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Teatro

"O Estado do Bosque": na escuridão, as palavras

John Wolf é um cego que, depois de correr mundo, se dedicou a ajudar outros a escolher um caminho. Peter é um ex-gerente de um stand de carros de prestígio, com mulher e filhos, que, num dia de tempo esplêndido, à beira de um lago, «assim do nada», se viu acossado de uma inquietação: «Um balanço do barco, só um, ou uma sombra que corta rápida a superfície sem mais, ou um estalido ao longe, como que a milhares de quilómetros, e tu não consegues distinguir bem, a não ser a angústia que cai sobre ti».

As duas personagens que dominam o primeiro diálogo de “O Estado do Bosque”, segundo texto teatral de José Tolentino Mendonça (depois de “Perdoar Helena”) - e que Luís Miguel Cintra leva à cena no Teatro da Cornucópia - encontram-se naquilo que é suposto ser a orla de um bosque. Mas, com o decorrer das cenas, o sítio no qual o velho sábio e o homem vigoroso e cheio de dúvidas trocam as primeiras palavras foge a qualquer materialização. Em vez de um lugar físico, a orla do bosque impõe-se como um lugar abstrato, um ninho para germinar o "Nada", onde tudo pode acontecer, porque o "Nada" é também o centro desta peça, a alma de uma terra de ninguém onde todas as identidades perdem um significado preciso.

Peter e também Jacob procuram o sentido do trilho, ou não fosse o caminho, ou a estrada, como se diz na peça, «o remédio mais antigo». E o bosque transforma-se, grupeto de árvores, matagal, se é que o bosque existe; se é que o teatro existe mesmo. Porque, logo nos primeiros minutos, Peter confessa: «Sinto que o teatro acabou». E essa frase, assim dita, no contexto teatral, ganha um outro valor, que faz desaparecer o lugar do palco, o lugar da bancada normalmente reservada aos espectadores do Teatro da Cornucópia.

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Luís Miguel Cintra anuncia: «Essa frase cria um jogo de sentidos na forma como as cadeiras estão dispostas à volta dos atores, como se o espaço negro fosse correspondente à escuridão do bosque de que tantas vezes se fala na peça»; ou à escuridão em que vive o próprio John Wolf, por ser cego desde jovem; ou à escuridão em que Peter se encontra, por se sentir confuso.

John Wolf avisa Peter: «Entraste num território de fronteira». Mas entrou também num mundo abstrato e misterioso. Num mundo de Deus, que Cristina Reis concebe através da cenografia minimal e do desenho de luz. «A Cristina fez uma cenografia muito poderosa, quase sem elementos, que permite a criação de tensões de modo a que o espectador se sinta envolvido como nós. Ser-me-ia, aliás, muito difícil pensar neste espetáculo num teatro à italiana... É demasiado íntimo e delicado», diz Cintra.

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“O Estado do Bosque” não surge por acaso no reportório da Cornucópia. É conhecido o interesse crescente de Luís Miguel Cintra pelos temas da fé, nomeadamente da fé católica. José Tolentino Mendonça é poeta, mas é igualmente sacerdote católico, como Cintra julga que a personagem de John Wolf também é.

O texto, porém, é provavelmente mais espiritual do que religioso, mais universal e sincrético do que puramente católico; e é levado à cena no contexto de um ciclo a que Luís Miguel Cintra chamou “O Nome de Deus”, para o qual programou duas leituras encenadas de “Gennariello”, do ateu Pier Paolo Pasolini, e de dois capítulos de “Au Milieu des Vitraux de l’Apocalipse”, de Paul Claudel. Segundo Cintra, o aparecimento da peça coincidiu com o momento em que começou a colocar tudo em causa, e esse período tem correspondido aos espetáculos dos últimos anos: «A peça veio tocar na ferida, e foi por esse motivo que me interessei, além de conhecer o José Tolentino Mendonça e de lhe ter amizade. Acho que a peça fala de religião, mas de modo tão alheio ao cheiro da sacristia que pode interessar a não crentes».

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Em cena, Luís Miguel Cintra é John Wolf, o cego que guia e também a figura do Destino, com quem tem uma conversa, numa cena chamada "Diálogo do Sonho"; e fora da cena é o encenador, que dirige um elenco de atores com quem deliberadamente faz um primeiro espetáculo, e logo uma primeira viagem: David Granada, Vera Barreto e Nuno Nunes (este último é o único com quem Cintra já trabalhara, em "Os Desastres do Amor ou Fortuna Palace", o espetáculo anterior).

Sem pedir explicações ao autor, por achar que José Tolentino Mendonça é um homem que gosta de provocar os outros em vez de lhes fornecer interpretações, Luís Miguel Cintra começou por tentar decifrar precisamente o lugar onde a peça decorre, por ser essa a maior dificuldade deste texto carregado de metáforas.

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«Há uma personagem que sabe que quer entrar no bosque e há outra que tem medo e desconfia, e tudo isso parece que está acontecer à porta de um sítio desconhecido, como numa paragem de autocarro, em que uma pessoa chega e começa a falar com outra. A minha personagem, John Wolf, apesar de guiar as pessoas naquele espaço, a dada altura pergunta se o espaço existe, porque no fundo a cena passa-se num espaço do pensamento, e o que representamos é o trajeto do pensamento num local abstrato. Está-se sujeito ao espaço das palavras, da língua. Quando começamos a fazer uma cena, temos uma espécie de sensação de realidade, mas à medida que a situação vai evoluindo no sentido mais abstrato, e quando chegamos ao fim dessa cena estamos perante um diálogo filosófico.» (...)

Quando o diálogo se torna apenas monólogo, mesmo que continue a chamar-se, como acontece na cena do meio da peça, "O Diálogo do Limiar", dá-se o inesperado, e para Cintra estamos perante o núcleo do espetáculo.

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Na quarta cena - de um total de sete - uma oração que conhecemos como "Pai-nosso" aparece adulterada, assumindo o "Nada" um papel central: «Nada nosso que estás no Nada/ Seja Nada o teu nome/ Venha a nós o Nada do teu reino/ Seja claro o Nada da tua vontade/ Assim na Terra como no Céu./ O Nada que nos alimenta nos dá hoje/ Perdoa-nos sempre que não formos Nada/ Como tentaremos perdoar a cada uma das tuas criaturas/ Não nos deixes incorrer em tentação/ E livra-nos de não sermos o teu Nada».

Cintra não sente este ato de reescrita como uma heresia, mas não esconde que é perturbante: «Não há dúvida que mesmo os que não são crentes reconhecem o "Pai-nosso": A mim, perturba-se muito, porque digo o "Pai-nosso" noutras circunstâncias». (...)

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Cristina Margato
In Expresso, 2.2.2013
Fotos: rjm/SNPC
© SNPC | 09.02.13

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