Teatro
Penas Pesadas da Neve
«O dia começa nos barracões de madrugada, às cinco e trinta temos de nos despachar para não perdermos a água quente. Um quarto para as sete, a parada, alinham-nos, contam-nos. Entre as colunas dos homens, fixamos os olhos nas árvores ao longe, balançam num outro tempo, como se fosse outra a sua vida. Apenas os pássaros esvoaçam também por aqui, deixam-nos cânticos que procuramos decorar, que não nos largam depois, horas e horas nos ouvidos, deixam uma alegria que não sabemos como aceitar.
Pássaros, disseste pássaros? Interessa-me, levo os dias atrás deles…
Os pássaros entram e saem, as suas cores parecem mais vivas na neve, a neve de novo neve fresca nos olhos. Não são para os pássaros as duas fileiras de arame farpado, as dez torres de vigia, as barracas da guarda, os abrigos dos soldados, dispostos a distâncias regulares.
(...)
George Disario/Corbis
Ando nisto há anos e não sei se o mundo é todo visível, e é uma questão de paciência, ou invisível totalmente, e serão os olhos recomeçados. Ou se recomeçamos os olhos, porque vemos exatamente tudo, mas tudo, com paciência. Fico à espera para o descobrir, vivo para o descobrir, a minha vida é a espera dessa descoberta. Como músico, os pássaros ensinam-me todos os dias que há coisas de atenta surdez.
Limito-me a fazer um humilde trabalho de transposição e depois as minhas músicas a partir daí. Já percebi que sabes como é. (Desta vez olha para o escuro, onde estará a outra personagem, oculta) O coração dos pássaros tem batimentos muito rápidos e os tempos do seu canto são demasiado vivos. Para percebermos estes factos radiantes, temos de os abrandar um pouco e ao registo sobreagudo trazê-lo para algumas oitavas abaixo- e seremos em tudo isto fielmente infiéis. E o timbre cheio de harmónicos, a voz inconfundível dos pássaros? Chega a ser preciso inventar um acorde nosso para uma nota deles, e os pássaros cantam facilmente, mas as minhas músicas tornam-se difíceis de tocar. (Pausa) E um dia conheci-a. Eu tinha acabado de chegar como professor ao Conservatório de Paris, vinha exatamente de uma guerra, e ela, aluna atenta, reparava nos meus dedos sobre o piano. Estavam visivelmente marcados pela vida do campo de prisioneiros.
Yan Yan/XinHua/Xinhua Press/Corbis
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Penas pesadas da neve. (Pausa) Sento-me no meu banquinho de organista da igreja da Trindade, em Paris, estou lá desde 1931, lá ficarei até morrer. Às vezes incendeio o mundo com a minha música, outras vezes desacelero-o um pouco, como quando, de repente, nunca te aconteceu?, o trânsito parece parar por momentos na cidade movimentada, num súbito acaso, e surpreende-nos então o mais improvável momento. No meu banquinho, dia após dia, recriando nos sopros dos tubos os sopros do mundo, ventania maior ou sussurro mínimo; e é como se do banquinho fossem nascendo tentáculos lenhosos, que penetram as paredes potentes da igreja, passam depois aos esgotos de Paris, são agora bem visíveis, incham em Stalag VIII A. (Pausa. Palavras ditas de forma absorta) Tanta neve, a neve não para. Há quantos dias se abate sobre este campo e nos vai cercando. Não sei se esperamos alguma coisa, os dedos do tempo estão a congelar.
Wayne Lynch/All Canada Photos/Corbis
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Penas pesadas da neve. (Pausa) No espaço gelado da barraca 27, na noite glacial de 15 de janeiro de 1941, estreámos em Stalag VIII A o Quarteto que escrevi para os precários instrumentos que lá havia: violino, violoncelo, clarinete e piano. Incompletos e até um pouco desafinados. Expliquei que era o Quarteto para o Fim dos Tempos e que me inspirara numa passagem do Apocalipse, e todos percebiam porquê. Nessa passagem um anjo anuncia que o tempo acabou, e todos percebiam porquê. Ouviram, num silêncio que nunca mais encontrei, os ritmos furiosos, as frases impossivelmente distendidas, olhavam às vezes para o comandante do campo e os oficiais na primeira fila. Os pássaros ajudavam a nossa libertação, cantam a abrir o primeiro andamento, entre as poeiras harmoniosas de um céu que sabemos estar por lá, sobem da voragem de um abismo um pouco mais tarde, voam para a luz que os criou. Sei que é assim, a minha música sabe que é assim, quis explicá-lo ao vivo naquele barracão de um campo da morte. (Pausa. Palavras ditas de forma absorta) O mundo quase não resiste à inocência de tantos pássaros, escutem a crosta dura do mundo, parece estalar como um ovo.»
Aso Fujita/amanaimagesRF/Corbis
Estes são alguns excertos de “Penas Pesadas da Neve”, diálogos imaginários de Olivier Messiaen, prisioneiro e amante de pássaros, da autoria de José Manuel Teixeira da Silva.
O texto foi encenado no âmbito do seminário “A pergunta na hora de partir. A Morte na Poesia Portuguesa do Séc. XX”, realizado a 15 de novembro no Centro Regional do Porto da Universidade Católica.
A iniciativa, organizada pelo Secretariado da Pastoral da Cultura da diocese do Porto, incluiu, durante a tarde, conferências sobre António Nobre, Teixeira de Pascoaes, Ruy Belo e Daniel Faria. À noite, o texto de José Manuel Teixeira antecedeu o concerto “Quarteto para o Fim dos Tempos”, de Olivier Messiaen.
Texto "Penas Pesadas da Neve": José Manuel Teixeira da Silva
19.11.10

José Manuel Teixeira da Silva






