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Ciclo-Scardanelli

Sequência dos poemas de Hölderlin em versão portuguesa de Maria Teresa Dias Furtado

 

1 Primavera II

A Primavera

Quando da profundidade a Primavera entra na vida,
Enche-se de pasmo o homem, cada nova palavra erguida
Da sua espiritualidade, as alegrias regressam
E a festa faz com que hinos e canções apareçam.

A vida vem a si na harmonia das estações,
Para sempre Natureza e Espírito ao sentido
                                                         [dão as mãos,
E a perfeição é una no espírito, com beleza,
Assim muita coisa vem a si, principalmente na Natureza.

24 de Maio de 1758
Humildemente, Scardanelli.

 

 

3 Verão II
9 Verão III

O Verão

O campo está pronto para a colheita, nos montes cintila
A majestade das nuvens luminosas, enquanto no céu
vasto
Em noite silenciosa o número das estrelas brilha,
Enorme é a sua multidão, das nuvens longe e do seu
rasto.

Os caminhos conduzem até mais longe, dos homens
a vida
Mostra-se sobre mares a descoberto,
O dia solar é para a laboriosidade vivida
Uma elevada imagem, e a manhã é brilho por ouro liberto.

Com novas cores se adorna dos jardins a largura,
Enche-se de pasmo o homem por seu labor conseguido,
O que com virtude cria e com perfeição ergue à altura,
Ao passado em soberbo séquito fica unido.

 

 

3 Outono III

O Outono

As lendas, já da terra apartadas,
Do espírito outrora presente e que regressa,
Para a humanidade voltam, coisas renovadas
Aprendemos do tempo que tão rápido passa.

Das imagens do passado não se esquece
A Natureza, e quando os dias empalidecem
Em pleno Verão, o Outono sobre a terra desce,
E as chuvas, em seu espírito, no céu aparecem.

Em pouco tempo muitas coisas acabaram,
O lavrador, de mão no arado,
Vê como o ano, em breve, alegre fim terá encontrado,
Nessas imagens os dias do homem culminaram.

O orbe terrestre de rochedos adornado
Não é como a nuvem perdida no ocaso iniciado,
Apresenta-se como um dia de ouro revestido,
E a perfeição atinge o seu pleno sentido.

 

 

7 Inverno III
22 Inverno II

O Inverno

Quando a pálida neve os campos embeleza,
E um alto fulgor o vasto plaino ilumina,
Já o Verão só ao longe seduz, e com delicadeza
Muitas vezes a Primavera se avizinha, enquanto a hora
    declina.

Esplêndida aparição, o ar é mais penetrante,
A floresta brilha, e nenhum caminhante  
Ousa caminhos remotos trilhar, o silêncio a produzir
O que é sublime e no entanto tudo está a rir.

A Primavera não resplandece no brilho dos botões
Tão grato ao homem, mas as estrelas luzem
Longe, no céu, agrado produzem
Como o distante céu, quase sem alterações.

Os rios são como planícies, as imagens,
Ainda que dispersas, são mais nítidas, a suavidade
Da vida permanece, a grandeza de cada cidade
Surge, definida, nas incomensuráveis paisagens.

 

 

10 Outono II
21 Outono I

O Outono

O fulgor da Natureza é aparição plena,
Quando o dia prenhe de alegrias termina,
É o ano que com esplendor culmina,
E os frutos se unem à luz amena.

A redondez da terra está adornada, é raro soar
Qualquer ruído em campo aberto, o sol a acalentar
Suavemente o dia outonal, os campos são
Vistos em amplo panorama, as brisas soprando vão

Ramos e hastes em alegre rodopio
Quando nos campos já se instala o vazio,
E o sentido total da clara imagem vive
Como imagem que com a áurea magnificência convive.

15 de Novembro de 1759

 

 

12 Inverno I

O Inverno

O campo está despido, apenas sobre distante colina
Brilha o céu azul, e como caminhos avançando
Aparece a Natureza, uniforme, brisas soprando
Frescas, e a Natureza apenas coroada de luz fina.

Do céu, a hora da terra é visível
Todo o dia, por noite clara cingida
Quando lá no alto a multidão de estrelas é perceptível,
E mais espiritual a expansão da vida.

 

 

14 Primavera I

A Primavera

De alturas distantes desce o novo dia,
A manhã das sombras despertada
À humanidade ri engalanada de alegria,
De doce júbilo está a humanidade penetrada.

Nova vida ao futuro se quer desvelar,
Botões, sinais de dias venturosos,
O grande vale e a terra parecem povoar,
Enquanto ficam longe, na Primavera, momentos
dolorosos.

3 de Março de 1648
Humildemente, Scardanelli.

 

 

16 Primavera III

A Primavera

Quando nova se revela a luz sobre a terra,
Cintila o verde prado à chuva primaveril e alegremente
A brancura das flores vai descendo na clara corrente,
Quando um dia sereno para os homens se encerra.   

A visibilidade diferenciações claras favorece,
O céu da Primavera em paz permanece,
Para que o homem com calma contemple do ano
o atractivo,
E à perfeição da vida reconheça o sentido.

15 de Março de 1842
Humildemente, Scardanelli.

 

 

17 Verão I

O Verão

No vale corre o ribeiro, entre altas montanhas,
em remanso;
E elas na amplidão verdejam em redor do vale imenso,
E estando as árvores em sua folhagem tão estendidas,
Junto delas as águas deslizam quase escondidas.

E por cima resplende o belo sol de Verão,
Que quase parece apressar do claro dia a radiação,
O anoitecer em fresca brisa acaba por chegar,
E que o homem bem o termine vem procurar.

24 de Maio de 1758
Humildemente, Scardanelli.

 

 

O Verão

Os dias passam percorridos por suaves brisas e seu
rumor,
Trocando nuvens pelos campos cheios de esplendor,
Os confins do vale encontram-se com os montes
a escurecer,
No ponto em que as ondas do rio vão desaparecer.

As sombras das florestas espalham-se em redor,
Onde também o ribeiro desliza longe e com palor,
E avista-se a certas horas a imagem da distância,
Quando o homem a tal sentido aplica a sua ânsia.

24 de Maio de 1758
Scardanelli.

 

 

O Verão

Ainda se vê a estação do ano, os campos estivais
Estão revestidos de brilho, de suaves sinais;
Verdes são os campos estendidos em esplêndida lonjura,
Por onde o ribeiro vai descendo em ondas e frescura.

Os montes e os vales assim percorre o dia,
Imparavelmente sua luz irradia,
Em altos espaços as serenas nuvens passam agora,
Parece o ano que em magnificência se demora.

9 de Março de 1940
Humildemente, Scardanelli.

 

 

O Verão

Quando as floração primaveril desaparece,
Chega o Verão que à volta do ano se entretece.
E tal como o ribeiro pelo vale desce,
Assim o esplendor dos montes em seu redor acresce.

O máximo esplendor o campo ostenta,
É como o dia que para o entardecer se orienta;
Enquanto o ano se demora, assim as horas do estio
E as imagens da Natureza se esbatem no homem
que as viu.

24 de Maio de 1778
Scardanelli.

 

 

Poemas da Janela

Depois de ter escrito as Elegias e os Hinos Tardios que deslumbraram a partir da sua publicação por Norbert von Hellingrath, nos inícios do século XX, e de ainda ter traduzido Antigona e Édipo, de Sófocles, Hölderlin, sobretudo após a cessação da sua actividade como preceptor em Bordéus, e de lhe ter chegado a notícia da morte da sua amada, Susette Gontard, apresentava fortes indícios de perturbação mental. O seu amigo dos tempos universitários em Jena, I. von Sinclair, ainda lhe obteve o cargo de Bibliotecário em Bad Homburg, onde o Poeta viveu algum tempo até que o seu estado de saúde se agravou e, de acordo com a mãe de Hölderlin, foi enviado, em 1806, para uma Clínica em Tübingen. Foi enviado, aliás, à força, pois resistiu gritando: “Não sou nenhum Jacobino!” A estada na Clínica não se revelou benéfica e causou ao escritor grande sofrimento. O marceneiro-mestre Ernst Zimmer, que residia na Torre junto ao rio Nécar, via-o com grande admiração por ter lido o romance epistolar Hipérion e foi-lhe posta a questão de o receber em sua casa para lhe prestar os cuidados necessários, havendo poucas esperanças de vida. Zimmer, o seu último amigo dedicado, recebeu-o em sua casa em 1807 onde o Poeta encontrou o seu último refúgio e o calor de uma família, aí tendo vivido até ao dia 7 de Junho de 1843.

Desta última fase da vida conservam-se cerca de meia centena de poemas, alguns dos quais assinados com um misterioso pseudónimo – Scardanelli – precedido por datas fantásticas, não correspondendo, portanto, à data real da composição. Muito se tem especulado sobre o significado deste pseudónimo, não sendo os resultados concordes. Roman Jacobsen aponta para uma propensão para o anagrama que já estaria no título do romance epistolar Hipérion. Outros pensaram descobrir nesse nome um elemento de conhecimento próprio, significando, em italiano, scardassare, “cardar lã”, tarefa executada por débeis mentais, talvez também por loucos. Aliás surge outro pseudónimo em italiano, “Buonarotti” / “Buarotti” em textos em prosa inseridos em livros de autógrafos.

A maior parte dos poemas desta última fase são dedicados às estações do ano. Ernst Zimmer explica, em carta a um destinatário desconhecido, datada de 22 de Dezembro de 1835: “Hölderlin foi e continua a ser um grande amigo da Natureza e da janela do seu quarto pode avistar todo o vale do rio Nécar juntamente com o vale do Steinlach. Concordei em recebê-lo e agora já há 30 anos que vive em minha casa.” W. Waiblinger fala de “muitas imagens belas, recolhidas directamente da Natureza, quando da sua janela via a Primavera surgir e desaparecer”. Assim, quando Hölderlin fala de “rio”, trata-se do Nécar, de “ribeiro” é o Steinlach, a “folhagem” é a que se estende na ilha do Nécar, os “campos” são os que ficam junto às margens do “vale” do Steinlach e a “montanha”, os “montes” referem-se aos Alpes da Suábia. Tudo isso era visível a partir da sua janela.

Fala ainda Zimmer, na mesma carta acima citada, de um episódio em que Hölderlin, a seu pedido, escreveu um poema: “O poema que junto envio escreveu-o ele em 12 minutos: pedi-lhe que me escrevesse de novo alguma coisa, ele apenas abriu a janela, olhou para o exterior e passados 12 minutos estava pronto.” De facto, Hölderlin escreveu nesses anos dois poema dedicados, desde o título, ao seu então melhor amigo:

 

A ZIMMER

As linhas da vida são diferentes
Como os caminhos e os contornos dos montes.
O que aqui somos, pode Deus além completar
Com harmonia, prémio eterno e paz sem par.

 

A ZIMMER

De um homem direi, se bom for
E sábio, que mais lhe falta? Haverá algo
Que baste a uma alma? Haverá uma espiga,
Uma vide mais madura na terra

Cultivadas que o nutram? Tal é assim
O sentido. Um amigo é muitas vezes a amada, a arte
Ainda mais. Ó meu caro, a ti digo a verdade.
Teu é o espírito de Dédalo e da floresta.

 

A mensagem dos poemas mais tardios, na maioria apresentados rítmica e metricamente fechados, é, segundo Oelmann: “a visão da Natureza enquanto manifestação, na perspectiva do homem enquanto aparição, é sinal visível da perfeição da vida. O poema aponta para o carácter de sinal da natureza contemplada e das suas próprias imagens. O sujeito lírico, porém, vive no afastamento de um espaço interior, atrás de uma janela que constitui uma fronteira, observa a Natureza “na qual já não está implicado” (Böschenstein, p. 48)”. O afastamento significa estar fora das dúvidas e das lutas da vida, o que favorece uma existência na paz da Natureza.  

Gustav Schwab foi um de entre muito poucos que se manifestou sem restrições a favor dos poemas mais tardios. Via o génio do Poeta também na simplicidade da linguagem e da associação de ideias. O leitor apercebe-se da repetição de palavras nucleares no poema, nos conjuntos de poemas e também nos poemas de Scardanelli, bem como das respectivas correspondências e contrastes. Assim vamos tomando consciência da clareza, da justeza, da densidade textual, do domínio do processo de composição poética – apesar dos aparentes estereótipos - , do elevado carácter artístico dos poemas. Ou como diz António Ramos Rosa: “Mais do que as palavras, o que resta é o espaço entre os vocábulos no branco da página. A linguagem é uma página de sinais esquecidos. Depois de todas as imagens, depois da última palavra, permanece o amor frágil de uma palavra suspensa, como que interdita sobre a aresta de um obstáculo. É a imagem que se apaga, que se perde, e no entanto caminha para o desconhecido e ganha o sombrio fulgor da palavra transfigurada. (…) A palavra escava continuamente o sentido, estabelece o espaço do silêncio, desmorona as significações, provoca abalos sísmicos na linguagem. A escrita é uma estrela em perpétua deflagração.” (Caligrafias: 2005/2006, 21)

Da sua janela para o mundo circundante, Hölderlin-Scardanelli ainda conseguia fazer cantar a Natureza e o anelo do homem de uma vida digna, aberta a todas as dimensões do espírito.

Maria Teresa Dias Furtado

 

 

 

Bernhard Böschenstein, “Hölderlins späteste Gedichte”, Hölderlin-Jahrbuch 14 (1965/66), p.35-56.

 

Maria João Fernandes (org.), Gonçalo Salvado (colab.), Caligrafias, separata da revista Mealibra III série Nº 17 Inverno 2005/2006.

 

Roman Jacobsen/Grete Lübbe-Grothues, “ Ein Blick auf ‘Aufsicht’ von Hölderlin.” R. J., Hölderlin, Klee. Brecht. Zur Wortkunst dreier Gedichte. Frankfurt am Main, 1976, p.27-96.

 

Ute Oelmann, “Fenstergedichte”. Gehard Kurz (org.), Interpretationen. Gedichte von Friedrich Hölderlin. Stuttgart, Philipp Reclam jun., 1996, p. 200-212.

 

Gregor Wittkop (org.), Der Pflegesohn. Texte und Dokumente 1806-1843 mit den neu entdeckten Nürtingen Pflegschaftsakten. Stuttgart, 1993.

 

 

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