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Periferias: Para uma cultura da atenção

Desde há alguns anos, primeiro de maneira mais dispersa, depois com um desejo de investigação mais unitária (…), empreendemos, com um grupo heterogéneo de pessoas e de investigadores, um trabalho de exploração de alguns contextos periféricos.

Explorações feitas de estudo, de permanência nesses contextos, de progressivo conhecimento das pessoas e dos seus percursos, de entrevistas em profundidade, de longos diálogos e debates cerrados. (…)

Entre os contextos explorados encontram-se, por exemplo: a prisão e o complexo mundo da detenção, o dia-a-dia de um centro para adolescentes da periferia de uma grande cidade, a realidade estranhamente dinâmica das comunidades crentes e orantes – de católicos, evangélicos, ortodoxos, coptas, muçulmanos, judeus, baha’i, sikhs – compostas por imigrados e imigrantes provenientes de muitos lugares do mundo, a realidade de um não pequeno grupo católico de reflexão e oração do mundo LGBT+.

Sem querer descrever detalhadamente o trabalho desenvolvido, parece-nos útil traçar algumas convicções que dão forma a um modo de proceder e que são fruto, por sua vez, de um contacto intensivo com contextos liminares, nas franjas, nas margens.



A cultura da atenção comporta quatro etapas: a) reconhecer o contexto liminar; b) vê-lo por aquilo que é, de uma maneira – o mais possível – limpa e sem demasiados mal-entendidos; c) dar-lhe peso e importância; d) permitir a ativação de perguntas sobre si, sobre o seu contexto, sobre o viver coletivo



Mundos periféricos

Uma primeira convicção – ou melhor, amadurecimento realizado – diz respeito ao reconhecimento dos mundos denominados periféricos. Trata-se de um processo não dado por adquirido, na medida em que aquilo que não se encontra no – suposto – centro da vida social e da vida eclesial é muitas vezes evocado, narrado, comentado, mas “não é visto”.

Por “ver” entendemos o encontro com as pessoas, as suas trajetórias biográficas, os seus contextos de vida concretos: encontro acompanhado de um trabalho constante sobre si próprio, sobre a sua sensibilidade e inteligência, sobre representações pessoais e coletivas.

Creio que cada pessoa que tenha entrado conscientemente – são apenas exemplos – numa prisão, num espaço periférico e doloroso, num campo de ciganos, em determinadas casas, sentiu até certo ponto dentro de si um doloroso sobressalto da consciência que sugere algo deste género: “Mas por onde é que eu estive até agora? Mas como é que eu/nós não os vimos até agora?”.

Essa cultura da atenção comporta, portanto, um movimento esquematizável em quatro etapas: a) reconhecer o contexto liminar; b) vê-lo por aquilo que é, de uma maneira – o mais possível – limpa e sem demasiados mal-entendidos; c) dar-lhe peso e importância; d) permitir a ativação de perguntas sobre si, sobre o seu contexto, sobre o viver coletivo.



É um trabalho que deve ser feito com outros e outras num confronto contínuo, na consciência de que ninguém tem uma chave para decifrar todos os estratos da realidade, mas só em conjunto se podem procurar hipóteses e tentativas, sempre a rever, de compreensão



Contacto prolongado

Uma segunda reflexão visa a importância de um contacto prolongado com estes mundos. Não se trata, com efeito, apenas de ver, mas de parar, de permanecer. Poderia citar-se aqui – em diálogo com um texto de Carlo Maria Martini – o Evangelho segundo Lucas em relação ao episódio de Zaqueu, quando afirma que “Jesus atravessava a cidade”.

Um longo atravessamento feito de estudo e de contacto direto, de leituras e de observações, de paragem “contemplativa” e de escuta não distraída das situações e das pessoas. Parece-nos que aqui não pode faltar uma lenta – e por vezes dolorosa – capacidade de revisão das ideias próprias, de voltar a discutir os próprios preconceitos, de aceitar o xeque de realidades difíceis de explicar e de imaginar.

Tudo isto tem também uma dimensão espiritual e teológica na medida em que o contacto com o nó do drama humano implica um labor interno da consciência, uma intensa busca espiritual, uma aceitação da própria frequente obtusidade em relação às realidades mais desafiadoras, uma revisão das próprias categorias teológicas tantas vezes ossificadas e sem vida.

 

O coletivo

Um terceiro elemento refere-se à dimensão coletiva de tais explorações. Sozinho não se podem conhecer certos mundos. É verdade que o trabalho excecional – como geógrafo, linguista e testemunha evangélica – de uma figura como Charles de Foucauld com os tuaregues parece à primeira vista a obra de um solitário, mas, vendo bem, todo o seu caminho foi entretecido de encontros, confrontos, laços crescentes com os seus vizinhos e amigos tuaregues.



A tentativa de conhecimento das biografias e dos contextos conduz, até certo ponto – e de maneira cada vez mais intensa –, não só ao interrogar-se sobre os contextos e as vicissitudes humanas que ali se desenvolvem, mas sobre o nosso olhar e sobre o modo com que nos posicionamos no mundo



É, portanto, um trabalho que deve ser feito com outros e outras num confronto contínuo, na consciência de que ninguém tem uma chave para decifrar todos os estratos da realidade, mas só em conjunto se podem procurar hipóteses e tentativas, sempre a rever, de compreensão. Sobre isto, na nossa pequena experiência, dois aspetos tornaram-se progressivamente cada vez mais claros.

O primeiro: para conhecer porções da realidade é fundamental mover-se em equipas, em pequenos grupos de trabalho formados por pessoas de idade e proveniência diferentes.
É preciso um confronto intenso entre as gerações na tentativa de compreender o que acontece, e não é possível pensar aproximar-se da realidade excluindo faixas de idade e de experiência. Seja dito como inciso: é seríssima a situação de um conjunto social – ou eclesial – que deixa de ter conta da sensibilidade e da capacidade de visão do mundo juvenil.

Um segundo aspeto: o atravessamento dos mundos periféricos desvela, progressivamente, que só as pessoas que o habitam podem abrir do interior esses espaços. São elas que representam os primeiros e verdadeiros atores destas explorações, que abrem portas, compreensões, representações do mundo. As nossas explorações transformaram-se assim – progressivamente e metodologicamente – num “dar a palavra”, num dar espaço, num deixar exprimir e vir à luz.

 

Como olhamos para as periferias

Um quarto elemento de fundo está ligado ao que dissemos. A tentativa de conhecimento das biografias e dos contextos conduz, até certo ponto – e de maneira cada vez mais intensa –, não só ao interrogar-se sobre os contextos e as vicissitudes humanas que ali se desenvolvem, mas sobre o nosso olhar e sobre o modo com que nos posicionamos no mundo.



Os lugares e as experiências que se encontram na fronteira da vida humana e social contêm um impulso para a conversão pessoal e social



Dois filósofos e antropólogos para nós muito importantes – Ivan Illich e Bruno Latour – mostraram há muito como o olhar dos modernos e dos ocidentais – portanto também o nosso – é atingido de maneira estrutural por um sentido de superioridade com raízes coloniais, está impregnado de muita violência, é animado por uma presumida objetividade e, para o nosso mundo cristão, de um olhar que muitas vezes se presume no justo, no bem e no centro.

Por vezes o papa Francisco afirma que a verdade acha-se no encontro; cremos que isto é interpretável precisamente no sentido de que certas investigações e encontros conduzem – como para Zaqueu – a um desejo de mudança, a um apelo a descer da árvore das próprias presunções pessoais e coletivas, a uma busca de maior justiça, a uma interrogação de salvação – em termos religiosos e/ou existenciais – da própria vida e da dos outros. Os lugares e as experiências que se encontram na fronteira da vida humana e social contêm assim um impulso para a conversão pessoal e social.

 

Fronteiras

Um quinto elemento que progressivamente foi amadurecendo é o sentido de mistério que envolve as vidas de quem, por qualquer razão, está “fora” ou nas “fronteiras”.

Com a palavra mistério entendemos aqui a perceção da presença de alguma coisa de importante, de relevante para o humano que nos habita, de um contacto com aquilo que toca de maneira derradeira cada existência humana (cf. Tillich). Foi uma experiência frequente: certos diálogos, os acenos a sofrimentos não dizíveis, algumas fendas sobre feridas e fraturas, o reluzir de tenacíssimas buscas de sentido, são acontecimentos que, ocorridos durante as nossas investigações, abriram o sentido do contacto com o mistério.

Como foi afirmado pelo fotógrafo Sebastião Salgado: «As pessoas são o sal da Terra». Para quem se reconhece numa interpretação cristã, tudo isto pode ser lido como a perceção da glória de Deus nas vidas do ser humano (cf. Ireneu) ou com a presença do mistério do Filho do homem que revelou em plenitude o rosto de Deus numa existência marginal e derrotada (cf. Agostinho, Lutero).

As nossas investigações movem-se, no entanto, num espaço que deseja ser laico, e portanto detemo-nos no umbral de tais interpretações, que deixamos à reflexão eclesial e à leitura teológico-espiritual, constatando todavia como os nós de certas existências nos falam em profundidade e nos fazem «persistir no não saber alguma coisa de importante» (Szymborska).


 

Fabrizio Mandreoli (org.)
In Settimana News
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: Gorlovkv/Bigstock.com
Publicado em 23.03.2023 | Atualizado em 08.10.2023

 

 
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