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O liberalismo português como problema religioso: introdução ao livro "Igreja e sociedade portuguesa"

Os estudos e intervenções reunidos neste volume abrem uma porta fascinante sobre a história contemporânea de Portugal. Não era uma porta fechada, mas era uma porta que precisava de ser aberta assim, com este saber e largueza de vistas. D. Manuel Clemente é um dos nossos maiores especialistas de história do catolicismo contemporâneo.

Neste livro, a sua atenção incide principalmente sobre a relação da Igreja com o Estado durante a época do Liberalismo, entre o princípio do século XIX e o princípio do século XX. Mas estão também incluídas aqui importantes e sugestivas investigações e reflexões sobre a vida paroquial em Lisboa no século XX, as esperanças e as angústias de Raul Brandão num «mundo anticristão», ou a «nova religião» desejada por alguns líderes da I República, como Bernardino Machado. Este é um livro que trata de muitos temas, iluminando todos de um modo seguro e estimulante.

O ponto de partida dos trabalhos de D.Manuel Clemente está na constatação de que «o tipo de relação Igreja-Mundo que hoje vivemos tem as suas origens na sociedade subsequente à revolução liberal, acontecida em França no fim do século XVIII e sucessivamente ecoada em Portugal nas primeiras décadas do seguinte» (p. 180).

Para a Igreja Católica, como para todas as demais dimensões da sociedade portuguesa contemporânea, a época do liberalismo, iniciada com a revolução constitucional de 1820, constituiu um momento fundador. Se examinarmos os códigos legislativos, as instituições ou os costumes da moderna vida portuguesa, quase tudo teve as suas origens e ficou esboçado sob domínio liberal. Incluindo, como seria de esperar, o lugar da Igreja na vida pública portuguesa.

Alguns aspetos da política eclesiástica liberal são geralmente conhecidos. Por exemplo, a abolição das ordens religiosas e o encerramento imediato dos conventos masculinos, decretados por Joaquim António de Aguiar, ministro de D. Pedro, em maio de 1834, ou o longo processo de expropriação e venda pelo Estado dos bens de instituições religiosas - a chamada «desamortização». No entanto, a rutura de relações com o Vaticano, que durou entre 1834 e 1841, já é menos famosa do que idêntica situação criada pelos governos republicanos em 1911. De facto, as consequências das políticas liberais para a Igreja não foram menos tremendas do que as da «separação» republicana de 1911. Segundo argumenta D. Manuel Clemente, a governação liberal terá mesmo provocado «um vazio religioso não mais preenchido» (p. 96).Os números do clero foram drasticamente reduzidos, tal como os meios ao seu dispor, ao mesmo tempo que o Estado, seguindo a tradição «regalista» da antiga monarquia, reforçava o seu controlo sobre as nomeações e carreiras dos sacerdotes e a sua comunicação com o Vaticano.

A partir de meados do século XIX, desenvolveu-se um ambiente de irreverência, que fez o escritor J.P. Oliveira Martins, na década de 1880, referir-se a Portugal como uma das sociedades menos religiosas da Europa. Como nota D. Manuel Clemente, «em toda a história portuguesa, a Igreja Católica não enfrentou maior dificuldade do que a trazida pelo liberalismo» (p. 34).

Porque é que foi assim? Hoje em dia, habituámo-nos a identificar «liberalismo» com um ponto de vista económico, mais até do que político. Talvez por isso, mesmo algumas abordagens históricas tendem a reduzir a experiência do liberalismo do século XIX à fundação da economia de mercado, entendendo as suas elaborações político-jurídicas como ancilares desse projeto económico. O liberalismo, porém, foi muito mais do que isso. E porque foi muito mais do que isso, é possível argumentar que a «questão religiosa» é tão central para o liberalismo do século XIX como seria, décadas depois, para a I República de 1910-1926.

Os liberais afirmaram o princípio da liberdade de consciência e preferiram explicações e soluções baseadas na ciência. Mas nem por isso separaram política e religião. Pelo contrário. De facto, talvez seja tempo de encarar o liberalismo a partir da perspetiva do que filósofos e historiadores têm chamado «religião política». Na definição do historiador Emilio Gentile, uma religião política é «um sistema de crenças, mitos, rituais e símbolos que define e interpreta o sentido e o fim da existência humana através da subordinação do destino dos indivíduos e da coletividade a uma entidade suprema» que não é Deus (La Religione della Politica, 2001). É assim uma política que pode ser entendida como religião, não apenas por simples analogia, mas devido ao seu âmbito e estrutura. Ora, faz sentido examinar o movimento liberal a essa luz. Os liberais não se limitaram a trazer um programa para resolver este ou aquele problema do país. Procuraram estabelecer um novo sentido e fim para a vida portuguesa, à volta do modelo do cidadão independente e ilustrado, integrado na esfera do Estado nacional, que conceberam como o foco quase exclusivo de pertença e de lealdade. Com os liberais, a política em Portugal tornou-se uma forma de salvação terrena, justificada pela crença no progresso.

Esta equação entre liberalismo e religião não constitui uma ideia nova. Em “L’Ancien régime et la révolution(1857), já Alexis de Tocqueville havia notado que a revolução francesa de 1789 - a grande referência dos liberais do século XIX - procedera à maneira de uma «revolução religiosa». De facto, os liberais não faziam religião como Monsieur Jourdain fazia prosa. Sabiam o que estavam a fazer. Em 1762, no capítulo VIII do livro IV do “Contrato Social”, Rousseau sublinhara a importância do que chamou «religião civil» para manter a unidade e a fidelidade às instituições. Daí que a «secularização» promovida pelos liberais não tivesse consistido apenas no desaparecimento, gradual ou abrupto, de referências a uma entidade divina da vida pública, mas, como diz Emilio Gentile, na «transferência de atributos divinos para o Estado, dando-lhe um caráter sagrado que já não depende da sua sacralização pela Igreja». Neste contexto, os conflitos que liberais e, mais tarde, os republicanos experimentaram com a Igreja Católica ganham outro sentido. Para Rousseau, o cristianismo separara o político do teológico e dividira, desse modo, «devoção» e «cidadania», fazendo com que «o Estado deixasse de ser um». Teria sido essa a causa das «divisões intestinas que não cessaram de agitar os povos cristãos». Por isso, o secularismo liberal teve, na Europa, um sentido, não tanto de «separação», como é costume dizer, mas de «integração » do religioso e do político - a separação, no fundo, só se aplicava à Igreja, mas não à religião. É verdade que esta política sacralizada dos liberais respeitava a pluralidade e a discussão, não impondo a subordinação violenta a um dogma, como os totalitarismos fascista e comunista do século XX. Mas ao procurar uma fundação para a comunidade política através da apropriação da religião, às vezes sob a forma de versões humanistas do cristianismo, os liberais teriam de gerar um «problema religioso», o qual, ao contrário do que é costume dizer, não consistiu apenas na relutância do clero mais tradicionalista ou politicamente comprometido com os inimigos do liberalismo em aceitar um poder indiferente ou sem ligação à Igreja.

Posto isto, não convém rendermo-nos a simplificações, contra as quais, aliás, o autor deste livro não se cansa de alertar. Nem os católicos, nem os liberais formavam blocos homogéneos. Na década de 1840, os liberais de inclinação conservadora visaram sobretudo «acomodar » a religião tradicional. Nunca, porém, lhes interessou reconhecer autonomia à Igreja, mas usar um cristianismo depurado e um clero submetido como instrumentos de controlo social. Fomentaram assim, à volta deste catolicismo estatizado, um respeito que ainda durava quando o célebre orador parlamentar José Estêvão, líder da esquerda e grão-mestre de uma confederação maçónica, se declarava «católico enquanto português».

À Igreja, como nota D. Manuel Clemente, o confessionalismo liberal propôs uma «gaiola nem sequer doirada», que a «condicionava» e «desmotivava» (p. 30). É provável que os seus efeitos tenham sido mais corrosivos do que a agressão republicana de 1911, ao levar o clero a conformar-se como estatuto de baixo funcionalismo e a aceitar tacitamente a Igreja como um «resquício do passado» e o catolicismo como um simples recurso de «disciplina social».

A partir de 1870, a afirmação do papado inspirou cada vez mais católicos na contestação do controlo do Estado liberal. Foi então que, entre a esquerda do liberalismo, se desenvolveu um projeto mais violento de fundar a sociedade exclusivamente na ciência, sem concessões à tradição da religião revelada. Viria a ser assumido por aqueles que, entre as décadas de 1880 e de 1900, transitaram do meio liberal para o chamado movimento republicano.

Com muitas variações, liberais e republicanos tenderam a encarar o clero católico e os costumes e fidelidades que tradicionalmente escoravam a vida espiritual da população portuguesa como obstáculos à sua desejada refundação de Portugal. Independentemente do objetivo final - acomodação e adaptação, como os liberais mais conservadores, ou perseguição e eventual extinção, como os republicanos mais radicais – trataram de enquadrar e de submeter a Igreja, de modo a anular o seu efeito de contrapeso.

A «desamortização» dos liberais teve também como fim reforçar a dependência do clero em relação ao Estado. A esse respeito, visou o mesmo que a impropriamente chamada «separação» decretada pelos republicanos em 1911. De uma maneira ou outra, procurou-se despojar o clero, tornando-o vulnerável ao governo e dificultando a comunicação com Roma.

As consequências, porém, nem sempre foram as pretendidas, como muito claramente D. Manuel Clemente põe em relevo: por um lado, o «neorregalismo» liberal e depois republicano obrigou o clero a questionar a sua dependência do poder político e procurar outras formas de relação com a sociedade; por outro lado, a perceção da indiferença ou da hostilidade das autoridades galvanizou muitos fiéis para viverem a fé com a intensidade de uma militância e dissidência em relação à ordem estabelecida.

Confrontada com as «religiões políticas» do liberalismo e do republicanismo, a Igreja portuguesa iniciou um processo de «refundação» que a fez passar de um órgão do Estado, mais ou menos remoto e decadente, para uma organização da sociedade, viva e próxima. D. Manuel Clemente descreve aqui essa longa marcha, assente na atividade do clero, que se vai organizando como corpo autónomo, mas também no entusiasmo e dedicação dos leigos, como o admirável 2.º conde de Samodães, Francisco de Azevedo Teixeira de Aguilar (1828-1918), que, como referiu Manuel Abúndio da Silva, lutou pela liberdade religiosa como lutara pela liberdade política(p. 261).

Os católicos começaram assim a deixar de pensar a sua religião como uma religião de Estado, própria de súbditos, para passarem a concebê-la como uma religião da sociedade, de pessoas livres, dispostas a reivindicar «o lugar para o Evangelho na cidade de todos» (p. 376).

Seria interessante, a partir daqui, considerar ainda outra hipótese, talvez mais ousada: a de que, como seu esforço de refundação da Igreja Católica, o clero e os fiéis realizaram um dos desígnios dos próprios liberais - o de reforçar o que, por oposição ao «Estado» (no sentido restrito do governo e dos seus órgãos), se chamou curiosamente «sociedade civil».

O robustecimento da «sociedade civil» foi sempre uma grande preocupação dos liberais. Alexandre Herculano, a maior referência intelectual do liberalismo do século XIX, interessou-se pelo municipalismo e pela divulgação da propriedade, porque acreditou que esses seriam os meios de criar em Portugal um corpo de cidadãos dotados de meios de independência económica e de autonomia administrativa, sem os quais a «liberdade» não poderia existir como experiência efetiva da sociedade. O grande paradoxo do liberalismo português é que a sua obsessão de refundar Portugal e de o «libertar» das tradições o fez ceder à tentação de recorrer ao poder político para efetuar transformações sociais e culturais de um modo expedito, de
cima para baixo.

O Estado liberal exagerou assim o que Herculano chamou «centralização administrativa», constrangendo de todas as maneiras a vida dos indivíduos e das comunidades locais, e enfraquecendo desse modo a sociedade civil. Os liberais acabaram por ficar diante de um país que, quando consultado em eleições, não tinha outra voz senão a que eles, através de eleitorados condicionados e manipulados pelos governos, lhes emprestavam. Durante décadas, uma grande parte do clero aceitou fazer parte submetida desse Estado absorvente.

Mas sobretudo a partir do fim do século XIX, um número crescente de sacerdotes e de leigos, resistindo à tradição do «regalismo», mas também às subordinações partidárias, dedicaram-se a manter e a criar espaços autónomos de sociabilidade e de iniciativa, sob a forma de instituições de assistência e de educação, associações, clubes, jornais, festas, e eventos de todos os tipos. O que fizeram foi, não apenas constituir uma base social para a ação independente da Igreja, mas também contribuir para densificar e guarnecer a sociedade civil portuguesa perante o Estado. A história, como em tempos notou Hegel, tende a ser irónica. Valeria certamente a pena explorar a crónica dos movimentos católicos deste ponto de vista civil.

Este livro de D. Manuel Clemente tem muitos e grandes méritos. Mas o maior é sem dúvida o de ajudar a colocar uma questão fundamental, através da qual a história da Igreja passa a poder reivindicar um lugar central na pesquisa e reflexão sobre a história contemporânea portuguesa.

 

Rui Ramos
Historiador
In Igreja e sociedade portuguesa - Do Liberalismo à República, ed. Assírio & Alvim
22.03.12

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