«Um guarda com uma expressão maravilhada está a apanhar flores roxas de tremoceiro, a arma pendurada às costas. Ao olhar para a esquerda, vejo nuvens de fumo branco a elevar-se e ouço o barulho de uma locomotiva. As pessoas já se encontram nos vagões de mercadorias, as portas fecham-se. Há muitos polícias verdes, que esta manhã chegaram a marchar, cantando, ao lado do comboio, e a polícia militar holandesa também está presente. A quota de pessoas que devem partir ainda não está preenchida.
Acabo de ver uma mãe a sair do orfanato, trazendo nos braços uma criança pequena que também tem de ir, sozinha. Retiraram ainda umas quantas pessoas doas barracões-hospital. Hoje estão a trabalhar a sério; estão cá de visita manda-chuvas de Haia. É muito estranho observar de perto estes cavalheiros nos seus afazeres. Andei novamente atarefada desde as quatro da manhã, a carregar bebés e bagagem. Nestas poucas horas, conseguimos acumular melancolia que chegue para uma vida inteira.»
Na abertura do congresso internacional sobre Etty Hillesum, que decorreu este sábado, na capela do Rato, em Lisboa, a atriz Maria Rueff deu voz a uma das missivas da jovem judia, escrita no campo de Westerbork, a 8 de junho de 1943, menos de seis meses antes de morrer em Auschwitz. O texto integra o volume “Cartas 1941-1943”, editado pela Assírio & Alvim na coleção Teofanias.