abrem as portas todos os anos aos peregrinos com a promessa de um banho, um teto e um colchão.
A promessa de António é ir descalço de Celorico da Beira até o destino sagrado. Um percurso puxado de mais de 194 quilómetros que será cumprido em três dias pela margem da estrada nacional 17. Este sacrifício é feito em nome do filho e da nora, por uma razão que não revela a ninguém. É um trato entre ele e Nossa Senhora. Nem a mulher nem o próprio filho, de 28 anos, o conhecem. E, após um dia a massacrar os pés no chão, António parece pronto para outra.
Alimentar os peregrinos
José Manuel, 66 anos, cozinheiro
É ele que conforta o estômago das centenas de peregrinos que todos os dias recorrem às moradias privadas cedidas à Cruz Vermelha, em Faria de Cima, Cucujães, norte de Portugal, para pernoitar. José Manuel é um homem simples, castiço, de poucas palavras, que aprendeu tudo o que sabe nas copas, onde trabalhou uma vida inteira emigrado na Suíça. E agora que está reformado todos os anos troca por uma semana o sossego de casa pelo frenesim de ter de alimentar multidões de fiéis.
Ao almoço deliciou a frota de voluntários e enfermeiros com o seu especial frango com chantilly e cogumelos. A meio da tarde já fazia fumegar um panelão de sopa à lavrador que deu para alimentar cerca de 120 peregrinos. Uma receita poderosa, à la Obélix, de levantar do chão qualquer um, ou não combinasse feijão, batata, alho-porro, alho normal, cebola, hortaliça, arroz, massa escura e carne de vaca. «Dá-me gozo aconchegar-lhes o corpo e o espírito. É bom ver a satisfação no seu rosto com apenas uma caneca de sopa quente.»
Também José Manuel é um homem religioso e de fé. Uma fé que o levou há 15 anos a andar meio Portugal completamente sozinho quando a mulher foi à cama com uma doença crónica que nem consegue pronunciar. Cozinhar para a comunidade, sem mãos a medir, é o seu maior compromisso com Deus e Nossa Senhora. «Porque somos todos irmãos!»
A velha amiga da Cruz Vermelha
Maria Adelina Costa, 89 anos, voluntária da Cruz Vermelha
É uma senhora rija, enérgica, prestável, muito composta. A farda imaculada que usa como voluntária da Cruz Vermelha Portuguesa ainda é do tempo de Salazar. Há mais de 40 anos que Maria Adelina ajuda na cozinha destas ações de apoio aos peregrinos, enfermeiros e voluntários.
«Noutros tempos, ia para a estrada às quatro da manhã abordar os peregrinos e oferecia-lhes canja de galinha aquecida em máquinas de petróleo muito rudimentares», conta. E ainda hoje lhe vêm à memória as pessoas que por ela passaram nas bermas das estradas nacionais com adesivos na boca, descalças, de joelhos, a pão e água, a pagar todo o tipo de promessas. «A minha cabeça está fraca mas imagens destas não se esquecem.» Muitos com dramas aterradores e inconfessáveis. E alguns com razões tão incríveis como o caso de uma aldeã muito simples que fora a pé sem comer até Fátima carpir as mágoas porque lhe tinha morrido uma vaca.
Na tarde em que a conhecemos, Maria Adelina acabara de fazer uma limonada com frutos dados pela vizinhança para refrescar o ânimo da equipa de Cucujães. «Gosto de ajudar os peregrinos. Sei o que eles sofrem. Só faço o que gostava que fizessem comigo, se estivesse no lugar deles.» E depois de servida a sopa aos caminhantes recém-chegados pôs-se na copa a lavar os pratos e os talheres. «Parar é morrer.»
Uma fé descoberta aos 29 anos
Ricardo Rodrigues, 39 anos, gestor
Ricardo foi à procura de um silêncio que não encontra na vida de todos os dias. É a única altura do ano em que consegue o milagre de parar o tempo para ter tempo de falar com Deus e consigo próprio. Apesar das longas horas que faz calado a caminhar entre campo e estrada, tem toda a disponibilidade para o grupo que o acompanha. Ricardo segue sempre na dianteira. É ele a alma e a força deste grupo de 80 pessoas, com motivações diferentes, dos 7 aos 70 anos, todos vindos da zona de Oeiras.
No cume de uma subida que exigiu mais da determinação de cada um aproveitou para ler o texto de reconversão publicado em tempos no “Expresso” pelo advogado e político António Pinto Leite: «Vou a Fátima porque me inquieta um mundo sem espiritualidade e não quero deixar apenas ás gerações futuras os rios e os mares limpos e as florestas e o lince da Malcata intactos, mas também o essencial do Homem, a alma, a sua secreta grandeza, aquilo que o distingue diante do mistério da vida e aquilo que nenhum eletrodoméstico ou automóvel ou taxa de juro ou cartão jovem consegue iludir (...)», reproduz Ricardo. E depois acrescenta: «Quis proporcionar este prazer a muitos outros que nunca tinham passado por esta experiência».
É o décimo ano em que Ricardo se faz à estrada nesta data. Aos 29 anos era um homem diferente. A trabalhar na banca de investimento, vivia na vertigem da competição e dos valores materiais. Ter mais lucro, mais dinheiro, mais sucesso, uma grande casa, uma moradia de fim de semana. Uma sucessão de episódios conturbados, tanto pessoais e profissionais, que guarda só para si, viraram-no do avesso. E fizeram-no abrandar e reequacionar as prioridades. A conselho de um amigo, acaba por aproximar-se de um padre e da religião católica. É quando à beira dos 30 anos faz a primeira comunhão e descobre a fé. A sua fé. E, segundo conta, tudo mudou. «Para melhor. Tornei-me mais genuíno, ganhei liberdade e passei a olhar mais para os outros e menos para mim.»
A caminhada de uma mãe coragem
Ana Freitas, 53 anos, auxiliar de educação
A sopa de legumes e o pão que recebeu após um dia inteiro a andar soube-lhe a céu. Ao anoitecer abrigou-se com o seu grupo na garagem de uma moradia particular no Norte, cedida por uns dias à cruz Vermelha, e recebeu logo à chegada da mão de voluntários este reforço quente para retemperar forças e ânimo. «Nunca mais vou esquecer este gesto.»
Partiu de madrugada de Massarelos, no Porto, até Fátima, como ato de agradecimento pela recuperação do filho de 21 anos, que sofreu um linfoma. Passaram ambos por um mau bocado. Sozinhos. «O meu marido abandonou-nos nessa mesma altura. Mas a força de uma mãe move montanhas. Ajudei o meu filho a resistir. Felizmente recuperou após tratamentos de quimioterapia e radioterapia e está bem.» Ou quase.
Apesar de bom aluno, a iniciar um doutoramento em bioquímica, está há meses sem receber o dinheiro das propinas. E está sem boa de salvação. «Não fazem ideia do que é para uma mãe receber um telefonema do filho a dizer que não tem dinheiro para uma carcaça.» E chora.
Uma promessa muito pouco católica
Fernanda Silva, 41 anos, doméstica
A história que deu origem a esta caminhada de Fernanda a Fátima é quase pecado. Mas os caminhos da fé não são todos iguais. E este é muito particular. Há dois anos Fernando descobriu que o marido se envolvera com outra mulher. Encontrou um telemóvel debaixo do tapete do carro dele com SMS melosos dirigidos a outra mulher. «Uma fulana que trabalhava num bar de alterne.» Ao marido apontou a porta da rua. Depois arrependeu-se e perdoou-lhe. Mas uma nova traição foi a gota de vinagre que pôs fim a 21 anos de casamento. Desesperada, deu «uma coça» à amante do marido e recorreu a uma vidente. «Ela disse-me que a amante do meu marido lhe dera sangue do período para o agarrar.» Foi aconselhada a colocar pó santo no café dele para tudo voltar a ser como dantes. E foi o que fez. Visitou-o na sua casa em Matosinhos e cumpriu o conselho alquímico. «Nesse dia ele caiu à cama doente. Vomitou até cabelos». E logo depois, «com a graça de Deus», terminou o romance com a amante e voltou para ela. Tornaram a casar, agora pelo registo civil. Para apimentar mais a história, a amante colocou um processo aos dois por difamação e maus tratos. O caso ficou arquivado.
Para agradecer, Fernanda decidiu vir a pé a Fátima. «Não sou católica praticante. Vim por amor», remata entre baforadas no cigarro.
Que Deus lhe dê um novo emprego
Sara Louro, 36 anos, desempregada
«Que esta longa caminhada de fé me traga um trabalho.» É a principal motivação de Sara, há três anos desempregada. Sem perspetivas de emprego no bolso. «Gostava muito de encontrar uma coisa para mim. De ganhar o meu», afirma com uma voz doce.
Encontramo-la a dormir nas instalações dos bombeiros de Minde, com as pernas moídas e prestes a cumprir a última parte dos 60 quilómetros, feitos em três dias, desde Santarém até ao santuário. Tinha uma boa carreira de uma marca de produtos cosméticos, mas quando anunciou aos patrões que estava grávida foi mandada para casa e o contrato não lhe foi renovado. «Sem mais.» Sorri para esse triste episódio. Não há nela revolta ou rancor. Estranhamente os seus olhos mostram tranquilidade. «Apesar de ter muito menos dinheiro, estou mais feliz. Porque me encontrei e passei a estar mais à disposição dos outros. Com o muito pouco que tenho.»
A velha gastadora e vaidosa Sara deu lugar a uma nova Sara. Que dedica o tempo aos seus. «A limpar a casa do meu pai, a fazer o almoço da minha mãe, a tratar dos meus dois filhos e do meu marido.» Na mão leva o terço do pai e a esperança de um salário. «De preferência a cuidar de idosos.» Que neste país bem precisam.
Texto: Bernardo Mendonça
Fotografias: Tiago Miranda
In Expresso, 12.5.2012
10.05.13