Impressão digital
Paisagens
Pedras angulares A teologia visual da belezaQuem somosIgreja e CulturaPastoral da Cultura em movimentoImpressão digitalVemos, ouvimos e lemosPerspetivasConcílio Vaticano II - 50 anosPapa FranciscoBrevesAgenda VídeosLigaçõesArquivo

Investigação

P. Sena Freitas: homem de palavra

Em termos gerais, o catolicismo português do final do século XIX e princípios do seguinte é-nos apresentado sob o signo da decadência. E não faltam razões para isso, se olharmos à rarefacção da prática, à deficiente formação dos clérigos, às ambiguidades do enquadramento político-eclesiástico, à pouca incidência nos meios intelectuais, etc. Também não é difícil constatar que, por essas e outras razões, o regime político e o quadro cultural dominante a partir de 1910 não se ligaram positivamente ao catolicismo pátrio e internacional, mas sobretudo ao seu contrário, tentando reduzir ainda mais quer a implantação quer a influência que lhe sobrasse nos espíritos e nos costumes.

Tudo isto tem sido dito e redito e faz opinião e cultura, como (pré)compreensão geral das coisas. No entanto, com a distância e apuramento que só o passar do tempo permitem, algumas considerações se têm somado que nos fazem rever um juízo tão apodíctico. Em primeiro lugar, pergunta-se: se eram assim tão cabais a degenerescência e a inconsistência do catolicismo português no início do século XX, como se explica a sua capacidade, não só de resistência, mas até de recomposição criativa nas décadas que se seguiram? "Criativa", repito, uma vez que a vida interna e externa da Igreja em Portugal se manifestou de modo distinto do verificado durante a monarquia constitucional. Não só por ser outro o quadro político-eclesiástico, passando em Abril de 1911 de religião de Estado a religião separada, mas sobretudo porque a sua presença na sociedade portuguesa ganhou protagonismos novos, em termos pessoais e associativos, que excederam em muito os anteriores, e também com alguma novidade literária e cultural. Tal não aconteceria decerto sem enraizamento anterior e fundamentação prévia. Efectivamente, foi fruto de alguns factores contemporâneos daquela decadência verificada nos fins da monarquia. Contemporâneos, mas de sinal contrário e promissor.

Na verdade, evidenciava-se mais e mais a falência do enquadramento político da religião católica pela monarquia constitucional, com a estrita dependência do Terreiro do Paço para qualquer nomeação episcopal ou paroquial, a par das dificuldades de toda a ordem para formar convenientemente o clero secular e a semiclandestinidade em que sobrevivia o regular, verificando-se, de facto, a pouca incidência católica no meio cultural da época e a quase redução da vida católica à devoção e à liturgia, a par, sem dúvida, da caridade e da beneficência. Enquanto tudo isto era sentido e apontado, com sentimentos diversos, por católicos e não católicos da viragem de um para o outro século, acrescentavam-se já alguns sinais de que a regeneração portuguesa tão ansiada por todos a nível nacional tinha também uma componente católica propriamente dita, que aspirava à renovação das convicções e à reforma das práticas, no sentido de influenciar apostólica e militantemente a sociedade no seu todo. E fazia-o, ao mesmo tempo, aceitando, em princípio, o quadro novo da sociedade, da política e da cultura.

Disse de propósito "apostólica e militantemente", palavras marcadamente confessionais. Porque são conceitos que ganharam intenção e intensidade novas na altura. A dimensão apostólica, no sentido do envio a proclamar o Evangelho de Cristo, é tão antiga como o Cristianismo. Mas, ao longo do século XIX, ganhou urgência e dimensão próprias. Urgência, porque o quadro pastoral tridentino - aliás notável, ainda que muito clerical - se mostrava insuficiente numa sociedade menos consensual e menos praticante; dimensão, porque, por isso mesmo, o "apostolado" foi integrando leigos que começaram a descobrir o papel próprio e os meios específicos que os chamavam agora. O sentido militante da vida cristã reforçou-se também nos que sobravam e nos que descobriam o catolicismo oitocentista. Milícia desarmada, ou melhor, com as armas novas da imprensa, da intervenção pública na sociedade menos ou nada confessional, pelo exercício da cidadania, ainda que cidadania crente. A pouco e pouco, este "movimento católico" também em Portugal abria futuro, mesmo quando não era notado pelos analistas de então, mesmo que tarde em ser suficientemente reconhecido pelos actuais.

Nos últimos tempos, porém, a historiografia portuguesa tem (re)descoberto algumas dessas figuras. Em trabalhos académicos, nomes como os do Conde de Samodães ou Abúndio da Silva têm sido realçados. A obra que prefacio insere-se significativamente nessa linha, manifestando de modo vasto, profundo e integrado, a personalidade do padre Sena Freitas [Ponta Delgada, 1840 - Rio de Janeiro, 1913].

Os trabalhos, todos de especialistas e coloquialmente apresentados, afirmam-no como "Homem de Palavra". Título adequado, pois assim mesmo ele se manifestou e quis. Sena Freitas integra um superlativo grupo que, provindo dos Açores, marcou em sentidos díspares a vida nacional da segunda metade de Oitocentos. Como Antero ou Teófilo, também ele passou por Coimbra, onde mais se diziam coisas novas em detrimentos das antigas. E onde o debate era, apesar de tudo, frouxo, por relativa falta de contendores duma parte, da católica precisamente, que fossem ao mesmo tempo crentes e actuais na forma e no conteúdo. A influência mental de Antero ou Teófilo - aliás diversas - foi relevante na altura. A de Sena Freitas não o terá sido tanto, mesmo no catolicismo pátrio em geral. Mas alguma teve e, sobretudo, algum caminho consolidou ou abriu no sentido inovador acima indicado. É até possível que, com o tempo, nos pareça hoje mais actual e vivo que os seus dois con­terrâneos. Como tudo o que é redescoberto e surpreende.

Os leitores aproveitarão muito com a leitura dos textos aqui publicados. Da biografia à bibliografia, da teologia à filosofia, da literatura à ciência, da intervenção pública à eclesial, o padre Sena Freitas agigantar-se-á porventura ainda mais hoje do que há cem ou centro e trinta anos, quando travava as suas últimas lutas de pena ou quando se entregava às primeiras lides apostólicas, no sentido mais lato e com o inconformismo mais criativo. Paga como todos o seu tributo à época e ao meio que foram os seus, mas consolida uma conta, corrente e a prazo, que ainda hoje lhe sustenta a memória e o lugar. Talvez mesmo o apreciemos mais agora, vendo-o preparar-se para cada posição - ou contraposição -, recorrendo incansavelmente a toda a informação e estudo, no país ou no estrangeiro, para que a palavra a dizer fosse consistente e preenchida. Ou quando o vemos, com a mesma liberdade fiel, despertar os próprios correligionários para as exigências iniludíveis do tempo que lhes cabia. Ou quando o acompanhamos por terra e mar - mar sobretudo - em páginas admiráveis de sugestiva literatura e de abertura ecuménica ...

Mas é o homem que avulta, em si mesmo e no caminho que abriu, quase só por si. Ou melhor, que deixou a Palavra abrir na vida e na luta que o definiram. Aí sim foi linear, apresentando aliás essas derivas que lhe adviriam do temperamento e a todos nos tocam pela agitação contemporânea, que já era dele também.

Só me resta agradecer e recomendar. Agradecer aos organizadores desta obra e de tudo quanto tem sido por eles feito para devolver Sena Freitas à cultura portuguesa. Agradecer aos autores dos trabalhos aqui reunidos, tão importantes no conjunto e no detalhe. E recomendar muito a sua leitura, pois, além do mais, não se trata de obra corrente. Trata-se, isso sim, da introdução a um mundo ainda desconhecido e quase novo para muitos coetâneos nossos. Esse mesmo da regeneração católica ou da parte católica da regeneração portuguesa onde, crentes e não crentes, nos temos (re)encontrado desde Oitocentos.

 

Capítulos do livro: O homem e a palavra. A época de Sena Freitas: cultura, mentalidade, controvérsias. Questões biográficas. Ideologia e polémica. Questões teológicas e eclesiais. Aspectos do pensamento de Sena Freitas. Literatura e sociedade. Inéditos e espólio. Cronobiografia do P. Sena Freitas.

 

D. Manuel Clemente
Bispo do Porto, Presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais
In Homem de palavra, Roma Editora
09.07.09

Capa

Homem de palavra
Padre Sena Freitas

Autores (orgs.)
Luís Machado de Abreu
José Eduardo Franco
Annabela Rita
Jorge Croce Rivera

Editora
Roma Editora

Ano
2008

Páginas
846

Preço
€ 35,00

ISBN
978-989-8063-22-9








































































 

 

 

Página anteriorTopo da página

 


 

Receba por e-mail as novidades do site da Pastoral da Cultura


Siga-nos no Facebook

 


 

 


 

 

Secções do site


 

Procurar e encontrar


 

 

Página anteriorTopo da página