Poesia
Cristovam Pavia
Não é muito comum um poeta atingir a maturidade entre os dezassete e os dezanove anos. Foi isso, no entanto, que se passou com Cristovam Pavia, uma das vozes mais singulares da «geração de 50». O encontro consigo mesmo, o rebentamento das «nascentes» que, ansiosamente, aguardava num poema publicado na Távola Redonda (fase. 8, 1 de Novembro de 1950), pouco depois de ter f eito dezassete anos, estava prestes a verificar-se. E ao longo da primeira metade dos anos 50, passado o período de «difícil» e «doloroso» «amadurecimento» de que fala nesse mesmo poema, terá ocasião de escrever alguns dos textos perfeitos que conferem individualidade à sua voz no contexto da lírica da época. Entre parênteses se diga que textos perfeitos, primeiros poemas perfeitos, os entendo eu no sentido que lhes dá Helen Vendler (Coming of Age as a Poet, 2003) de textos em que o poeta, «com confiança, mestria, e, acima de tudo, sem esforço», chega à idade adulta. Sublinharia, desde já, a ausência de esforço, melhor dizendo, a impressão de ausência de esforço que nos dão os poemas, de rara limpidez, que constituem o único livro que Cristovam Pavia publicou em vida, em 1959, «35 Poemas». E este livro que, agora, se reedita, juntamente com os «esparsos» e os então «inéditos» que figuravam na edição de Poesia, em 1982, submetidos a uma nova e cuidada disposição e organização, da responsabilidade de Joana Morais Varela, a quem igualmente se deve a revelação de mais alguns textos entretanto descobertos.
«Longo» era também o «amadurecimento» de que se falava no poema «Espera» vindo a público no n.° 8 da Távola Redonda, se o virmos na sua dimensão humana, em que, dramaticamente, se prolongou, sem solução, ao longo da vida. Mas não no plano de realização artística em que rapidamente o poeta transpôs a fase de aprendizagem, de que encontramos testemunhos a partir de 1948, ainda antes de perfazer quinze anos, para chegar a uma precoce maturidade por volta dos dezassete anos. Filho do poeta presencista Francisco Bugalho, a educação literária de Crístovam Pavia fez-se muito à sombra de toda uma herança da modernidade que os autores mais ligados à «folha de arte e crítica» de Coimbra cultivavam. O romance de aprendizagem do jovem Crístovam desenha um mapa onde se percebem os «coloridos imóveis» e a «penumbra» das «profundidades marinhas» de Pessanha e se distinguem os ecos das dramáticas singularidades caras a um Nobre e, depois, a Sá-Carneiro («Deixai!: eu sou o Incompreendido, o Solitário, / O Triste, o Erva, o Bobo, o Alto, o Louco»). Também as encenações clownescas de Régio - um poeta a que permanecerá fiel até ao fim - o seduziram nos seus começos («Enlodo-me / E remordo-me / Quando sinto em mim a luz de talvez, Deus / (Uma / luz que me atira fora de mim. / Para espasmos, e apertões, e cambalhotas.)»), e as ousadias versificatórías dos modernistas o atraíram. As doces canções do Pessoa ortónimo, igualmente, o embalaram, sem, no entanto, se furtar ao apelo da pulsão de morte que adivinhou no Sá-Carneiro de «Caranguejola» ou no último Campos. Logo na «Écloga ou Canção Abandonada», de Fevereiro de 1949, quando o poeta ainda não tinha feito 16 anos, e vinda a público no n.° 3 da Távola Redonda, de 15 de Fevereiro de 1950, se pode ver como ele era sensível aos valores musicais de um Simbolismo, de que, no essencial, se mostrou herdeiro ao longo dos anos: «Na folha bailada / Levada / No vento, / Vai meu pensamento... // Na cinza delida, / Espargida / Pelo rio, / Vai meu olhar frio...// [...]». Num poema composto alguns meses depois, Baudelaire, um dos iniciadores da modernidade poética, é referido como «o Príncipe de Todos», mas a modernidade com que se vai familiarizando alarga-se a outros espaços culturais, e particularmente a um que connosco tem de comum a língua. Precisamente da moderna poesia brasileira, tão acarinhada nas páginas da “presença” e das revistas que continuaram o legado modernista, vêm alguns dos mestres que tomou como modelos da frescura e do desatavio de linguagem que quis para os seus poemas, Bandeira, em lugar muito especial, Cecília Meireles, Jorge de Lima, Augusto Frederico Schmidt.
Na altura em que prepara o livro para a colecção Círculo de Poesia, Cristovam Pavia passa por um período de dolorosa esterilidade, que só vai ser quebrada por breves florações em 1961 e 1966, atingindo, todavia, nesta última alguns dos pontos culminantes do seu itinerário, por um lado, com a pungente elegia que lhe motiva a morte do seu cão e, por outro, os exercícios de fulgurante liberdade poética com que homenageia a tonificante «avariação» de Manuel Bandeira. Deste período é também o malicioso erotismo com que celebra, em «Alva», o «eterno feminino» que a sua lírica nunca deixou, afinal, de perseguir. E é ainda o seu sortílego apelo que emerge num breve poema, de 1967, agora revelado, e onde de novo se nos depara aquela «delicada visão de frescura» que confere rara intensidade aos melhores dos seus poemas. Um texto em francês, «Mera», de Abril de 1966, dedicado à poeta suíça Anne Perrier, com quem se correspondeu, vem lembrar-nos aprofunda admiração que Cristovam Pavia tinha pela música de Mozart, tão próxima da pureza e da frescura que ambicionava para a sua poesia. Quanto aos poemas de 1961, sob irónico disfarce heteronímico, são bem reveladores de um autor que se formou num contexto modernista no que ele também significou de insubmissa rejeição de cerimoniosos acatamentos deformas e atitudes bem-pensantes, e aí o surrealismo corrosivo de Cesariny era, de algum modo, um exemplo incontornável.
Relativamente a «35 Poemas», a exigência de Cristovam Pavia não se reflecte apenas na selecção e na disposição dos textos dentro do livro. Não se torna difícil perceber que a ânsia de perfeição que o move se projecta igualmente no título dado à obra. Na sua óbvia ressonância pessoana, visa esse título apresentar os textos coligidos como sendo o essencial de um legado, que exclui tudo aquilo em que não se distinga o timbre mais puro e límpido da voz do poeta. Só, no entanto, a extrema austeridade que o título do volume traduz pode ajudar a explicar a ausência de alguns poemas já então compostos, como dois dos que o suplemento «Das Artes, das Letras» de O Primeiro de Janeiro, certamente por iniciativa de Alberto de Serpa, revelou alguns meses depois da morte de Cristovam Pavia. O lugar de «Pequena Oração» («Quando a nossa dor descansa, / E as lágrimas nos olhos são mais frescas que o orvalho nas flores... / Ave-Maria.») é, sem dúvida, junto de outras duas orações do livro de 1959, e «Consolação para o Tempo Incerto» («Há-de haver sempre meninos a chorar ao pé do velho cão morto.») não deixaria de trazer uma nota de pungente brevidade a uma colectânea posta, toda ela, sob o signo, sem consolo possível, do modo elegíaco.
Desde o princípio que, na colectânea de 1959, somos confrontados com a nostalgia de uma infância demasiado próxima. O texto de abertura, por exemplo, veio originariamente a público no fascículo n.° 3 da Távola Redonda, em Fevereiro de 1950, quando o poeta ainda não tinha completado dezassete anos. Nesse mundo encantado, de fortes aromas, cores intensas, mudanças surpreendentes de luz, fauna misteriosa e flora variada, o menino revisitado pela lembrança fazia já, no entanto, de «pálpebras tombadas», a experiência grave e melancólica da meditação. É, por outro lado, à hora, de «grande indefinível tristeza», do fim do dia, que o jovem poeta sente o «desejo de voltar» ao passado, um passado associado a um espaço preciso, o da Quinta onde decorreu a sua infância, anterior à necessidade dos «versos» e deslumbrada, como no-lo lembra o segundo poema, pelas tarefas que absorvem homens e mulheres no começo do Inverno, mas onde já as canções ouvidas o deixavam adivinhar a tristeza que iria marcar indelevelmente o seu destino. O regresso à infância torna-se, aliás, um tema recorrente em «35 Poemas». Em «E apesar de tudo volto à minha ternura de menino», o poeta sabe que pode voltar à infância e ter mesmo a impressão de que é ainda «o mesmo»; só que leva, agora, consigo uma coisa nova - a «mágoa». O texto que se lhe segue, «Requiem», um dos mais conhecidos poemas de Cristovam Pavia, retira a sua enorme força de um paradoxo: a verificação de que o menino, ele próprio (reminiscente de Sá-Carneiro), que julgara «morto», afinal ainda permanecia vivo no seu íntimo, com ele se confundindo. O espaço correspondente ao tempo evocado é, ainda e sempre, o mesmo, o espaço bem conhecido das «tapadas da quinta», batidas pelos mesmos ventos, envoltas pelas mesmas neblinas, libertando os mesmos cheiros quentes de «terra húmida» e estrumes.
O pendor meditativo da poesia de Cristovam Pavia encontra igualmente expressão num conjunto de poemas marcados por uma religiosidade de claro fundo cristão. Alguns deles aproximam-se mesmo da oração, de uma oração que ora dispensa as palavras e se faz absoluto abandono de si mesmo, ora se deixa diluir entre as amadas flores com que leva, em ofertório, ao altar a beleza das coisas naturais (cf. «A Nossa Senhora» e «Mais Uma Poesia a Nossa Senhora»). A mesma ideia de total despojamento se exprime em «Senhor, era bom / Lavar as nossas lágrimas», num anseio de pureza e transparência que implique o não ser «na terra» mais que «Água perdida e irreconhecível». Emerge até, às vezes, na lírica religiosa de Cristovam Pavia a confiança de quem crê poder alcançar «a deliciosa vertigem» do que será uma experiência mística, a que só se chega através de «forças já não [suas]» (cf. «Se fizer um pequeno esforço ...»). É, aliás, o que há de inexplicável e paradoxal nessa experiência que permite a afirmação de fé com que encerra este poema («Creio neste amor angustiado.»), e a possibilidade de, em «Prelúdio», a «flor esmagada» vencer a «angústia» que a derrubou e se erguer num impulso irreprimível para o alto. E é ainda nesta clave que há que ler o famoso «Não fugir. Suster o peso da hora», ou seja, vendo no poema uma outra proclamação da crença no amor angustiado de Deus, e, ao mesmo tempo, o reconhecimento da necessidade de, na longa e dura travessia da noite escura, não sucumbir ao desespero, e aguardar, longe de aparências e «falsidades», a desvelação do sentido da «hora», o «soltar» final da «sua canção intacta». A. relação do poeta com Deus está, todavia, longe de ser uma relação tranquila. Antes se nos apresenta ela ferida de agónica irresolução como no enigmático fecho do texto que encerra «35 Poemas», ou na imersão em águas obscuras de perda de si que nada consegue impedir, a que se alude em «Mãos». Do mesmo modo, o apelo que se ouve em «Meu São Sebastião de Grunewald» visa garantir uma paz, uma calma que se não tem, e a aceitação de um sofrimento que a sua transfiguração em desejo de experiência mística não é suficiente para anular.
A limpidez da expressão não impede que, frequentemente, a poesia de Cristovam Pavia se aproxime daquele hermetismo que José Régio, em artigo vindo a público em 1969 em O Primeiro de Janeiro, nela observou, não sem, argutamente, salientar que o tinha «por natural a boa parte da alta poesia». Poemas como «A tarde em meio ...» («A tarde em meio mas num milésimo / De segundo depois do lanche ao rito claro / (Um cheiro a leite e a ervas) nem brisa foi / (Adolescendo só as ervas) nem fria náusea / Mexeu a luz dentro do sono / Leve, impossível.»), com a sua sintaxe labiríntica e anacolútica e a vertiginosa sobreposição de planos sensoriais, desafiam qualquer interpretação simplificadora e obrigam-nos a aceitar a recomendação de Walter Benjamin quando lembrava que «a verdade não é o desvendamento que anula o mistério, mas a revelação que lhe faz justiça.»
Uma imagem recorrente na lírica de Cristovam Pavia é a do poeta em atitude de recolhimento, de «pálpebras tombadas». Esse descer ou mergulhar dentro de si não prescinde, todavia, de um enquadramento, que a planície, os campos do Nordeste alentejano lhe fornecem. É um poeta aberto ao mundo dos sentidos que se nos dá a ver, sensível aos cheiros da terra, da terra húmida, das flores, das glicínias, atento às variações de luz ao longo do dia, aos silêncios e à frescura da noite, ao ciclo das estações, ao rodar dos ventos, às metamorfoses das nuvens. E que só na terra, que beija de joelhos, procura um enraizamento que em mais nenhum lugar pode encontrar. Mesmo na cidade, onde os outros o julgam, é ao «manso sortilégio» da planície, lá longe, que se abre, na doce evocação das «folhas dos lameiros amarelos» e da «baixa neblina gotejante», ansiando por irmanar-se às árvores que lançam as raízes «até ao fundo» na terra. Aí se sente seguro e alcança o entendimento de tudo, as próprias palavras se libertam do desgaste que as maculou e se renovam. Não surpreende, assim, que os momentos de exaltação amorosa surjam associados a essa paisagem, e que o poeta ora exprima o seu deslumbramento diante da mulher amada pela extasiada adoração da terra, ora nela reconheça a imagem perfeita de integração na paisagem, e com poder sobre ela, o poder de a amenizar e transformar: «Subitamente ficas na paisagem / E olho os teus olhos quentes e antigos... / Tens sol e sede, tens brincos de cerejas / E apele cheirosa e fresca como a água. // Subitamente sinto aquela sede / Dos sobreiros gretados, das estevas... / Mas perto, fonte ardente, dás frescura / A paisagem dormente e abrasada!» Como também não constituirá motivo de surpresa que o poeta, em «bucólica futura», projecte no tempo a sua ligação à mulher e à paisagem amadas, ou seja, a uma tradição de que se sente herdeiro, a tradição bucólica, que, todavia, não restringe ao passado, e antes vê actuante no presente e aberta, como o título do poema sublinha, ao mistério do futuro: «Nas tuas mãos o aroma das glicínias. / Nos meus olhos o sol de outras tardes. / O céu azul aonde pairam asas / Ou tremem, de súbitas andorinhas... // O tempo agora é um mistério claro... / Vem comigo, vem ver chegar o gado, / Vem ao passado, sem saudade, agora... / Olha o pó que ficou no ar tão calmo... // Meninos sem palavras, que alegria! / Distraídos demais p'ra sermos dois... / Nas tuas mãos o aroma das glicínias. / O céu azul aonde pairam asas...».
Como interpretar a leveda festiva dos poemas de saudação a Manuel Bandeira («Livre Lengalenga a Um Poeta e Invocação», «Avariação» e «Outra Festiva e Avariada Avaliação»), em Maio de 1966, tão longe da gravidade angustiada da linha elegíaca da sua poesia, de que «Ao Meu Cão», desse mesmo período, será a expressão mais acabada? O que é que ela anunciava, depois de mais uns anos de penosa esterilidade? Era, certamente, mais do que um gesto de «gratidão e amor» para com afigura e a obra de bandeira, a que Pavia se refere num texto que acompanhava o envio dos poemas a Alberto de Serpa. O ímpeto libertador, a verve que animam esses três textos são do mais desinibidamente lúdico que, entre nós, se escreveu dentro daquela modernidade que nunca afastou do seu horizonte o gosto pelo destrambelho, a «lira delirante», tão do agrado de poetas portugueses e brasileiros do Alto Modernismo. Poderíamos mesmo ver neles uma espécie de graça que lhe foi concedida no meio da luta desigual com as forças desagregadoras que, de há muito, o vinham minando por dentro. Aceitemo-los como tal. Porque, paradoxalmente, é disso que quase sempre se trata na poesia que Cristovam Pavia nos deixou, de uma simplicidade e de uma limpidez para que não temos nome.
Nota biográfica
Cristovam Pavia é pseudónimo de Francisco António Lahmeyer Flores Bugalho, que nasceu em Lisboa em 7 de Outubro de 1933. O período determinante da infância passou-o, no entanto, numa casa que a família possuía nos arredores de Castelo de Vide, e a paisagem do Nordeste alentejano irá marcar profundamente a sua poesia. O pai, o “presencista” Francisco Bugalho, iniciara pouco antes o seu itinerário poético, que terá na ligação à terra e às actividades que nela se centram e nas gentes que a trabalham um dos vectores principais. O percurso escolar, desde o ensino primário, realiza-o Cristovam Pavia em Lisboa, mas as férias passa-as em Castelo de Vide, em contacto com o mundo rural, que o atrai e convida a um enraizamento. Decisivos na sua escolaridade foram os últimos anos do ensino secundário, no Liceu D. João de Castro, onde conheceu alguns dos seus maiores amigos, vários deles, como, por exemplo, Pedro Tamen, António Osório, Luís de Sousa Costa e Rogério Fernandes, dando já então sinais de uma nascente vocação literária. Em Janeiro do ano em que começa a frequentar o 6.° Ano no referido liceu, sofrera Cristovam Pavia um duro abalo, com a morte do pai. Para o adolescente sensível, estará aí, segundo alguns, a origem dos problemas psicológicos que o iriam atormentar ao longo da sua breve vida.
A frequência, a partir de 1951, de um curso, o de Direito, com o qual não se sentia minimamente sintonizado, agravará nele o sentimento de desajustamento com a realidade. Entretanto uma precoce maturidade poética antes de atingir os vinte anos fará com que, logo nos começos dos anos 50, o seu nome figure entre os dos colaboradores de duas das mais importantes revistas desse período, a Távola Redonda e a Árvore. Em meados da década, depois de desistir de Direito, acaba por matricular-se na Faculdade de Letras, em Filologia Germânica, curso de que completará o currículo da licenciatura, sem ter, todavia, apresentado a tese final. Por essa altura, mais concretamente, em 1956, começa a publicar-se o jornal dos universitários católicos 'Encontro’, e, pouco depois, é criado o Centro Cultural de Cinema, o que contribuirá para definir um seu enquadramento geracional entre os que estão, então, empenhados numa renovação da Igreja em Portugal e que, mais tarde, terão na revista de inspiração personalista O Tempo e o Modo um dos seus privilegiados veículos de intervenção. Também de 1956 é a entrada nos Dominicanos de Nuno Cardoso Peres, seu amigo desde os tempos do Liceu D. João de Castro e colega em Direito, a quem dedicará um dos textos mais emblemáticos de «35 Poemas», «Não fugir. Suster o peso da hora». Do núcleo central da «revista de pensamento e acção» O Tempo e o Modo, cuja publicação se inicia em Janeiro de 1963, farão parte diversos membros da que João Bénard da Costa chamou «a geração do Encontro», ele próprio, Pedro Tamen, Nuno de Bragança, Alberto Vaz da Silva, e António Alçada Baptista, o principal animador do projecto, de uma geração anterior mas com ela plenamente identificado. Não por acaso, os subscritores dos textos de homenagem a Cristovam Pavia que a revista publica após a sua morte, em 1968, pertencem todos eles, Alberto Vaz da Silva, João Bénard da Costa, M.S. Lourenço, Nuno de Bragança e Pedro Tamen, a essa geração.
Em 1959, na colecção Círculo de Poesia, dirigida por Pedro Tamen, um dos amigos mais presentes, com Luís de Sousa Costa, na vida de Cristovam desde os anos da juventude, e inaugurada por Jorge de Sena no ano anterior, dá Cristovam Pavia, finalmente, a público «35 Poemas», depois de já se ter afirmado, através das revistas da época, como uma das vozes mais originais da poesia dos anos 50. Não voltará a publicar em livro. O consolo que a publicação do volume e a sua recepção crítica lhe trazem não o impede, todavia, de se dar conta do agravamento da sua condição psíquica. Procura, então, saída para os males que o afligem num programa de psicoterapia na Alemanha, em Heidelberg. Com interrupções mais ou menos longas em Portugal, aí seguirá, irregularmente, apesar da forte empatia com o médico, o programa entre Agosto de 1960 e o mesmo mês de 1962. Grande revelação constitui, para ele, o extenuante trabalho braçal que, episodicamente, conhece na cidade alemã como ajudante de pedreiro, o que, entre outras coisas, lhe vai permitir um contacto de igual para igual com gente fora dos meios intelectuais e académicos. Fará, aliás, amizade com alguns dos seus companheiros de trabalho, e na correspondência aos amigos portugueses falará mesmo com orgulho da sua condição de «Dachdecker» (telhador, digamos). Por outro lado, o admirador que há nele do eterno feminino deixa-se deslumbrar pelas raparigas alemãs, réplicas do tipo físico de algumas das mulheres que, em Portugal, lhe motivaram paixões infelizes.
O mal que o persegue e que, sem cura, traz de volta ao país, é bem real, e nada tem a ver com o «mal du siècle» de que, em diferentes tempos, se queixaram tantos poetas, afinal longevamente saudáveis. Só ele pode estar por detrás da morte que procura em 13 de Outubro de 1968, por dolorosa coincidência no dia em que morreu Manuel Bandeira, um dos poetas que mais admirava.
Poemas
A Nossa Senhora
Voltarei à penumbra fresca da igreja
Ancestral, silenciosíssima e vazia,
Aonde está pousado o teu altar:
Doce mãe Maria...
E ajoelhar-me-ei,
E fecharei os olhos sem pensar...
- Que a minha oração nada mais seja:
Basta descansar.
Meu São Sebastião de Grünewald,
Meu arcanjo de carne e sangue em fogo,
Fita-me com teu olhar viril, tão calmo...
E o sabor de sentir passar cada segundo,
E o perfume a cravos quentes dessas feridas.
Fita-me com teu olhar viril, tão calmo.
Se fizer um pequeno esforço levanto-me e caminho no ar
Porque o meu Deus dá-me forças já não minhas.
Se fizer mais um pequeno esforço tudo se transformará em verdadeiro prazer
E em cada gota de suor, em cada brilho frio nas gotas de suor
Rodará um mundo fresco como um leque que se abre.
Se fizer um último esforço será a vertigem, talvez a deliciosa vertigem.
E depois não interessa o que virá.
Creio neste amor angustiado.
Senhor, era bom
Lavar as nossas lágrimas
De todo o sentimento...
Dos cansaços humanos,
Daquela angústia vaga
E da alegria...
Senhor nós devíamos
Lavar as nossas lágrimas
Para serem na terra
Água perdida e irreconhecível.
Prefácio e nota biográfica: Fernando J.B. Martinho
Poemas: Cristovam Pavia
In Poesia, ed. D. Quixote
20.10.10