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O tempo pede uma Nova Evangelização
O bispo do Porto, D. Manuel Clemente, assinala este domingo, 24 de março, o sexto aniversário da tomada de posse da diocese.
A ocasião vai ser marcada pelo lançamento do livro "O tempo pede uma Nova Evangelização", das Paulinas Editora, que reúne os textos mais recentes do vice-presidente da Conferência Episcopal Portuguesa.
As intervenções do prelado, que juntamente com D. António Couto, bispo de Lamego, representou a Igreja Católica em Portugal no Sínodo dos Bispos para a Nova Evangelização, realizado em outubro no Vaticano, foram pronunciadas «dentro e fora do contexto eclesial, em espaços universitários e de cultura, em âmbitos institucionais ou simplesmente civis».
«Todos os textos foram revistos em função deste livro. Para que o leitor sinta a frescura e a intensidade de uma palavra carregada de profecia», lê-se na nota de edição, assinada pelos organizadores, os padres Américo Aguiar e José Tolentino Mendonça, diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, que vai apresentar a obra.
A sessão de lançamento decorre às 17h30 na Torre dos Clérigos, monumento nacional que em 2013 assinala 250 anos.
A seguir, um excerto do volume.
O melhor que temos para o futuro é tanta humanidade acumulada
«Então João Gouveia abandonou o recosto do banco de pedra, e teso na estrada, com o coco à banda, reabotoando a sobrecasaca, como sempre que estabelecia um resumo:
- Pois eu tenho estudado muito o nosso amigo Gonçalo Mendes. E sabem vocês, sabe o senhor padre Soeiro, quem ele me lembra?
- Quem?
- Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhança. Aquele todo do Gonçalo, a franqueza, a doçura, a bondade, a imensa bondade, que notou o senhor padre Soeiro... Os fogachos e entusiasmos, que acabam logo em fumo, e juntamente muita persistência, muito aferro quando se fila à sua ideia... A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos negócios, e sentimentos de muita honra, uns escrúpulos, quase pueris, não é verdade?... A imaginação que o leva sempre a exagerar até à mentira, e ao mesmo tempo um espírito prático, sempre atento à realidade útil. A viveza, a facilidade em compreender, em apanhar... A esperança constante nalgum milagre, no velho milagre de Ourique, que sanará todas as dificuldades... A vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma simpli cidade tão grande, que dá na rua o braço a um mendigo... Um fundo de melancolia, apesar de tão palrador, tão sociável. A desconfiança terrível em si mesmo, que o acobarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói, que tudo arrasa... Até aquela antiguidade de raça, aqui pegada à sua velha Torre, há mil anos... Até agora aquele arranque para a África... Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra?
— Quem?...
— Portugal.»
(Eça de Queiroz, "A Ilustre Casa de Ramires" (final)
Transcrevi acima o final d’A Ilustre Casa de Ramires, onde Eça nos resume como só ele o soube fazer. E ali está de tudo um pouco, desde a «constante trapalhada nos negócios» sinal frequente de lhes ligarmos pouco, ao novo «arranque para a África», ou para outros lugares que sejam, mesmo aqui. E o «herói» a aparecer seremos todos.
Nós somos realmente muito antigos e nada nos predestinava a ser fosse o que fosse. Nem terra, nem gente, nem língua, nem coisa alguma que nos recortasse de outros. Por isso, o que temos de original é sermos realmente muito antigos, sem razões de origem para o sermos. Dito doutro modo, é perdurarmos. Quase contra tudo, quase contra todos e quase contra nós, por vezes.
Se há «enigma português», é este mesmo. Basta e sobra, por ser quase inédito. Também para nos alimentar a esperança, que é o que sobeja dos impossíveis passados, para os impossíveis futuros.
Nunca é demais exercitar a memória coletiva, que vai na mesma onda. Esta ponta da Península, este extremo ocidente, recolheu junto ao mar migrações sucessivas que aqui tiveram de se deter, da pré-história ao século XV. Camadas meramente sobrepostas, ou misturadas no melhor dos casos.
Por isso já houve quem nos identificasse como norte-africanos aquém do estreito, ou semitas, ou gregos no litoral, ou celtas depois, ou arabizados ainda, ou o que mais viesse à memória e, sobretudo, à imaginação. Com um pouco de boa vontade, a toponímia, algum monumento, até as feições e a cor do cabelo deste ou daquele têm dado para tudo. As modernas pesquisas genéticas irão mais seguras. Mas não é difícil concluir que alhures na Península e na Europa se podem fazer idênticas conjeturas, sem chegar a conclusões «portuguesas».
Mais nossa será, creio bem, a insistência em nos descobrir mos diferentes, a catadupa de razões aduzidas, a incorporação – mais do que a originalidade propriamente dita – de mitos fundacionais e profecias de futuros garantidos. Visto por outro lado, tal elenco de explicações culturais esconde a inconsistência de outro tipo de fundamentos.
Porque isso somos, uma interessante realidade cultural, dando à cultura o sentido pleno de autointerpretação coletiva, interligando e projetando no presente e no futuro uma série de acontecimentos que fomos selecionando e transmitindo como «nossos».
Precisamente nisto nos destacámos de outros mais. Mas foram precisos elos internos suficentemente fortes e até precoces para que tal pudesse acontecer: tradições familiares e locais, interligação sucessiva de populações ao longo do território, acontecimentos que acabaram por tocar quase todos, personagens e factos que ganharam relevo coletivo, unidade geral de crença e expressão... Nada garantido no começo, tudo acumulado a pouco e pouco e até ver; como creio que continuaremos a ver, dada a força da corrente. (...)
As nossas impossibilidades foram ciclicamente recobertas pelas possibilidades e conveniências de outros. E aí o «milagre» passou muito pela capacidade que demonstrámos de conciliar as duas coisas.
A determinante progressão afonsina, de Guimarães para Coimbra e de Coimbra para Lisboa, sucede nas décadas meãs do século XII, em coincidência parcial com a segunda cruzada, de que São Bernardo de Claraval foi o mentor. A chegada ao Porto duma armada nórdica que rumava à Terra Santa, o deixar-se convencer pelo bispo Pedro Pitões a parar em Lisboa para ajudar Afonso Henriques na conquista da cidade: nada terá acontecido sem intervenção daquele máximo condutor da Cristandade ocidental. Alcobaça surgirá na sequência e marcará sublimente a dimensão europeia da fundação do novo reino.
O interregno de 1383-1385 é imediatamente um episódio luso-castelhano, ligado a uma questão sucessória algo complexa – ou que o grupo «português» tornou complexa, para legitimar a causa do Mestre de Avis. Mas também não se entende fora do contexto internacional, em que França(com Castela) e Inglaterra (com Portugal) se confrontavam, no âmbito da Guerra dos Cem Anos e do Cisma do Ocidente. Por isso, tivemos connosco soldados e armamento inglês; por isso, a nova rainha nos chegou de Inglaterra.
Depois de 1580, não bastou ao Prior do Crato o auxílio inglês ou francês para recuperar a coroa que mal tomara numa ou outra terra, vencido que fora por Filipe I de Portugal. Mas os historiadores não têm dúvidas de que seria difícil ou impossível manter-se a restauração de 1640, se Filipe III não tivesse de acudir a várias frentes, naquele tão difícil momen to da monarquia espanhola. O auxílio francês foi importante, a guerra da Catalunha determinante, o casamento de Catarina de Bragança com Carlos II de Inglaterra conveniente...
Face à guerra napoleónica, importou, certamente, o concurso inglês. Mas o que nos garantiu a sobrevivência política foi esse caso excecional da história dos povos, de persistirmos «fora» de nós próprios, na corte brasileira de João VI. Sem isto, teríamos seguido o destino de outros países europeus, simplesmente anexados por Napoleão e passando a coroa a gente sua, como na vizinha Espanha também aconteceu.
Depois de 1820, o rei voltou a Lisboa e o Brasil seguiu o seu curso. Mas a grande emigração nortenha para lá, na segunda metade do século, bem como os «brasileiros» regressa dos ao País, com o seu dinheiro, as suas obras e as suas benemerências, continuaram em menor escala o que o Brasil já fora para Portugal, durante o século XVIII.
No último século, o envolvimento do País na Primeira Guerra Mundial, com as razões europeias e ultramarinas que se aduziram; o prolongado regime autoritário, que nasceu com outros de aquém e além Pirinéus; os tratados internacionais de defesa e cooperação económica, da segunda metade do século; a integração democrática e europeia; as próprias vicissitudes ultramarinas com as respetivas conotações estrangeiras; a grande emigração dos anos sessenta e setenta, retomada agora doutro modo: tudo é português por que se passa connosco, mas tudo nos liga a outros e sem irmos «lá fora» não se explica. (...)
O melhor que temos para o futuro é tanta humanidade acumulada. E este é um futuro onde os outros também cabem, como nós caberemos com os outros, com aquela lucidez que só o tempo apura. Também para a Europa fitar o mundo com olhos portugueses, de mar a mar.
D. Manuel Clemente
In O tempo pede uma Nova Evangelização, ed. Paulinas
© SNPC |
11.04.13

O tempo pede
uma Nova Evangelização
Autor
D. Manuel Clemente
Editora
Paulinas
Ano
2013
Páginas
160
Preço
10,00 €
ISBN
978-989-673-303-2







