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Primo Levi: Ninguém devia passar por esta vida sem o ler

Há cem anos, a 31 de julho de 1919, nascia Primo Levi. Ninguém devia ter saído do século passado sem ter lido “Se isto é um homem” e “Os que sucumbem e os que se salvam”. São o testemunho e a análise da máxima culpa do século, aliás, do milénio, aliás, da história.

No entanto, Primo Levi não foi compreendido quando entregou o manuscrito do seu primeiro livro, que haveria de ser recusado, é sabido, mas também não foi compreendido depois, durante muitas décadas, visto que nenhuma história da literatura o incluía, e isto é menos conhecido.

Onde está a grandeza do escritor italiano mais importante do século XX? Está em ter vivido na primeira pessoa, e observado, e descrito a máxima culpa da história, não no grau máximo em que se verificava, mas no grau máximo em que era recordável e narrável.

Vem sempre à minha mente que um redator da revista de Sartre, “Les Temps Modernes”, encontrou-se com alguns sobreviventes do Extermínio, interrogou-os e filmou-os, mas aqueles que viveram a violência no grau mais alto não respondem, mas choram e contorcem-se. São mudos. Levi fala. Com precisão, com lucidez, com verdade. Com um estilo clássico.



Levi tinha uma conceção personalista da história, a história é feita pelos grandes, são o vento que sacode os mares, sobre os quais os povos flutuam. Não estava e não estou de acordo. A história é feita por nós, nós povo



Os seus livros são um ato de acusação frio e inflexível. Contra a cultura racista, o regime racista, o projeto da “Solução final”, a realização desse projeto, o nazismo. É a história do mal, que tem como motor o “führer”.

Encontrei-me várias vezes com ele, e daí extraí um livrinho que se intitula “Conversas com Primo Levi”, no qual há também um doloroso recontro entre ele e eu, e o recontro diz respeito ao culpado daquele mal.

Levi tinha uma conceção personalista da história, a história é feita pelos grandes, são o vento que sacode os mares, sobre os quais os povos flutuam. Não estava e não estou de acordo. A história é feita por nós, nós povo.

Após a morte de Primo, saíram dos livros que reforçam o desacordo, “Os carrascos voluntários de Hitler” (Daniel Jonah Goldhagen) e “A destruição dos judeus da Europa” (Raul Hillberg). Estas obras afirmam a responsabilidade coletiva. Que não quer dizer de todos os membros do povo singularmente considerados, mas da massa, há uma responsabilidade de massa, a massa obedecia às ordens, mas também as precedia e esperava.



«Este qualquer à minha frente merece com certeza morrer, mas vejamos primeiro se contém alguma coisa de útil». O lugar em que se observa se os condenados à morte têm alguma coisa de útil é o campo de concentração



Esta tese é reconfortante para quem ensina, quem escreve, quem fala, porque faz compreender que há um tempo para a intervenção e a oposição, e esse é o tempo em que podemos agir nós próprios.

Não se pode dizer que Hitler tenha traído todos, e que não tivesse dito o que iria fazer, porque o “Mein kampf” é claríssimo, invadirei o Leste, perseguirei povos, exterminarei raças. O programa era claro. Os livros de Levi narram a realização desse programa. Não a explicação. No “Mein kampf” os judeus têm todas as culpas em geral, mas nenhuma em particular.

Quando Primo se encontra face a face com o oficial alemão que lhe faz o exame para perceber se é um químico, porque se o é vai para o laboratório e fica melhor, os dois olham-se de perto, e Levi imagina que o outro pensa assim dele: «Este qualquer à minha frente merece com certeza morrer, mas vejamos primeiro se contém alguma coisa de útil». O lugar em que se observa se os condenados à morte têm alguma coisa de útil é o campo de concentração.

A imensa máquina do mal descrita por Levi servia para três coisas: punir, produzir, eliminar. É um mundo sem Deus, em que se sente fortíssima a exigência de Deus. Levi também a sentia?

Olho para os locais que falam da morte de Levi, e experimento dor. Muitos dizem «suicida», mas o suicídio é a recusa da vida. Levi morreu sábado, e na terça-feira seguinte chegou-me uma sua carta, repleta de projetos e de esperanças. Se me chegou terça-feira, é porque foi posta nos correios no sábado, e não é possível que alguém envia uma carta cheia de vida, e depois vá para casa e se lance para baixo.

A minha conversa com ele conclui-se com a sua frase: «Há Auschwitz, portanto não pode haver Deus», mas depois ele acrescentou duas linhas com a caneta: «Não encontro uma solução para o dilema. Procuro-a, mas não a encontro», e parece-me evidente que queria ter aberta a questão, «não encontro Deus, mas procuro-o». Fechar a sua biografia com «era ateu» significa não o respeitar. Respeitemo-lo.


 

Ferdinando Camon
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 15.07.2019 | Atualizado em 15.07.2019

 

 
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