Pedras angulares
Fé e Cultura

Carta a Diogneto

“Jóia da antiguidade cristã”, “pérola da apologética do século II”, a carta a Diogneto, de autor anónimo, é um precioso fragmento da primitiva experiência cristã e do esforço de diálogo da Igreja com a cultura circunstante. Escrita provavelmente nos finais do século II, nela se encontram autênticas parcelas de ouro puro da sabedoria evangélica que conferem a este texto uma actualidade singular.

A obra, bilingue, de onde retiramos o fragmento do texto que propomos seguidamente, é o segundo número da Philokalia, colecção de textos patrísticos editada pela Alcalá. A versão do original grego é de M. Luís Marques; as notas e estudo são de Isidro Pereira Lamelas.

 

V.1 Os cristãos não se distinguem dos demais homens, nem pela terra, nem pela língua, nem pelos costumes. 2 Nem, em parte alguma, habitam cidades peculiares, nem usam alguma língua distinta, nem vivem uma vida de natureza singular. 3 Nem uma doutrina desta natureza deve a sua descoberta à invenção ou conjectura de homens de espírito irrequieto, nem defendem, como alguns, uma doutrina humana. 4 Habitando cidades Gregas e Bárbaras, conforme coube em sorte a cada um, e seguindo os usos e costumes das regiões, no vestuário, no regime alimentar e no resto da vida, revelam unanimemente uma maravilhosa e paradoxal constituição no seu regime de vida político-social.

5 Habitam pátrias próprias, mas como peregrinos: participam de tudo, como cidadãos, e tudo sofrem como estrangeiros. Toda a terra estrangeira é para eles uma pátria e toda a pátria uma terra estrangeira. 6 Casam como todos e geram filhos, mas não abandonam à violência os neonatos. 7 Servem-se da mesma mesa, mas não do mesmo leito. 8 Encontram-se na carne, mas não vivem segundo a carne. 9 Moram na terra e são regidos pelo céu. 10 Obedecem às leis estabelecidas e superam as leis com as próprias vidas.

11 Amam todos e por todos são perseguidos.

12 Não são reconhecidos, mas são condenados à morte; são condenados à morte e ganham a vida.

13 São pobres, mas enriquecem muita gente; de tudo carecem, mas em tudo abundam.

14 São desonrados, e nas desonras são glorificados; injuriados, são também justificados.

15 Insultados, bendizem; ultrajados, prestam as devidas honras.

16 Fazendo o bem, são punidos como maus; fustigados, alegram-se, como se recebessem a vida.

17 São hostilizados pelos Judeus como estrangeiros; são perseguidos pelos Gregos,
e os que os odeiam não sabem dizer a causa do ódio.

 

VI. 1 Numa palavra, o que a alma é no corpo, isso são os cristãos no mundo.

2 A alma está em todos os membros do corpo
e os cristãos em todas as cidades do mundo.

3 A alma habita no corpo, não é, contudo, do corpo;
também os cristãos, se habitam no mundo, não são do mundo.

4 A alma invisível vela no corpo visível;
Também os cristãos sabe-se que estão neste mundo, mas a sua religião permanece invisível.

5 A carne odeia a alma, e, apesar de não a ter ofendido em nada, faz-lhe a guerra, só porque se lhe opõe a que se entregue aos prazeres; da mesma forma, o mundo odeia os cristãos que não lhe fazem nenhum mal, porque se opõem aos seus prazeres.

6 A alma ama a carne, que a odeia, e os seus membros;
Também os cristãos amam os que os odeiam.

7 A alma está encerrada no corpo, é todavia ela que sustém o corpo.
Também os cristãos se encontram retidos no mundo como em cárcere, mas são eles que sustêm o mundo.

8 A alma imortal habita numa tenta mortal;
Também os cristãos habitam em tendas mortais, esperando a incorrupção nos céus.

9 Provada pela fome e pela sede, a alma vai-se melhorando; também os cristãos, fustigados dia-a-dia, mais se vão multiplicando.

10 Deus pô-los numa tal situação, que lhes não é permitido evadir-se.

 

VII.1 Não foi, pois, como dizia, uma invenção terrena esta que lhes foi transmitida, nem, deste modo, professam guardar com tal cuidado uma ideia mortal, nem é a administração de mistérios humanos que lhes é confiada.

2 Mas o próprio, verdadeiramente Omnipotente, o Criador de todas as coisas, o Deus invisível, ele próprio enviando do alto dos céus a Verdade, o seu Verbo santo e incompreensível aos homens que inseriu nos seus corações: não, como alguém poderia imaginar, que tenha enviado aos homens algum subordinado, anjo ou arconte, ou algum dos que governam as coisas terrenas, ou daqueles a quem foram confiadas as administrações dos céus, mas o próprio Artífice e Demiurgo de todas as coisas, por quem fundou os céus, encerrou os mares nos seus próprios limites; cujos mistérios todos os elementos guardam fielmente; da parte do qual o sol recebeu as medidas a observar no seu curso quotidiano; ao qual a Lua obedece, quando lhe ordena que brilhe durante a noite; aoqual obedecem os astros que acompanham o curso da Lua; Por ele todas as coisas foram ordenadas, delimitadas e submetidas: os céus e o que há nos céus; a terra e as coisas que há na terra; o mar e tudo o que há no mar; o fogo, o ar e os abismos; as coisas que há nas alturas e nas profundezas e no espaço intermédio: foi Ele que Deus lhes enviou.

3 Acaso, como algum dos homens pensaria, na tirania, no temor e no pavor? 4 De modo nenhum, mas enviou-o na clemência e na doçura, como um Rei que enviou o Filho Rei, enviou-o como Deus. Como Homem enviou-o aos homens: enviou-o para salvar, pela persuasão e não pela força. Efectivamente, a violência não se ajusta a Deus. 5 Enviou-o como quem chama, não como quem persegue; enviou-o como quem ama, não como quem condena. 6 Efectivamente, enviá-lo-á para julgar. E quem suportará a Sua manifestação?

7 (Não vês) que são lançados às feras, para que neguem o Senhor, e não se deixam vencer? 8 Não vês que quanto mais perseguidos são, mais numerosos se tornam? 9 Estas coisas não me parece que sejam obras do homem: elas são força de Deus, elas são manifestações da Sua presença.

Anónimo

06.03.2008

 

 

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Capa do livro

A Diogneto

Autor
Anónimo

Editora
Alcalá
Telf.: 21 347 82 20

Páginas
214

Data
2001

ISBN
972-8673-02-7

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