O absoluto do bem
Ontologicamente, o bem é o absoluto de ser e de ato presente em cada coisa, em cada ente, diz-nos a tradição de pensamento duplamente bebida no Génesis e na doutrina platónica sobre o fundamento último da realidade, que se encontra na sua República. Uma outra tradição reduz o bem a mera coisa moral, redução que é operada através da submissão do que o bem é a um qualquer juízo produzido por um qualquer ser humano.
É este segundo paradigma o que hodiernamente impera. O bem é alienado de toda a relação com o âmbito ontológico. Bem e o seu contraditório, o mal, são adjudicados ao resultado de definições eventualmente flutuantes, eventualmente dependentes do simples capricho dos seres humanos. A definição de bem e de mal pode ser negociada e passar a valer como algo de transcendental a uma determinada comunidade ou mesmo à totalidade da humanidade, coeva e futura. Os definidores podem, se possuírem a necessária força para tal, impor tal definição. A ordem cósmica, que sempre dependeu do que se entende por bem, passa a ser determinada por decreto humano. Passa a existir um hiato entre o que é a definição de bem e de mal e o que é a realidade ontologicamente. As consequências sobre o todo da realidade, mas especialmente sobre a realidade humana, refletem esta quebra de relação.
Muito do que tem acontecido em termos do desrespeito fundamental quer da chamada natureza, isto é, da biosfera extra-humana, quer da própria humanidade é fruto deste segundo modo de ver o bem. O corolário foi atingido com o momento hegemónico da tirania nazi: o que Hitler criou com a sua proposta apresentada em Mein Kampf foi uma nova ordem cósmica, totalmente dependente da sua nova definição de bem e de mal. O massacre dos indesejados neste novo mundo mais não é do que a aplicação pragmática dos novos princípios: tais seres, cuja bondade ontológica fora proscrita através de um juízo moral, são o mal e impedem a nova forma de bem; por isso, há que os eliminar, como se elimina o mal, de modo a que o bem, o novo bem, possa triunfar.
Quando, na cena 29 do filme A lista de Schindler, o escravo contabilista de Schindler diz, após terminada a datilografia dos nomes das pessoas a salvar, que «A lista é um bem absoluto. A lista é vida», não se está a referir a um bem moral, não está a olhar para aqueles nomes, que designam pessoas reais, de carne, mas a um bem ontológico, isto é, não se está a referir a algo que seja dado por um juízo moral, mas por uma intuição: Stern – é esse o nome do contabilista – vê, vê «claramente visto», como diria Camões, que “aquilo” é ontologicamente um absoluto e isso é o bem, o único bem que essas pessoas possuem, melhor, o único bem que essas pessoas são.
É o retorno ao «ver» de Deus quando acaba de criar cada dia, no momento genesíaco absoluto, e proclama que é belo, expondo universalmente o esplendor do bem tirado do nada e posto pela bondade de Deus, no ato perenemente paradigmático do que é a caridade como absoluta outorga de amor na forma do ser.
Mas é também voltar ao «não julgar» evangélico, ao olhar para cada ser e para cada ser humano não como coisa moralmente dominável, mas como alguém ontologicamente amável em seu mesmo ser, pois, amar o absoluto de ser que cada ente é, é amar, nele, Deus, no bem que Deus aí pôs. O mais é vaidade.
"A lista de Schindler". Fotograma: D.R.
Américo Pereira
Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa
© SNPC |
03.06.14

Fotograma: D.R.






