A Igreja católica em Itália lançou recentemente uma publicação digital por ocasião do centenário do nascimento do cineasta Federico Fellini, que se está a assinalar este ano.
O olhar do realizador continua «atual, na leitura e interpretação do tempo», e «para além da receção nem sempre conciliante no quadro sociocultural ou religioso, Fellini demonstrou ser até “profético”», considera o diretor do Gabinete para as Comunicações Sociais da Conferência Episcopal Italiana.
Vincenzo Corrado acrescenta que o objetivo da revista de 55 páginas, de acesso gratuito, de que é coautor, é o de «tentar recolher as pedras que Fellini deixou na estrada do imaginário coletivo. Pedras que têm o peso dos anos; pedras que talvez tenham sido descartadas; pedras que por vezes foram consideradas excessivamente pontiagudas, quase perfurantes… No entanto, são pedras que ajudam a compreender a história, a poesia, a cultura, a arte, desafiando o tempo e o espaço».
As relações entre o cineasta e a hierarquia católica, e o arquivo das apreciações que a Igreja propôs em relação aos seus filmes constituem o segundo e terceiro capítulos da revista, intitulada “O cinema de Federico Fellini – Uma leitura pastoral entre passado e presente”, da qual apresentamos excertos da primeira parte.
O olhar felliniano. Raízes, memória profecia
Vincenzo Corrado
«O Louco: Sou ignorante, mas li alguns livros. Podes não acreditar, mas tudo aquilo que há neste mundo serve para alguma coisa. Por exemplo, apanha aquela pedra, ali.
Gelsomina: Qual?
O Louco: Esta… Uma qualquer… Mesmo este serve para qualquer coisa; mesmo esta pedrinha.
Gelsomina: E serve para quê?
O Louco: Serve… Mas que sei eu? Se o soubesse, sabes quem seria?
Gelsomina: Quem?
O Louco: O Pai Eterno, que sabe tudo: quando nascemos, quando morremos. E quem pode sabê-lo? Não, não sei para que serve esta pedra, mas deve servir para qualquer coisa. Porque se ela é inútil, então tudo é inútil; inclusive as estrelas. E também tu, também tu serves para alguma coisa, com a tua cabeça de alcachofra» (Federico Fellini, “A estrada”, 1954).
O diálogo pungente e, ao mesmo tempo, poético entre o Louco (Richard Basehart) e Gelsomina (Giuletta Masina), numa cena-chave do filme “A estrada”, dá a frescura e a atualidade do olhar de Federico Fellini. Esta obra, tão cara ao papa Francisco, de tal maneira que dela extraiu inspiração para a homilia da Páscoa de 2017, condensa emoções, sentimentos, que interrogam em profundidade a alma humana. E, conjuntamente, relançam, ainda hoje, a poesia de um cinema que não conhece o desgaste do tempo.
Neste ano, em que se celebram os cem anos do nascimento de Fellini, juntamente com os de Alberto Sordi, muito se escreveu e muito obrigatoriamente se escreverá para que seja, mais uma vez, reforçada a centralidade de cada “pedra” na nossa história. É, definitivamente, a marca da mensagem do santo padre para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2020, “‘Para que possas contar e fixar na memória’ (Êxodo 10,2). A vida faz-se história”. «Na confusão das vozes e mensagens que nos rodeiam, temos necessidade duma narração humana, que nos fale de nós mesmos e da beleza que nos habita; uma narração que saiba olhar o mundo e os acontecimentos com ternura, conte a nossa participação num tecido vivo, revele o entrançado dos fios pelos quais estamos ligados uns aos outros», escreve o papa.
Uma narração, podemos acrescentar, que nos faça distinguir as “pedras” que jazem nas nossas estradas; que nos faça compreender que tudo serve para alguma coisa, porque cada pequeno detalhe, mesmo o mais insignificante, remete para uma dimensão que nos supera.
A arte cinematográfica continua a acompanhar o espetador neste percurso de descoberta contínua. Não simples evasão da realidade, mas pura poesia, memória viva de uma história concreta. Federico Fellini é mestre neste jogo de desvelamento e reapropriação: o seu cinema está impregnado de recordações, raízes, pertença – “Os inúteis” (1953), “8 ½” (1963), “Amarcord” (1973) –, como também da necessidade de proteger a inocência interior e o sonho.
O seu olhar continua atual, na leitura e interpretação do tempo. Para além da receção nem sempre conciliante no quadro sociocultural ou religioso, Fellini demonstrou ser até “profético”, colhendo as dobras problemáticas da sociedade italiana na rampa de lançamento do boom económico nos anos 60, pronta a perder-se, depois, também na explosão dos meios de comunicação de massa. É o que nos diz profundamente em obras como “La dolce vita” (1960), “O navio” (1983) ou, ainda, em “Ginger e Fred” (1986), onde a televisão e a sua linguagem direta, frenética, surgem vorazes, devoradoras.
No ano do centenário, a figura e a poética de Federico Fellini tornam-se convite a salvaguardar a memória cultural; do mesmo modo, recordam a importância do cinema como precioso espaço de confronto, conhecimento e crescimento. E, ainda, tonam-se ocasião para alargar o campo do olhar sobre um autor fecundo, mas sobre quem houve, no passado, momentos divisivos no interior da Igreja.
Rever hoje Fellini, sem querer mudar o curso da História, é um empenho para colher os ganhos da Memória, para alargar o campo de visão do presente, o horizonte do nosso olhar sobre o amanhã. O sonho, o encanto, a ligeireza infantil a guardar no coração também na vida adulta, são outras tantas conquistas que não conhecem as rugas dos anos. Na estrada do tempo cada coisa tem o seu valor, mesmo a mais inútil pedra.
Nas semanas suspensas pelo Covid-19 que condicionaram e continuam a condicionar a nossa vida e os nossos hábitos, incluídos os do cinema e dos seus festivais, regressam as perguntas de Gelsomina: «Qual? E para que serve? Quem?». São interrogações que intercetam a existência e dão sentido também às nossas «pedrinhas».