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Diocese do Porto

"Morreste-me": três poemas e cinco textos sobre a morte e esperança cristãs

Depois do folheto “Morreste-me”, cujos 300 mil exemplares vão ser distribuídos a 31 de outubro e 1 e 2 de novembro, a Pastoral da Cultura da diocese do Porto publica esta 5.ª feira a brochura com o mesmo título.

Os textos compostos por António Filipe Barbosa, Fernando Rosas, João Duque, José Nuno Silva e José Pedro Angélico incluídos nas 65 páginas do livrinho serviram de base aos conteúdos do folheto.

A obra, que inclui poemas de Daniel Faria, Fernando Echevarría e José Tolentino Mendonça, conta com a arte de Isabel Baptista, Manuela Bronze e José Rodrigues.

No texto de apresentação, o diretor do Secretariado Diocesano da Pastoral da Cultura, Joaquim Azevedo, descreve os objetivos desta edição, que pretende “ser um instrumento útil para cada pessoa promover a desocultação da morte e do seu sentido, nas suas vidas quotidianas”.

A brochura, que é vendida às paróquias ao preço unitário de 2,5 €, constitui também “uma ferramenta de focagem sobre o sentido belo, profundo e muito exigente da esperança cristã”.

O livrinho é lançado no âmbito do tema da “Esperança”, que reveste o mês de novembro na diocese do Porto, no quadro da “Missão 2010”, conjunto de atividades que ao longo deste ano visam a intensificação do testemunho e anúncio da mensagem cristã.

O interesse dos textos não se limita a novembro nem à diocese do Porto, já que podem ser utilizados em qualquer tempo e lugar no apoio a grupos, obras, movimentos e paróquias que queiram refletir sobre o tema da morte e da esperança.

Joaquim Azevedo nota que o “texto acessível, rigoroso e pedagógico” procura suscitar “novas perguntas, acalentar novas perspectivas de vida animada pela Esperança e desencadear mais vida vivida para os outros, sobretudo os mais necessitados”.

No fim de quatro dos cinco textos, intitulados “Morreste-me”, “A Morte da morte na Cultura atual”, “O fim que nos interroga”, “Esperar apesar de tudo” e “Esperança cristã”, são colocadas algumas perguntas, que podem ser respondidas individualmente ou em grupo.

À semelhança do folheto, o Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura adianta um excerto da brochura, começando pelo poema “Ilha dos mortos”, de José Tolentino Mendonça.

Enquanto iluminas a entrada do rio
o cobre emudece dinastias sem número
por degraus desiguais os mineiros,
os artesãos, as lavadeiras
lutam pela perfeição, lutam por Deus
em galerias remotas
as armas de caça vencidas
por ramos e arados

nenhuma morte é tão longa quanto a vida
diria quem pela primeira vez
visse debaixo de árvores sombrias
o sítio do mar, a porta das constelações
cem espantos possíveis
e no espanto uma esperança

o loureiro assinala a todos sua ciência negligenciada
címbalos, manuscritos e coroas
atiradas para o chão como vestimenta da batalha
insígnias do nosso posto de estrela em estrela

dão-nos sem nós pedirmos
ouvimos até sem querer
acima das arestas sombrias
a noite clara e os bosques

 

Esperança cristã (excerto)

Estranhamente, a luz ténue da esperança cristã apresenta duas facetas paradoxais, em relação à morte. Por um lado, surge como salvação da morte e, nesse sentido, como condenação da morte, enquanto o que de pior pode acontecer aos humanos – e que é experimentado, sobretudo, na morte do outro que amamos; por outro lado, o caminho da esperança cristã só é possível através da morte, isto é, depois de dita a penúltima palavra sobre nós, pois é essa palavra que coloca um ponto final na nossa vida terrena e, desse modo, torna essa vida completa – mesmo que, na nossa perspetiva, pareça estar sempre incompleta. Ou seja, cada um de nós só será ele mesmo, sem mais possibilidade de alterar a sua identidade, quando morrer, por mais breve que seja o seu tempo de vida. Assim, a morte é inevitável, não apenas de facto – todos sabemos que morreremos – mas, em certo sentido, de direito – somos seres biologicamente finitos e, para o «encerramento» do nosso processo de construção da identidade pessoal, temos que morrer.

Isso não significa, contudo, que tudo termine com a morte biológica. Com ela termina, é certo, algo muito importante, essencial; termina a vida em liberdade, que nos permite escolher ser o que seremos; e interrompe-se a relação com os outros, fundamento da construção da nossa identidade. Mas não termina, por completo e para sempre, a possibilidade dessa relação, como condição de vida. Abre-se, isso sim, uma outra dimensão da vida, em que o que somos e a nossa relação aos outros atinge um outro patamar de existência. É aí que se torna explícito – dentro dos limites da nossa compreensão – aquilo que nos é dado esperar, enquanto cristãos, para todos os humanos.

Na relação concreta com a morte, os conteúdos da esperança cristã poderão definir-se, antes de mais, negativamente. De facto, não esperamos que, na morte, apenas morra o nosso corpo biológico. A ideia de separação entre corpo e alma, na perfeita continuidade da alma, é apenas uma negação da morte. Com a morte, apenas morreria uma parte de nós, a menos importante. Mas nós mesmos, enquanto alma, continuaríamos alheios à morte. Em realidade, a morte não seria real, apenas aparente e apenas problemática para quem estivesse demasiado apegado ao corpo.

Mas, sem morte, não há ressurreição. Portanto, a esperança cristã não pode negar ou contornar a morte, enquanto tal. Antes a assume na sua problematicidade e dramaticidade. Só não a acolhe como trágico destino, sem saída nem solução. A «saída» oferecida, que é o núcleo da nossa esperança, é precisamente a ressurreição.

Mas é necessário precisar o que se entenderá por ressurreição. Mais uma vez, convém começar negativamente. Não é ressurreição o regresso à vida, a revivificação, pois isso é, simplesmente, regressar a uma dimensão novamente sujeita à morte – às numerosas mortes quotidianas. Também não é reencarnação, pois acabaria por significar o mesmo, no interminável ciclo das vidas mortais – que, além do mais, anulariam por completo a possibilidade de uma identidade pessoal. A ressurreição é a transfiguração de nós mesmos numa outra dimensão de nós, que é uma outra dimensão da vida. Essa outra dimensão não podemos nós próprios realizá-la – apenas podemos preparar-nos para a acolher ou para a recusar. Porque essa outra dimensão é a dimensão de Deus, em que seremos nós mesmos, por pura dádiva gratuita do seu amor. Aquilo a que a tradição cristã chamou céu não será senão essa dimensão de Deus, em que a força do seu amor será tudo em nós – e nada mais. Mas será tudo, em cada um de nós, considerado pessoalmente, como ser único e irrepetível, que construiu a sua identidade enquanto ser corpóreo, de carne e osso. Por isso, a ressurreição não é pensável sem referência ao corpo, que foi o lugar e a possibilidade da nossa identificação. E a dádiva imensa de Deus será acolhida, de acordo com a identidade de cada um, no respeito pela liberdade com que construiu essa identidade.

Por isso é que esperamos, também, que a vida na dimensão de Deus seja, ao mesmo tempo, uma vida plena, na relação aos outros, que supera a interrupção dessa relação, introduzida na morte e que, legitimamente, tanto nos faz sofrer. Na dimensão da vida de Deus, seremos dados à vida – uma vida diferente da que conhecemos biologicamente – para darmos a vida, tal como a demos, no nosso percurso terreno. Porque a dimensão do amor de Deus é a dimensão da doação plena, da dádiva completa de si. Se aceitarmos viver eternamente para os outros, teremos vida eterna, nesse dinamismo de doação sem fim e sem limite. (...)

Sem entrar em pormenores descritivos, porque seria impossível e mesmo insensato descrever essa dimensão da vida, a não ser metaforicamente, poderemos dizer que o conteúdo da esperança cristã ainda torna mais dolorosa a experiência da morte dos outros, sobretudo do próximo que mais nos toca. Porque se o sentido da vida é a vida para o outro, o maior absurdo está na interrupção dessa relação ao outro que nos morre. Chorar, amargamente, quem nos morre, é um ato profundamente cristão. Só não o será o desespero completo, perante essa morte. Porque seremos salvos pela esperança. A perdição seria o desespero, simplesmente.

Mas, qual o fundamento dessa esperança? Não se tratará de pura ilusão alienante? Que razoabilidade pode possuir o que nos anima? Não será mera construção humana, para responder a um desejo que não consegue satisfazer de outro modo?

É claro que não podemos demonstrar pelas ciências naturais aquilo em que esperamos. É normal que assim seja, pois a dimensão da vida que esperamos não se pode demonstrar por esses meios. Como não podem, aliás, muitas dimensões importantes da nossa existência, entre as quais sobressai o próprio amor, que torna a morte mais dramática ainda. Mas essas dimensões podem, isso sim, ser acreditadas, constituindo essa fé a base da nossa confiança e, por isso, da nossa esperança. É claro que não se trata de uma fé cega, simplesmente para contornar a dolorosa questão da morte. De facto, há motivos para crer, e esses constituem a razão da nossa esperança.

Fundamentalmente, a base da nossa esperança é o próprio Jesus Cristo, ressuscitado de entre os mortos e primogénito na nova dimensão da vida, precisamente porque viveu dando a vida, até à doação extrema da morte. Ou seja, a ressurreição de Jesus, núcleo da fé cristã, é o fundamento da esperança de que seremos dados à vida, para além da morte, numa outra dimensão da existência – a dimensão plena de Deus. Por isso, verdadeiramente só pode partilhar a esperança cristã quem partilhar a fé cristã. Uma é impensável sem a outra – assim como ambas são impensáveis sem a caridade, pois é na doação da vida ao outro que se realizam a nossa fé e a nossa esperança.

Aliás, Jesus Cristo não é apenas o fundamento primordial da nossa esperança, mas também o revelador da verdadeira relação entre os humanos e a morte. De facto, enquanto verdadeiro Filho do Homem, Jesus assumiu completamente a condição mortal dos humanos, sem com isso declarar a morte como algo bom. De facto, ela não deixou de ser o último inimigo, que só a dádiva da «vida eterna» pode vencer. Mas essa vitória é tudo menos triunfal. A vida de Jesus e o seu desfecho manifestam, claramente – embora paradoxalmente – que o caminho da verdadeira vida é o caminho que passa pela morte, sem lhe fugir de modo ilusório. Mas, ao mesmo tempo, essa passagem pela morte não é uma passagem qualquer. Ela mesma é, em Jesus, uma dádiva livre e gratuita da vida. E só essa dádiva possui força – que é a força de Deus – para vencer verdadeiramente a morte. Porque uma vida dada livremente pelo outro, na morte, faz com que essa morte não possa roubar-nos a vida, pois esta adquire eternidade, na medida em que é dada. Assim sendo, a ressurreição de Jesus, que constitui fundamento da nossa esperança, é uma ressurreição que coincide com um determinado modo de morte – a morte como doação da vida pelo outro e ao outro (e, neste, ao próprio Deus).

Mas, para além deste fundamento crente da esperança cristã, poderíamos considerar o que significa, humanamente, ser-nos permitido esperar que a morte não tenha a última palavra sobre nós. Tal como tão bem têm formulado muitos escritores e pensadores nossos contemporâneos – e mesmo nossos conterrâneos – a impossibilidade dessa esperança apenas nos conduz ao absurdo, ao sem-sentido completo de todos os nossos desejos e aspirações, assim como das nossas realizações. Nesse sentido, poderíamos dizer que é mais humanizante esperar para além da morte do que desesperar com a morte. E é essa esperança que nos dará coragem para acreditarmos no ser humano, apesar de tudo – apesar da morte.

 

© SNPC | 28.10.10

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