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Braga

Na Livraria Fundamentos leem-se as raízes do cristianismo

A Livraria Fundamentos, dedicada ao Cristianismo através da venda de livros novos e usados, abriu em março na cidade de Braga. O proprietário, Rui Pedro Vasconcelos, explicou ao Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura as motivações que conduziram à abertura deste espaço. Nas páginas desta entrevista feita por correio eletrónico desfilam títulos e autores e folheia-se o balanço dos primeiros quatro meses.

 

Que motivações estão na origem da criação da livraria?

A principal motivação para a abertura da Fundamentos foi o desejo de trabalhar na minha área de formação, que é a Teologia. Recebi a minha formação na Congregação do Santíssimo Redentor (ou Missionários Redentoristas), a quem pertenci entre 2004 e 2011 e destes anos ficou-me o desejo de continuar a trabalhar neste âmbito, como leigo.

A ideia de uma livraria foi-me surgindo como uma hipótese de trabalho que poderia ser útil para muitas pessoas – já existem diversas livrarias cristãs espalhadas pelo país (em Braga temos a Diário do Minho, com 40 anos de experiência se não me engano); a Fundamentos pretende ser uma oferta, onde se possa encontrar a maior diversidade possível das publicações existentes em português na área do Cristianismo (sejam de editoras católicas ou não), não se concentrando apenas nas edições de maior divulgação, e num espaço que se pretende agradável e simples.

Falei com alguns amigos, entre leigos, presbíteros e teólogos, e foram unânimes em considerar esta ideia interessante e arriscada. Por fim, aproveitei uma oportunidade que me surgiu através do IEFP [Instituto do Emprego e Formação Profissional], após alguns meses a trabalhar nos CTT, e segui a sugestão que o Arcebispo D. Jorge Ortiga lançou recentemente de «criar, inventar, deixar-se estimular pelas diversas circunstâncias» porque «não basta pura e simplesmente esperar que o trabalho aconteça e apareça», embora me pareça que não basta o empreendorismo pessoal, é necessária uma mudança do sistema económico que assuma de facto «a prioridade do trabalho sobre o capital», na feliz expressão de João Paulo II.

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Como surge o nome ("Fundamentos")?

De novo a referência a um redentorista, o padre Calmeiro Matias (1942-2010) que criou há uns anos um blogue de nome Fundamentos da Fé Cristã. A livraria ficou apenas com o Fundamentos, para ser mais simples. E todas as imagens a que a palavra fundamentos nos associa: fundar-se, fundamentar-se, criar raízes. Porque acredito que a Fé – a confiança, a experiência, a construção de uma vida cristã – precisa de se fundamentar, seja a fé de um presbítero ou de um leigo, de uma missionária ou de um catequista, de uma professora de EMRC ou de um voluntário – de um cristão, no fundo.

Os livros não nos conduzem à fé cristã – para isso é necessária uma comunidade, uma pessoa que seja mediação, um contexto familiar, etc. Mas os livros ajudam-nos na nossa caminhada pessoal a fundamentar a nossa fé, a abrir-nos para outros aspetos de que não tínhamos consciência ou apenas uma consciência limitada, a enraizar o nosso compromisso pessoal – porque ler um livro é um ato absolutamente livre e pessoal: ir à eucaristia pode ser fruto de um hábito de rotina ou de um contexto social, preparar uma catequese ou uma aula de EMRC é uma responsabilidade, ser voluntário é um dom mas traz uma experiência de realização, de atividade (e ainda bem)… mas ler um livro, particularmente um livro relacionado com a experiência cristã, e sobretudo para um leigo, é algo perfeitamente inútil, gratuito e espontâneo – e por isso é livre.

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Entre os livros que lhe vão passando pelas mãos, quais são os que lhe têm despertado mais a atenção?

Livros que, durante os 6 anos de formação em teologia, nunca os tinha visto em nenhuma livraria católica – sem dúvida por distração minha. Por exemplo, os ‘fundos de catálogo’ de editoras católicas – a «Teologia do Trabalho» de M.D. Chenu publicada pela Editorial Franciscana em 1962. Ou livros como «Porquê meu Deus?» de Abbé Pierre, «Poesias Completas» de S. João da Cruz, «No que eu Acredito» do bispo Jacques Gaillot ou «A Agonia do Cristianismo» de Miguel Unamuno, publicados por editoras como a D. Quixote, a Biblioteca de Editores Independentes, o Instituto Piaget ou a Cotovia, editoras cujo objetivo não é a literatura de cariz cristão.

No fundo, a experiência religiosa do ser humano continua a ser fonte de interesse muito para além do âmbito eclesial. A publicação em março deste ano das conferências de um colóquio organizado pela Universidade de Coimbra com o título «As Três Religiões do Livro», é outro exemplo. E todos os livros que se dedicam de modo particular à figura de Jesus de Nazaré – existem para todos os gostos e feitios, de capa dura ou mole, com 50 ou com 500 páginas, escritos por teólogos, por jornalistas ou por ateus – espero que não tenham sido muitos os cristãos a pensar que o José Rodrigues dos Santos foi o primeiro a escrever sobre isso.

 

Quais têm sido as maiores descobertas?

Além do que respondi antes – sobre os catálogos das editoras católicas ou nem por isso – as minhas maiores descobertas têm a ver com os livros que as pessoas me pedem, sobretudo obras antigas ou esgotadas.

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Lembro-me, por exemplo, do «Imaginar a Igreja» de Maria de Lurdes Pintasilgo, publicado em 1980 e, por isso, uma absoluta novidade para mim, que nasci cinco anos depois; ou saber que «A Igreja» de Hans Kung já foi editado em português, pela extinta Moraes. Aliás, é assustador o número de editoras que desaparecem, e com catálogos interessantes – a Ariadne, a Padrões Culturais Editora, a Alcalá, a Campo das Letras, etc. E livros cuja versão em português foi uma completa surpresa para mim - «A Guerra Judaica» de Flávio Josefo, é um exemplo. O catálogo da Assírio&Alvim foi uma completa surpresa para mim – obras como «O Dom das Lágrimas», «Seta de Fogo: 22 poemas» de Teresa de Ávila, ou os poemas e cânticos de Hildegarda de Bingen «Flor Brilhante» - livros que sem dúvida foram noticiados aquando do seu lançamento, mas neste momento pertencem aos caixotes de promoções da Porto Editora nas Feiras do Livro.

Por fim, algumas editoras de pequena expressão mas de grandes catálogos – Figueirinhas, com os livros de Sophia Mello Breyner e Bento Domingues, ou a Lello & Irmãos, por exemplo.

 

O que o levou a importar livros? Quais são as principais editoras estrangeiras presentes na livraria?

Existem muitas obras que, pelas normais limitações do público em Portugal, só se encontram em castelhano ou publicadas em editoras do Brasil, mas que são indispensáveis para quem se encontra em formação teológica – e com isto penso não apenas nos que estão em formação inicial, claro. Na livraria estão desde as editoras mais conhecidas – Sígueme, Trotta, Sal Terrae ou Verbo Divino – mas outras menos conhecidas como a Khaf, FeAdulta, PPC, Centro de Pastoral Litúrgica ou Cristandad. Do Brasil temos de momento a Loyola, a Vozes, a São Paulo e livros de Frei Betto.

 

Que apreciação lhe merece o panorama da edição de obras católicas em Portugal nos últimos anos?

Ainda não tenho uma experiência que me permita dar uma resposta satisfatória – posso apenas responder a um título mais pessoal.

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Faltam edições em português de obras básicas no caminho de qualquer cristão, seja qual for a sua formação: lembro-me por exemplo do livro de Luis González-Carvajal «El Hombre Roto por los Demonios de la Economia», um livro básico para aprofundar a Doutrina Social da Igreja no contexto atual de crise; o «Resistência y Submisión» de D. Bonhoeffer é crime não estar traduzido em português; e permitem-se esgotar obras essenciais como «Diário da Alma» de João XXIII (estamos nos 50 anos de abertura do Vaticano II), ou «A Procissão dos Passos» de Abel Varzim – só para referir obras que a mim pessoalmente dizem muito, muitas outras existirão que eu nem sequer conheço.

Compreendo que a crise financeira sacrifique também as editoras católicas, e que a prioridade seja dada aos livros de caráter mais “prático” – catecismos, agendas, livros de atividades e de perguntas/respostas, etc. Mas uma política de pequenas edições – 500 a 1000 exemplares – seria o mais económico e não condenaria os livros aos armazéns nem implicaria investimentos avultados – é uma política que diversas editoras especializadas e com início de atividade recente estão a praticar, com resultados positivos. Mas também reconheço que as editoras são obrigadas a publicar de acordo com os hábitos de leitura do público-alvo, o que nos leva de novo à formação dos cristãos e das comunidades.

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Que balanço faz dos primeiros meses de funcionamento em termos de visitas de clientes? O negócio é rentável?

Têm sido talvez mais os clientes de fora de Braga a encomendar livros à Fundamentos (através da informação que é colocada diariamente no blogue da livraria, com novidades, excertos, recensões, etc.), aproveitando o facto de enviarmos por correio com portes gratuitos. Mas também temos tido boas surpresas nas visitas à livraria, de pessoas que pessoalmente não conhecia, e já temos clientes que são visitas regulares, por encontrarem livros que procuram e cuja circulação é limitada.

Em setembro a livraria fará uma nova expansão em termos de editoras e obras, através de uma nova parte do financiamento, o que permitirá termos uma maior oferta – não deixa de ser sempre uma livraria em construção.

Em relação à rentabilidade, prefiro citar o que escreveu Manuel António Pina sobre o encerramento da Poesia Incompleta, em Lisboa: «a única forma de manter durante três anos uma livraria exclusivamente dedicada à poesia e chegar ao fim com uma pequena fortuna é começando com uma grande fortuna»; pode-se substituir ‘poesia’ por ‘cristianismo’.

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Que altos e baixos tem experimentado desde a abertura?

São constantes as pequenas e grandes alegrias: por exemplo, quando os amigos beneditinos de Singeverga aceitaram colocar o seu licor à venda na livraria; ou quando alguma editora confia suficientemente na livraria para colocar o seu catálogo à consignação, seja a Principia, as Paulinas, os Franciscanos, a Multinova ou a Chiado Editora entre outras, o que dadas as limitações financeiras é de uma importância significativa, pois permite-nos ter uma maior oferta destas editoras. Também quando surgiu a proposta de ter livros da Assírio & Alvim, o que permitiu ter ilustres convidados como Fernando Pessoa, Pier Pasolini, Herberto Helder, João Bérnard da Costa e, claro, Daniel Faria, (cuja republicação foi uma perfeita novidade e de uma alegria muito grande – era outra das obras essenciais que se encontrava esgotada). Algumas editoras continuam a ser um perfeito desafio que o livreiro as consiga receber – desde a INCM à Cosmorama, a Relógio d’Água com as suas obras de Simone Weil e Rainer Rilke.

É um momento alto sempre que alguma pessoa sai da Fundamentos satisfeita com o encontrou, mesmo que entre na livraria sem saber bem o que procura – como daquela vez em que um amigo queria oferecer um presente de casamento e aceitou a proposta de «Sobre a Felicidade. Sobre o Amor» de Teilhard Chardin e o «Cântico dos Cânticos» traduzido por Tolentino Mendonça.

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É um momento alto quando recebemos pessoas – leigos – a pedirem-nos determinado livro que foi recomendado pelo respetivo pároco, que o recomendou porque o leu e gostou muito – e falo de livros de teologia, de espiritualidade, de cristologia e de estudos bíblicos – o que prova que o interesse existe assim como a capacidade de compreensão (B. Häring referia que nunca a Igreja teve, ao longo da sua história, um Corpo tão bem formado e qualificado aos níveis intelectual e profissional – falta uma correspondente formação ao nível da fé, e faltam também as motivações, as mediações, as propostas, cuja responsabilidade pertence aos pastores).

É um momento alto quando conseguimos receber edições como as três gravações das leituras que Luis Miguel Cintra realizou, do livro do Apocalipse, do Sermão de Santo António aos Peixes e de alguns Poemas de Camões (da editora Presente).

É um momento alto quando leio testemunhos como o do bispo D. Manuel Martins: «A leitura põe-nos em dia. Sem leitura, somos ontem. Aos anos que isto aconteceu, mas lembro-me de uma velhinha da minha terra me ter dito que o Senhor Abade devia ter lido um livro novo, porque a homilia fora diferente e mais bonita. Eu presto a minha homenagem a padres muitos e muitos que são apaixonados pela leitura e, por isso, andam sempre em dia. Mas, deviam ser mesmo todos. A regra deve ser: um livro sempre comigo. Neste mundo novo e tão desafiador, sempre com ganas de mudar tudo e mostrar de tudo, devemos saber estar, responder, manter as pontes de pé».

Quanto aos momentos baixos são rapidamente ultrapassados pela visita dos amigos e da minha noiva, devidamente acompanhada de uns deliciosos pastéis de nata (sem qualquer referência em relação à ideia do ministro da economia).

 

Fotografia: Rui Pedro Vasconcelos
© SNPC | 18.07.12

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