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Poesia canta esplendor, drama e mistério da Amazónia na nova exortação apostólica do papa Francisco

«Da altura extrema da cordilheira, onde as neves são eternas, a água se desprende, e traça trémula um risco na pele antiga da pedra: o Amazonas acaba de nascer. A cada instante ele nasce. Desce devagar, para crescer no chão. Varando verdes, faz o seu caminho e se acrescenta. Aguas subterrâneas afloram para abraçar-se com a água que desceu dos Andes. De mais alto ainda, desce a água celeste. Reunidas elas avançam, multiplicadas em infinitos caminhos, banhando a imensa planície (...). É a Grande Amazónia, toda ela no trópico húmido, com a sua floresta compacta e atordoante, onde ainda palpita, intocada pelo homem, a vida que se foi urdindo nas intimidades da água (...). Desde que o homem a habita, ergue-se das funduras das suas águas e dos altos centros de sua floresta um terrível temor: a de que essa vida esteja, devagarinho, tomando o rumo do fim.»

Esta narração do nascimento e antecipação da extinção do rio Amazonas é uma das mais de dez citações de poetas e escritores da América Latina que o papa Francisco “chamou” para a sua exortação apostólica “Querida Amazónia”, hoje divulgada, na sequência do sínodo sobre a região pan-amazónica realizado no Vaticano em outubro do ano passado.

Pouco antes, no documento pontifício publicado exatamente quinze anos depois do assassinato da religiosa norte-americana Dorothy Stang na Amazónia brasileira, tinha comparecido Pablo Neruda: «Amazonas,/ capital das sílabas d'água,/ pai patriarca, és/ a eternidade secreta/ das fecundações,/ chegam-te rios como pássaros».



«Sofre o mundo da transformação da pá em fuzil, do arado em tanque de guerra, da imagem do semeador que semeia na do autómato com seu lança-chamas, de cuja sementeira brotam solidões. A esse mundo, só a poesia poderá salvar, e a humildade diante da sua voz»



Euclides da Cunha oferece uma das mais intensas descrições do rio: «Ali, no pleno dos estios quentes, quando se diluem, mortas nos ares parados, as últimas lufadas de leste, o termómetro é substituído pelo higrómetro na definição do clima. As existências derivam numa alternativa dolorosa de vazantes e enchentes dos grandes rios. Estas alteiam-se sempre de um modo assombrador. O Amazonas referto salta fora do leito, levanta em poucos dias o nível das águas. A enchente é uma paragem na vida. Preso nas malhas dos igarapés, o homem aguarda, então, com estoicismo raro ante a fatalidade incoercível, o termo daquele inverno paradoxal, de temperaturas altas. A vazante é o verão. É a revivescência da atividade rudimentar dos que ali se agitam, do único modo compatível com uma natureza que se excede em manifestações díspares, tornando impossível a continuidade de quaisquer esforços».

Esta exuberância, por inesgotável que pareça, corre perigo, adverte Juan Carlos Galeano: «Aqueles que pensavam que o rio fosse uma corda para jogar, enganavam-se./ O rio é uma veia muito subtil sobre a face da terra. (…)/ O rio é uma corda onde se agarram os animais e as árvores./ Se o puxarem demais, o rio poderia rebentar./ Poderia explodir e lavar-nos a cara com a água e com o sangue».

Porquê recorrer à escrita poética, a par da teologia, da espiritualidade, da pastoral? Porque «os poetas populares, enamorados da sua imensa beleza, procuraram expressar o que este rio lhes fazia sentir e a vida que ele oferece à sua passagem, com uma dança de delfins, anacondas, árvores e canoas. Mas lamentam também os perigos que a ameaçam».

São eles, «poetas, contemplativos e proféticos», que contribuem para a libertação «do paradigma tecnocrático e consumista que sufoca a natureza», e impede «uma existência verdadeiramente digna».



«Começou a desenvolver-se uma maior perceção da identidade amazónica», que se tem tornado «fonte de inspiração artística, literária, musical, cultural», pelo que «as várias expressões artísticas, particularmente a poesia, deixaram-se inspirar pela água, a floresta, a vida que se agita, bem como pela diversidade cultural e os desafios ecológicos e sociais»



Com efeito, observou Vinícius de Moraes, igualmente citado, «sofre o mundo da transformação dos pés em borracha, das pernas em couro, do corpo em pano e da cabeça em aço (...). Sofre o mundo da transformação da pá em fuzil, do arado em tanque de guerra, da imagem do semeador que semeia na do autómato com seu lança-chamas, de cuja sementeira brotam solidões. A esse mundo, só a poesia poderá salvar, e a humildade diante da sua voz».

Dividido em quatro sonhos que o papa quer apresentar, não só à Amazónia, mas a todo o mundo – social, cultural, ecológico, eclesial – o texto fala de «culturas ameaçadas» e alerta  que o «risco de perder» a «riqueza cultural» da região «é cada vez maior».

Promover a Amazónia «não implica colonizá-la culturalmente, mas fazer de modo que ela própria tire para fora o melhor de si mesma», porque «assim como há potencialidades na natureza que se poderiam perder para sempre, o mesmo pode acontecer com culturas portadoras duma mensagem ainda não escutada e que estão ameaçadas hoje mais do que nunca».

«Durante séculos, os povos amazónicos transmitiram a sua sabedoria cultural, oralmente, através de mitos, lendas, narrações», como sucedia, evoca Mario Vargas Llosa, com «aqueles primitivos jograis que percorriam as florestas contando histórias de aldeia em aldeia, mantendo assim viva uma comunidade, que, sem o cordão umbilical destas histórias, a distância e a falta de comunicação teriam fragmentado e dissolvido».



A exortação reitera, mais uma vez num recado para todo o mundo, que «a diferença, que pode ser uma bandeira ou uma fronteira», pode transformar-se «numa ponte», dado que «a identidade e o diálogo não são inimigos»



Francisco acentua que «Deus manifesta-se, reflete algo da sua beleza inesgotável através dum território e das suas características, pelo que os diferentes grupos, numa síntese vital com o ambiente circundante, desenvolvem uma forma peculiar de sabedoria».

O papa destaca, pela positiva, que «começou a desenvolver-se uma maior perceção da identidade amazónica», que se tem tornado «fonte de inspiração artística, literária, musical, cultural», pelo que «as várias expressões artísticas, particularmente a poesia, deixaram-se inspirar pela água, a floresta, a vida que se agita, bem como pela diversidade cultural e os desafios ecológicos e sociais».

A exortação reitera, mais uma vez num recado para todo o mundo, que «a diferença, que pode ser uma bandeira ou uma fronteira», pode transformar-se «numa ponte», dado que «a identidade e o diálogo não são inimigos»: a primeira «aprofunda-se e enriquece-se no diálogo com os que são diferentes, e o modo autêntico de a conservar não é um isolamento que empobrece». E sublinha: «Cuidar dos valores culturais dos grupos indígenas deveria ser interesse de todos, porque a sua riqueza é também a nossa».

Para Francisco, o primeiro anúncio do Evangelho e o amor fraterno concretizados na Amazónia por parte da Igreja devem ser moldados pela «escuta e diálogo com as pessoas, realidades e histórias do território».

«Desta forma, ir-se-á desenvolvendo cada vez mais um processo necessário de inculturação, que nada despreza do bem que já existe nas culturas amazónicas, mas recebe-o e leva-o à plenitude à luz do Evangelho», aponta.


 

Rui Jorge Martins
Imagem: Bigstock.com
Publicado em 08.10.2023

 

 

 
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