Evocação
Alexandre Herculano nasceu há 200 anos
“No seu lugar tem-se pretendido colocar um recitador de frases acacianas, emoldurado no ‘isolamento’ da Ajuda ou de Vale de Lobos, tão inofensivo como as cinzas que os turistas visitam no mausoléu dos Jerónimos”. Assim referiu António José Saraiva o incompreensível biombo de indiferença que tem escondido a personalidade rica e multifacetada de Alexandre Herculano (28.3.1810 – 13.9.1877), que é indubitavelmente uma das grandes e perenes referências da história cultural portuguesa.
O historiador foi tudo o contrário dessa ideia vaga. Foi alguém que se singularizou como um português de horizontes largos, um historiador probo e moderno, fiel às provas e à ciência, fundador da historiografia contemporânea, um cidadão comprometido e exemplar. Escritor de perfil clássico, foi dos mais dotados no manejo da língua e uma enorme figura moral – “homem de um só parecer. Dum só rosto, uma só fé, de antes quebrar que torcer…”, da têmpera de Francisco Sá de Miranda.
Ouvimos ainda os ecos da sua prosa militante: “Que o país seja governado pelo país é a nossa divisa. Como realização deste princípio, temos pugnado pela verdade do sistema parlamentar, apesar do descrédito a que a reacção europeia o tem levado no continente; temo-nos esforçado por incutir aos nossos concidadãos a ideia de que só nele sinceramente respeitado pode estar a nossa marcha segura no caminho do progresso. Por isso temos pelejado contra os que, a troco de promessas de melhoramentos materiais, fecharam os olhos aos atentados dirigidos contra o dogma essencial das nossas crenças políticas. Por isso temos fulminado os escândalos, as malversações eleitorais, os diplomas de representante da nação passados por portaria, e o desprezo calculado dos princípios parlamentares erigidos em sistema pelo Governo actual” (1853).
Filho de um recebedor da Junta dos Juros e sobrinho por parte mãe de António Gil, o construtor que deu nome ao célebre Pátio onde nasceu, Alexandre Herculano é um símbolo forte do seu tempo. Estudou na Congregação do Oratório de S. Filipe Neri, nas Necessidades, e depois seguiu estudos na Aula do Comércio, não tendo tido possibilidades, como era seu desejo, de cursar na Universidade de Coimbra. No regresso de D. Miguel parece ter-se deixado influenciar pela nova situação, no entanto muito fugazmente, já que o vemos a partir de 1829 a defender a causa liberal, participando na sublevação de 21 de Agosto de 1831, que o levou para o exílio, primeiro em Inglaterra e depois em França, juntando-se em 1832 na ilha Terceira, nos Açores, à causa da regência de D. Pedro. Nesse mesmo ano, desembarca na praia do Pampelido, entre os bravos do Mindelo. No Porto, é dispensado do serviço militar activo, para ser nomeado bibliotecário na Biblioteca Pública e para reorganizar os fundos das bibliotecas monásticas, a começar na de Santa Cruz de Coimbra.
A vitória da causa liberal encontra-o entregue ao estudo e à renovação da historiografia. Na Revolução de Setembro de 1836, mantém-se fiel à Carta, que jurara, e escreve “A Voz do Profeta”, onde critica a nova situação, afirmando o seu cristianismo, contraditório não com a liberdade, mas com o despotismo, não com o novo, mas com o antigo regime, e procurando uma plataforma onde se encontrem o livre exame e a autoridade. Na redacção da revista “O Panorama” (1837) e na direcção do “Diário do Governo” demonstra as suas qualidades de escritor e pensador. É um homem dividido entre o respeito da tradição e a rejeição das superstições. Para ele, o soldado liberal deveria hastear a cruz sobre o pendão da liberdade e tornar-se apóstolo da “fraternidade espiritual”. Em “O Pároco da Aldeia” (1844) procura conciliar as antigas formas rituais com a liberdade, o tradicionalismo e o reformismo, sob as influências do ecletismo de Collard, Cousin e Maine de Biran. Concorda com a Constituição de 1838 por entender ser positivo o compromisso alcançado. É o tempo da “Harpa do Crente”, obra poética que conhece significativo êxito.
D. Fernando II, seu amigo e admirador, nomeia-o director das bibliotecas reais da Ajuda e das Necessidades. Sob influência de Rodrigo da Fonseca, consegue ser eleito deputado pelo Porto, nas eleições de 1840. O Parlamento não vai ser, porém, um lugar onde Herculano se sinta à vontade. Propõe, no entanto, uma importante iniciativa no campo do ensino popular com Vicente Ferrer do Neto Paiva.
Com a restauração cartista de 1842, assume uma posição critica. Depois de uma primeira atitude de neutralidade, conclui que o consulado de Costa Cabral é negativo para o país. A sua residência da Ajuda torna-se centro de conspirações da oposição. Os anos quarenta são, no entanto, um período fecundo da sua criação literária e das suas reflexões históricas. “Eurico, o Presbítero” é de 1844 e o primeiro volume da “História de Portugal” sai em 1846. Aí, recusa as interpretações providencialistas (o que gera grandes incompreensões nos meios conservadores), e encontra “a verdadeira origem da independência de Portugal” na ideia de nacionalidade portuguesa, “ideia que amadurecera e radicara nos ânimos de modo indestrutível e que sucessivamente se apoderara dos espíritos do Conde D. Henrique, de D. Teresa e do filho deles”. Sente-se a influência eclética de Collard, que leva, por exemplo, a explicar o desaparecimento da servidão da gleba pela semente de liberdade contida no Evangelho ou a afirmar que é o impulso moral que aviventa instituições fundamentais como os municípios.
Alma da regeneração
A clara desafeição em relação à política de Costa Cabral por parte do próprio rei D. Fernando II leva Herculano a romper em 1850 com a neutralidade que cultivara, assinando à cabeça o protesto dos intelectuais portugueses contra a lei das rolhas. O exemplo e a casa de Herculano tinham sido bases fundamentais para a preparação e concretização do golpe de Estado regenerador de 1851, chefiado por Saldanha. Pode dizer-se que a alma da Regeneração começa por ser Alexandre Herculano. O movimento impor-se-á, por isso, graças, em parte significativa, ao penhor moral que Herculano lhe emprestou, mas o historiador depressa compreendeu que não eram as suas ideias ou o seu grupo (de antigos setembristas) os que prevaleciam.
Rodrigo da Fonseca domina o novo partido Regenerador, e Herculano considera ser isso negativo, sendo fundamental criar um pólo político de alternância, que será o partido histórico, em cuja criação e concretização se empenha. Nasce primeiro “O País”, e depois “O Português”, jornais críticos da lógica situacionista de Rodrigo. O escritor torna-se um militante activo da reforma nacional no sentido da concretização da legislação de Mouzinho da Silveira, da liberdade económica, do fim dos constrangimentos políticos e sociais do antigo regime, da concretização do programa municipalista contra o centralismo, das mudanças agrícolas e do proteccionismo. Numa palavra, deveriam criar-se condições para que o país governasse o país.
Os últimos anos da sua vida são marcados pela polémica e pela crítica severa do clericalismo. No entanto, Alexandre Herculano manter-se-ia fiel ao seu espírito de sempre: o da procura de uma síntese fecunda entre a tradição e a modernidade, com um empenhamento intenso pela reforma do país, de modo a combater o atraso e todas as formas de intolerância. A partir de 1867 tornar-se-á agricultor em Vale de Lobos, num gesto moral de recusa do conformismo e da indiferença. No entanto, nesse período final da vida Herculano seria procurado pela juventude intelectual como referência e exemplo. Que magnífico sinal de vitalidade intelectual e cívica!
A Semana Santa (de “A Harpa do Crente”)
I
Tíbio o sol entre as nuvens do ocidente,
Já lá se inclina ao mar. Grave e solene
Vai a hora da tarde! O oeste passa
Mudo nos troncos da alameda antiga,
Que já borbulha à voz da primavera:
O oeste passa mudo, e cruza a porta
Pontiaguda do templo, edificado
Por mãos duras de avós, em monumento
De uma herança de fé que nos legaram,
A nós seus netos, homens de alto esforço,
Que nos rimos da herança, e que insultamos
A cruz e o templo e a crença de outras eras;
Nós, homens fortes, servos de tiranos,
Que sabemos tão bem rojar seus ferros
Sem nos queixar, menosprezando a Pátria
E a liberdade, e o combater por ela.
Eu não! – eu rujo escravo; eu creio e espero
No Deus das almas generosas, puras,
E os déspotas maldigo. - Entendimento
Bronco, lançado em século fundido
Na servidão de gozo ataviada,
Creio que Deus é Deus e os homens livres!
II
Oh, sim! – rude amador de antigos sonhos,
Irei pedir aos túmulos dos velhos
Religioso entusiasmo, e canto novo
Hei-de tecer, que os homens do futuro
Entenderão: - um canto escarnecido
Pelos filhos dest' época mesquinha.
Em que vim peregrino a ver o mundo,
E chegar a meu termo, e repousar-me
Depois à sombra de um cipreste amigo.
III
Passa o vento os do pórtico da igreja
Esculpidos umbrais: correndo as naves
Sussurrou, sussurrou entre as colunas
De gótico lavor: no órgão do coro
Veio enfim murmurar e esvaecer-se.
Mas porque soa o vento? - Está deserto,
Silencioso ainda o sacro templo:
Nenhuma voz humana ainda recorda
Os hinos do Senhor. A natureza
Foi a primeira em celebrar seu nome
Neste dia de luto e de saudade!
Trevas da quarta-feira, eu vos saúdo!
Negras paredes, velhas testemunhas
De todas essas orações de mágoa,
Ou esperança, ou gratidão, ou sustos,
Depositadas ante vós nos dias
De uma crença fervente, hoje enlutadas
De mais escuro dó, eu vos saúdo!
A loucura da Cruz não morreu toda
Após dezoito séculos! - Quem chore
Do sofrimento o Herói existe ainda.
Eu chorarei – que as lágrimas são do homem –
Pelo Amigo do povo, assassinado
Por tiranos, e hipócritas, e turbas
Envilecidas, bárbaras, e servas.
IV
Tu, Anjo do Senhor, que acendes o estro;
Que no espaço entre o abismo e os céus vagueias,
Donde mergulhas no oceano a vista;
Tu que do trovador à mente arrojas
Quanto há nos céus esperançoso e belo,
Quanto há no inferno tenebroso e triste,
Quanto há nos mares majestoso e vago,
Hoje te invoco! – oh, vem! – lança em minha alma
A harmonia celeste e o fogo e o génio,
Que dêem vida e vigor a um carme pio. (...)
Guilherme d'Oliveira Martins
In Centro Nacional de Cultura
28.03.10