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Cottbus, Alemanha

Membro do Grupo de Cinema da Pastoral da Cultura integrou júri ecuménico que premiou filme sobre culpa e redenção

Cottbus, uma pequena cidade alemã que faz quase fronteira com a Polónia, organiza desde há 22 anos um festival de cinema especializado na produção dos países de leste.

Este ano (o festival decorreu de 6 a 11 de novembro de 2012) a portuguesa Inês Gil, com pós-doutoramento sobre a relação do Sagrado com o Cinema e membro do Grupo de Cinema do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, fez parte do júri ecuménico que premiou o filme V Tumane (In the Fog) de Sergei Loznitsa.

Esta é a segunda longa metragem de ficção do realizador russo que vive atualmente em Berlim, e cuja filmografia se desenvolveu em torno do documentário com temáticas variáveis. O último foi realizado este ano no norte de Portugal em Santo António de Mixões da Serra, na região de Valdreu, concelho de Vila Verde, distrito de Braga (O Milagre de Santo António foi apresentado no Doclisboa’12). Loznitsa nasceu em 1964, estudou matemática em Kiev e começou uma carreira de investigador no campo da inteligência artificial.

Fotograma

V Tumane é uma obra de grande maturidade, que reflete sobre a existência manchada pela culpa, a graça do perdão e a procura de redenção. Sergei Loznitsa inspirou-se no romance que Vasil Bykau escreveu em 1987, como pano de fundo da história do filme: no verão de 1942, um homem, chamado Sushenya, é injustamente acusado de ter colaborado com os Nazis. Procurado pelos seus compatriotas para se vingarem dele, ele vai provar que a vida não é assim tão linear...

Sergei Loznitsa já tinha apresentado uma figura crística no seu primeiro filme de ficção, A Minha Alegria, que realizara em 2010. Apesar de se passar num contexto completamente diferente, as personagens principais têm muitos pontos comuns: vítimas de uma sociedade corrupta, estão condenadas a carregar a sua cruz até o fim. Se os dois homens constituem figuras libertadoras, é porque permanecem incompreendidos.

Fotograma

Loznitsa reflete sobre a violência que leva os homens a deixarem de se respeitar uns aos outros, e como a ideologia selvagem os pode cegar. Em ambos os filmes, a personagem principal experiência o caminho e o sofrimento da Paixão, mas o seu sacrifício restabelece a ordem da coerência existencial, isto é, um mundo gerido pelo humanismo de Deus. Por isso, em V Tumane, a personagem principal nunca vai perder o seu sentido de dignidade nem os seus ideais em troca de uma aliança supostamente salvadora mas verdadeiramente venenosa (a colaboração com os Nazis). Aliás, Sushenya escolhe e aceita dar a sua vida para salvar o outro (para permitir à sua família viver com a consciência tranquila).

Profundamente humano, ele carrega o corpo moribundo do compatriota que o queria matar e ajeita a roupa dos corpos defuntos com um cuidado que assenta uma despedida digna. Marca-se assim a importância dos rituais para celebrar os vários ciclos da vida, o respeito pelos seus mistérios e a procura de sentido.

Fotograma

Sergei Loznitsa questiona a natureza humana e as suas contradições: como podemos magoar o nosso irmão para salvar a nossa vida? Como podemos continuar a viver carregando a culpa desse sofrimento? Qual é o sentido da existência quando tomamos consciência da nossa profunda solidão interior? O que fazer quando todos nos abandonaram injustamente?

O realizador russo propõe ir à descoberta dessas perguntas através de longos planos-sequência que permitem às imagens interrogar o espetador. A escassez dos diálogos é justificada pelo seu conteúdo: nada de palavreado inútil porque o que está em jogo é a ética humana. Nada de sentimentalismo fácil: Loznitsa não procura a identificação do espetador mas a sua reflexão analítica sobre o mundo, o que não impede as emoções de nos tocar profundamente.

Fotograma

Oleg Mutu, o diretor de fotografia romeno com quem Sergei Loznitsa trabalha, aproxima-se dos corpos, dos objetos e das árvores para nos envolver numa atmosfera plena de significações. O realizador utiliza a Natureza como reflexo da experiência interior das personagens e a presença dos quatro elementos que pontua o desenrolar da ação formam uma parábola sobre a relação que o homem tem com a sua consciência. Além da beleza fotográfica dos enquadramentos, o som penetra o espaço do espetador e desestabiliza-o: o grande plano sonoro do estalido das folhas quando os homens se escondem acentua a fragilidade da vida: a qualquer momento podem ser descobertos e assassinados. O vai-e-vem da câmara dentro da floresta, com a sua densidade interior, provoca uma angústia existencial: até que ponto vale a pena viver sendo um condenado?

 

Sendo comparado a Andrei Tarkovski e Béla Tarr, Sergei Loznitsa não só questiona a humanidade e os seus desvaneios como olha para a sua difícil relação com a Natureza, que o conduz à plenitude ou à sua destruição. A sua estética fílmica é também poética mas ele nunca cai na sedução fácil da imagem. Pelo contrario: as questões mais profundas da existência permanecem no nevoeiro como um tiro no escuro.

 

 

Inês Gil / SNPC
© SNPC | 06.12.12

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