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Homenagem a uma palavra lida em Herberto Helder

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Homenagem a uma palavra lida em Herberto Helder

Por vezes de um dia que vivemos, de um filme, de um poema... por vezes de alguém, conservamos uma palavra. Não saberemos explicar porquê, mas essa palavra aloja-se dentro do nosso pensamento, atravessa vagarosamente os nossos silêncios, fecha-se à chave dentro de nós. Estamos, depois, sempre a vê-la. Anos e anos passaram e nunca pensámos nessa palavra ou no que ela nos traz. E, depois, estamos sempre a vê-la escrita ou a ver letras dispersas que quase, quase a escreveriam. A meio de uma conversa insuspeita, colocamos essa palavra, a testar, para adivinhar como seria se ela nos pertencesse, mas sabemos donde vem essa pequena herança que talvez o acaso, talvez o amor, abandonaram à nossa escuta, como se estivesse em nós a possibilidade de proteger ou até mesmo de salvar esse mundo tão vasto que, às vezes, é na nossa vida uma simples palavra.

Num tempo como o nosso, onde o real se evapora em palavras é difícil amar uma só palavra. As palavras acumulam-se, multiplicam-se, extenuam-nos. A retórica contaminou os nossos hábitos. Recebemos uma educação para o discurso, não para a palavra. Sabemos interpretar os longos períodos, as narrativas, porém uma palavra emudece-nos. A interpretação, como escreveu Susan Sontag (“Against Interpretation”, 1961), é «a vingança do intelecto sobre o mundo. Interpretar é empobrecer, esvaziar o mundo, para instaurar um mundo espectral de significados. É transformar o mundo neste mundo». Isso sabemos fazer. Mas ser travado, por uma palavra, uma matéria que na sua pobreza aponta, em silêncio, o ilimitado, uma coisa bruta, que não é uma ideia, nem um conceito, nem uma razão para interpretar, apenas um fragmento arrancado ao segredo, apenas um murmúrio surpreendido, entrevisto, desconcerta-nos.

Mas se mesmo assim conservamos uma palavra, se uma ou outra insiste em ocupar-nos, como uma deflagração íntima que não conseguimos justificar, é porque a vida teima em desproteger-se. Em ser vida.

No poema inédito que Herberto Helder publicou como conclusão de “Ou o poema contínuo”, há uma palavra que foi assim para mim. Redivivo. O poema de Herberto é uma admirável reflexão sobre essa palavra que, lembram os dicionários, significa «ressuscitado; o que retornou à vida». Li, muitas vezes, o fim do poema: «Redivivo. E foi por essa mínima palavra que apareceu não/ se sabe o quê que arrancou/ à folha e à esferográfica canhota a poderosa superfície/ de Deus, e assim é/ que te encontraste redivivo, tu que tinhas morrido um momento antes,/ apenas».

Essa mínima palavra caminhou comigo, já não era o livro que eu levava para toda a parte, era uma palavra, a frágil e escondida marca de uma palavra, que, em certas horas, senti que era tudo quanto tinha. Redivivo. Foi por essa mínima palavra que fui reler o penúltimo versículo do Antigo Testamento e aprender, em comentários da apocalíptica judaica, que redivivo é «o que está para vir», o que há de apascentar, da opacidade à luz, os corações. E que, depois, cheguei a um dos primeiros textos cristãos, o Evangelho de Lucas, sobre o qual passo os dias a trabalhar, para descobrir também aí, nesse texto que está, afinal, tão perto de mim, a palavra redivivo. Para minha surpresa era a interrogação que João Batista mandou, por emissários, colocar a Jesus de Nazareth: «És tu o redivivo?». Não sei de pergunta mais bela que um homem tenha feito a outro homem.

 

José Tolentino Mendonça
Publicado em 24.03.2015 | Atualizado em 24.04.2023

 

 
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Foi por essa mínima palavra que fui reler o penúltimo versículo do Antigo Testamento e aprender, em comentários da apocalíptica judaica, que redivivo é «o que está para vir», o que há de apascentar, da opacidade à luz, os corações
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