Paul Ricoeur, Maurice Blondel, São Boaventura, Luigi Pareyson, Miguel de Unamuno ou Inácio de Loiola (sem esquecer São Tomás de Aquino, Romano Guardini, Ismael Quiles, Gaston Fessard ou Michel de Certeau): «Que o Papa Francisco nem sempre faça explicitamente referência a autores ou a filósofos, isso não significa que ele não os conheça ou que só os conheça vagamente».
Este é uma das premissas do novo volume “O papa Francisco como filósofo”, dirigido por Emmanuel Falque e Laure Solignac, que a editora Tenacitas lança agora em Portugal, contando com textos de apresentação de D. Nuno Almeida, bispo auxiliar de Braga, do jesuíta Andreas Lind, professor da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa (Braga), e de João Francisco Gomes, jornalista do “Observador”.
«Como veremos neste livro, mesmo apesar da ausência de citações explícitas no seu discurso, impõe-se geralmente uma aproximação a um autor específico. Além disso, esclarecer, a partir da filosofia, a ação do Papa Francisco, permite lançar uma luz inédita que pode surpreender-nos pelo que ela é capaz de mostrar, ao revelar uma visão do mundo raramente exibida», destaca a sinopse.
Para este efeito, os organizadores reuniram as contribuições que diversos teólogos e filósofos de inspiração católica apresentaram no colóquio intitulado “A Filosofia do Papa Francisco”, que teve lugar no Institut Catholique de Paris, oferecendo aos leitores «a perspetiva do pensamento e das suas estruturas» de Bergoglio, contribuindo para que crentes e não-crentes aprofundem os fundamentos das opções deste pontificado.
O excerto que apresentamos foi escrito por Emmanuel Falque, professor universitário de filosofia, especialista em filosofia medieval, fenomenologia e filosofia da religião. O decano honorário da Faculdade de Filosofia do Institut Catholique de Paris tem numerosas obras traduzidas em línguas estrangeiras, nomeadamente em inglês.
Uma visão decidida do mundo: o Papa Francisco e Inácio de Loiola
Emmanuel Falque
In “O papa Francisco como filósofo”
Nada há de extraordinário no facto de o primeiro papa jesuíta da História se referir a Santo Inácio de Loiola como a sua principal fonte de inspiração. Talvez haja quem veja, erradamente, nesse facto uma singularidade difícil em se universalizar. Essa perspetiva omite o facto de uma maneira particular de compreender o mundo não corresponder necessariamente a um pensamento estrito e fechado. Não devemos esquecê-lo. Com efeito, os Exercícios Espirituais do fundador da Companhia de Jesus não são apenas um “tesouro que Deus concedeu à Sua Igreja” – eu diria mesmo, à humanidade. Os Exercícios também estruturam um estilo de vida e, por isso, cometer-se-ia um erro grave caso se ignorasse este tesouro, julgando ser impossível transmiti-lo e partilhá-lo, na medida em que se trataria de algo de exclusivamente pessoal ou apenas reservado aos jesuítas. Tal é precisamente a originalidade do Papa Francisco: originalidade não apenas de se enraizar na sua tradição inaciana e de ousar assumi-la, mas de conceber, a partir dessa mesma tradição, uma nova proposta para o seu pontificado. E, para quem se lamenta disso, devemos acrescentar que o nome consagrado para o designar no trono de Pedro – Francisco – contrabalança, através de uma inspiração de carácter franciscano e da prática de certas ações (que nos fazem lembrar a pobreza), com certos aspetos que podem parecer exclusivos da veia inaciana (como o discernimento, por exemplo).
Procuraremos compreendê-lo, portanto. Antes de começar, devo dizer que este artigo não procura nem apoiar nem prevenir tudo o que poderia ser exclusiva ou demasiadamente “jesuíta” na orientação do pontificado atual, até porque eu próprio não sou jesuíta. A presente contribuição esforça-se por mostrar, simplesmente e filosoficamente, como o “novo estilo de Igreja do Papa Francisco” introduz uma “outra maneira de estar no mundo”. Mesmo que isso possa surpreender-nos, essa maneira diferente de estar no mundo está tão impregnada de conceitos como de humanidade. [...]
A prova disso, ou ao menos o sinal, encontra-se na grande entrevista que o Papa Francisco concedeu ao P. Antonio Spadaro, sj, em agosto de 2013 para a Civiltà Cattolica, logo no início do seu pontificado; entrevista que foi traduzida e publicada em outubro do mesmo ano na revista Études. Com efeito, raros são os documentos assim tão fundadores como este e, por isso, é possível que alguém se surpreenda ao ver, ou ao não querer ver, como as coisas mudam ou já mudaram, e como este texto já anunciava, de certa forma, essa mudança. [...]
Um bilhete de identidade
A primeira fórmula latina citada nessa entrevista pelo Papa Francisco, não como simples promotor da modernidade, mas, sobretudo, na qualidade de herdeiro de um passado totalmente assumido, é: Miserando atque elegendo – “olhou com um sentimento de amor [e] escolheu-o”. A divisa herdada de Beda, o Venerável, refere-se ao episódio da vocação de São Mateus, uma cena bem ilustrada pelo célebre quadro de Caravaggio exposto na Igreja de São Luís dos Franceses em Roma. Enquanto normalmente se vê a originalidade da obra no ato de São Mateus se nomear a si mesmo (o chamamento depende da resposta), Francisco projeta-se no publicano que se encontra à direita do personagem central, tão ocupado a contar a fortuna amealhada que resiste, não só ao chamamento, como até à possibilidade de o escutar e de o assumir: “é o gesto de Mateus que me toca: agarra-se ao seu dinheiro, como que a dizer: “Não, não eu! Não, este dinheiro é meu!”. Este sou eu: um pecador para o qual o Senhor voltou o seu olhar”. Podemos surpreender--nos pelo facto de o Papa se definir a si mesmo como um pecador, fundindo de certa maneira todo o peso do pecado num único sujeito, precisamente no momento em que o P. Antonio Spadaro lhe questiona, “à queima-roupa”, “quem é Jorge Mario Bergoglio?”: “Eu sou um pecador. Esta é a melhor definição...”.
Todo aquele que ignora a “dialética dos Exercícios Espirituais”, adotando a terminologia de Gaston Fessard, pode interpretar erradamente esta confissão como uma espécie de precedência do pecado sobre a graça, ou talvez como uma forma de teologia reparadora da “satisfação do mal”. Contudo, os jesuítas compreendem bem esta declaração do Papa, como, aliás, todo aquele que tenha feito a experiência dos Exercícios inacianos: sobretudo no que diz respeito à “primeira [semana], que é a consideração e contemplação dos pecados” em vista da segunda semana que, ao contemplar “a vida de Cristo Nosso Senhor até ao dia de Ramos”, nos encaminha para uma “sã e boa eleição”. Assim, ao associar explicitamente o reconhecimento de si mesmo como pecador (peccator sum) à sua própria eleição enquanto Pontífice (in spiritu penitentiae accepto), Jorge Mario Bergoglio oferece “toda a sua pessoa”, tal como é pedido ao exercitante que faça ao contemplar a “vida do Rei Eterno”.
No fundo, trata-se da “eleição a partir da misericórdia” (misericordando) ou, talvez preferivelmente, da “misericórdia e eleição” (miserando atque eligendo), de acordo com a correção desejada pelo Papa na explicação da divisa herdada de Beda, o Venerável; tal correção comprova que o “discernimento inaciano” entrou definitivamente em Roma ou, mais precisamente, na Cabeça da Igreja – devemos ter em conta que o Papa Francisco gosta de se nomear a si mesmo como “bispo de Roma”. Esta “fórmula de aceitação” de si mesmo enquanto um simples pecador – uma fórmula que constitui, segundo o P. Spadaro e “para o Papa Francisco”, o seu “bilhete de identidade” – acaba por nos fazer entender a partir de que “género de humildade” Francisco assumiu, e continua a suportar, o peso do seu cargo: não apenas uma “humildade de obediência”, nem uma “humildade de indiferença”, mas sobretudo uma “humildade de desejo.” Tal como afirma Santo Inácio de Loiola: desejo “para imitar e parecer-me mais atualmente com Cristo nosso Senhor, eu quero e escolho antes pobreza com Cristo que riqueza”.
O fenómeno limitado
Surge agora a segunda fórmula, novamente em latim, que nos remete tanto a Inácio como a São Francisco, justificando, dessa forma, o contraponto franciscano do Papa inaciano. A máxima pertence sem dúvida ao fundador da Companhia de Jesus, mas a sua concetualização encontra-se já em São Francisco, o Poverello de Assis, ou mais precisamente em São Boaventura, que fará do “limite” o lugar de uma ontologia da pobreza (adotando, assim, a perspetiva franciscana), bem longe do “excesso” do saturado (a ambição dionisíaca). “Impressionou-me sempre uma máxima com que se descreve a visão de Inácio: Non coerceri a maximo, sed contineri a mínimo divinum est (não estar constrangido pelo máximo, e no entanto, estar inteiramente contido no mínimo, isso é divino)”.
Afirmar que o Ser divino, além de recusar estar encerrado no “máximo”, se deixa conter no “mínimo”, pode ser compreendido de duas formas distintas: segundo a teologia tomista (muito apreciada por Bergoglio, que chega mesmo a confessar que poderia ter sido dominicano em vez de jesuíta) e segundo a teologia boaventuriana (evidentemente implicada no único e belo nome escolhido pelo Papa – Francisco). Do lado de São Tomás, o adágio é bem conhecido, ou merece sê-lo: Nihil potest recipere ultra mensuram suam – “nada pode receber algo que ultrapasse a sua medida”. As “vias de acesso a Deus” permitem que se diga algo sobre Deus. O “mínimo” do homem existe, não para “limitar” o “máximo” de Deus, mas para reconhecer e aceitar que Deus ama e deseja o “limite” do homem, cujo pecado surge precisamente quando este recusa a “limitação”, reivindicando um estatuto contra a sua condição de criatura: “Deus deu Eva a Adão para que a mulher ajudasse o homem a carregar o limite que lhe era imposto”, sublinha Dietrich Bonhoeffer num notável comentário ao livro do Génesis. [...]
Discernir e corrigir
Provavelmente, hoje o discernimento é um termo demasiado usado, perdido nos seus múltiplos usos (espirituais, intelectuais, administrativos ou puramente privados), podendo acabar por se desfazer. À maneira de Inácio, o Papa Francisco emprega o termo discernimento com precaução e parcimónia. Creio que o termo discreción (discernimento) só surge duas vezes nos Exercícios Espirituais: sem dúvida, no contexto das regras (“regras para o [...] discernimento dos espíritos”); mas referindo-se, sobretudo, a uma experiência: a “experiência de discernimento de vários espíritos” (no contexto dos “três tempos para fazer uma sã e boa eleição”). Nesse sentido, tanto para o Papa Francisco como para o fundador Inácio de Loiola, o discernimento, longe de se reduzir ao mero formalismo do “método”, refere-se, antes de mais nada, a uma “experiência.” Nos Exercícios, a “matéria proposta” para a contemplação é sempre concreta. Assim, não se perde em abstrações vazias, mas centra-se, pelo contrário, na procura da justa disposição.
Jorge Mario Bergoglio reteve bem esta lição. Na arte de corrigir (corrigere) e de discernir (discernere), trata-se não apenar de “separar” ou de “pôr de parte” (dis-cernere), mas também de “saber conservar” e de não “acusar tudo.” O princípio metonímico de “tomar a parte pelo todo”, ou o método da “alavanca para levantar”, serve aqui de fundamento à máxima que o Papa João XXIII herdou de São Bernardo: apenas corrigir “pouco” ou “algumas” coisas. Sem dúvida que tal é a convicção do Papa Francisco, como da Companhia de Jesus, no seu modo de governação. Não se é capaz de reformar, quando se age ostensivamente contra tudo e todos. Consegue-se transformar as coisas, modificando discretamente “nada” ou “quase nada”, aqui e ali. Este princípio aplica-se aos sistemas, às “evoluções” e às “revoluções”, mesmo no quadro epistemológico. Basta pouco, ou “quase nada”, para mudar literalmente “tudo” no modo de pensar. [...]
“Sentir com a Igreja” e “pensar o homem”, tais poderiam ser, e para concluir, os dois pilares da espiritualidade, ou até mesmo da filosofia, do Papa Francisco: “sentir com a Igreja” (sentire cum Ecclesia) não é um imperativo vão para um Soberano Pontífice. Para o Papa Francisco, tudo diz primeiramente respeito à experiência e à corporeidade, à sensibilidade e à afetividade, quer se trate da “conversão dos sentidos”, mencionada por São Boaventura, proveniente da veia franciscana (Francisco), ou de ter os mesmos sentimentos de Cristo segundo a inspiração inaciana (jesuíta): “para o verdadeiro sentido que devemos ter na Igreja militante [lê-se ao término dos Exercícios Espirituais], guardem-se as regras seguintes”. O verdadeiro sentido da Igreja não remete primeiramente para a sua compreensão de foro intelectual, mas à sua sensibilidade, sensibilidade no duplo sentido de “sensação” (São Francisco) e de “afetividade” (Santo Inácio).
Não se “compreende” apenas porque se “conhece”, mas, sobretudo, quando se “sente” e se “ressente” as coisas “interiormente”. Heidegger considerou-o como Befindlichkeit (ou “afeição”) e, hoje, a teologia também parece encontrar este termo. Nenhuma representação – incluindo, em particular, a da Igreja – existe fora de uma sensação, ou até mesmo de um afeto, pelo qual ela não é apenas visada, mas também provada, no sentido de ser experimentada interiormente: porque, como diz Santo Inácio nos Exercícios “não é o muito saber que sacia e satisfaz a alma, mas o sentir e gostar as coisas internamente”. [...]
Devemos ainda recordar as palavras com as quais o Papa termina, de forma admirável, o colóquio com Antonio Spadaro (através de palavras dirigidas a um “companheiro” jesuíta, palavras proferidas de amigo para amigo): “a memória funda radicalmente o coração de um jesuíta”.