É conhecida a leitura sobre Jesus com doze anos e quando os seus pais iam todos os anos a Jerusalém, pela festa da Páscoa. Nesse ano, algo diferente aconteceu e a família nunca mais se esqueceu: Jesus ficou na cidade e os pais não se aperceberam. Ou melhor, deram-se conta três dias depois…
Não terá sido comum também connosco e com os nossos pais este dar-se conta que algo está diferente? Sabemos que eles estão lá, são o pilar da família, mas nós já estamos diferentes. Aos olhos dos pais, somos os de sempre, mas o mundo já nos vê de outro modo e nós a ele:
Todos quantos o ouviam, estavam estupefactos com a sua inteligência e as suas respostas (Lc 2, 47).
Começam as conversas mais acesas, perguntas, respostas e incompreensão:
Ele respondeu-lhes: «Porque me procuráveis? Não sabíeis que devia estar em casa de meu Pai?» Mas eles não compreenderam as palavras que lhes disse (Lc 2, 49).
Esta passagem do Evangelho de S. Lucas está muito mais enraizada no nosso quotidiano do que imaginamos. O silêncio que sugere no final é aquele que só os pais e filhos conhecem profundamente:
Sua mãe guardava todas estas coisas no seu coração (Lc 2, 51b).
Sugere amor verdadeiro, mesmo que as razões da desavença não se encontrem. Este silêncio é o fruto de uma relação de conhecimento profundo, de cuidado quotidiano, de preocupação, o que resolve aquilo que a retórica não consegue. O silêncio sugere sempre o mistério.
No retiro de diários gráficos feito em 2018 na casa dos Missionários Combonianos de Florença, esta passagem bíblica serviu de mote para o exercício de apresentação do grupo. O que fazíamos todos os anos com os nossos pais quando tínhamos cerca de doze anos? Que episódio está gravado na nossa memória tendo como protagonistas a nossa família? Terá ele gerado um momento de incompreensão? Cada participante deveria apresentar-se com esse episódio escrito. Ao lado, uma mancha de cor enigmática, mas que acompanhe o conteúdo da história, inspirada no trabalho de Mark Rothko, para quem a mistura de cores nos poderia levar a uma experiência de transcendência.
Na minha apresentação, referi-me a um episódio sobre atravessar um rio a nado em que a decisão quase me custou a vida. Curiosamente, quando falava há uns meses com o D. José Tolentino Mendonça, ele confessou-me ter um episódio semelhante na vida dele…
Mário Linhares teria talvez treze anos quando atravessou um rio a nado, na Barca do Lago, em Fão, concelho de Esposende. Todos os anos ele ia com os pais de férias para o Norte, dividindo os dias entre Viana do Castelo e Fonte Boa, a aldeia do pai. A Barca do Lago era o local para os jovens irem tomar banho e conviver. Era também famosa por ter correntes fortes e muitos remoinhos, pelo que muitas pessoas tinha já morrido ali. Mário, sempre muito ponderado, nunca se tinha atrevido a atravessar o rio, mas houve um dia em que o fez. A corrente estava forte, mas a confiança inabalável nas suas capacidades impeliu-o para a água. Nunca tinha sido grande nadador, mas atravessou para a outra margem sem dificuldade. Respirou fundo e lançou-se de novo à água para regressar à margem inicial. Nadou, nadou, andou… e não conseguia combater a corrente. Fraquejou e engoliu uns pirolitos… onde raio me fui meter…
Apareceram dois rapazes vindos do nada que me salvaram. Para mim, naquele dia, foram dois anjos e um sinal que Deus me queria aqui por muito mais tempo.
© Mário Linhares
Mark Rothko (Daugavpils, 25 de setembro de 1903 - Nova Iorque, 25 de fevereiro de 1970) foi um pintor norte-americano de origem letã e judaica. Imigrou com sua família de Dvinsk (hoje Daugavpils, Letónia, outrora parte do Império Russo) para os Estados Unidos em 1913, quando ele tinha dez anos | "No. 210/No.211 (Orange)" | Rothko | 1960 | D.R.