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Retiro de diários gráficos "O espiritual no desenho": Os vendilhões

Depois, entrando no templo, começou a expulsar os vendedores. E dizia-lhes: «Está escrito: A minha casa será casa de oração; mas vós fizestes dela um covil de ladrões.» Ensinava todos os dias no templo, e os sumos sacerdotes e os doutores da Lei, assim como os chefes do povo, procuravam matá-lo. Não sabiam, porém, como proceder, pois todo o povo, ao ouvi-lo, ficava suspenso dos seus lábios! (Lc 19, 45-48)

Li há dias, e impressionou-me muito, que, quando Gandhi morreu, os bens materiais que deixou valiam menos de dois dólares. Voltei a ler para verificar se me tinha enganado: menos de dois dólares. Os bens espirituais e civis que legou ao futuro tinham, porém, uma dimensão incalculável. O que nos enfraquece não é, de facto, a escassez, mas a sobreabundância; não é a indagação, mas o ruído de mil respostas fáceis que conflituam; não é a frugalidade, mas sim o desperdício. O que nos enfraquece é não termos escutado até ao fim o que está por detrás da fome e da sede, da nossa urgência e da nossa fadiga, do atordoamento, dos medos ou da abstenção! (José T. Mendonça in Expresso, 4.1.2014)

Com estes dois textos como ponto de partida, como é que se pode chegar ao desenho? Temos de entrar num templo? Expulsar vendilhões? Despojar-nos de bens materiais? O exercício era simples: escolher um local confuso, cheio de elementos, vendedores, sobreabundância e ruído visual. Depois disso lançarmo-nos ao desafio de o desenhar tentando que nada escapasse. Colocar os mil pormenores fáceis que conflituam, tentar compreender o caos para, a partir daí, procurar a depuração expulsando o covil de ladrões, o desperdício, o que não é essencial.

ImagemMário Linhares - Cortina d’Ampezzo, Itália (2014)

Escolhi para desenhar esta rua cheia de tudo. A torre da igreja ao fundo, um pequeno largo do lado esquerdo com bancos e uma esplanada, pessoas, candeeiros, muitas janelas, calhas, montras, a montanha ao fundo e tantas outras coisas que não percebia mas que fiz questão de desenhar. Este era, para mim, o covil de ladrões a que Jesus se referia. Sinto que queria desenhar tudo, mas na verdade não conseguia compreender nada. Era preciso selecionar melhor. Varrer alguns elementos superficiais.

Passei então para o segundo desenho, o do meio da página, a torre ficou maior - quis dar-lhe a importância que não tinha - e limpei o melhor que podia, embora com a sensação de que estava a perder demasiada informação. Percebo agora que estava com medo da limpeza. Limpar e deixar apenas o fundamental é, talvez, demasiado perigoso para nós mesmos, já que não se pode camuflar nada. As linhas que ficam têm de estar certas. Não contente com a minha falta de coragem para a limpeza, avancei para o terceiro desenho, focando-me apenas nas linhas limite das volumetrias e foi aqui que percebi que a montanha do fundo não era apenas uma montanha, mas um conjunto de cordilheiras. Escrevi logo no desenho anterior a frase «todos os dias». Jesus ensinava todos os dias no templo, talvez por isso se tenha apercebido que a sua casa estava transformada num covil de ladrões. Este fazer quotidiano convida-nos a um olhar mais sábio e depurado. Foi por insistir que me dei conta que as várias cordilheiras estavam lá desde o início, até quando eu queria desenhar tudo com o máximo detalhe. Queria tudo e não vi nada. Fiquei como que «suspenso dos seus lábios»…

ImagemMário Linhares - Cortina d’Ampezzo, Itália (2014)

Virei rapidamente a página e percebi que a minha atenção devia concentrar-se apenas nas montanhas. Estudei as várias cordilheiras como se as tivesse a dissecar. Esqueci a arquitetura e tudo o resto. Como tinha sido possível deixar escapar tamanha beleza lá do alto?

Feita a dissecação e não contente com o resultado - faltava o ambiente, a atmosfera, o ar limpo, embora não tivesse a certeza de como se poderia desenhar isso - avancei para mais estudos. Tirei as aguarelas, misturei as cores, espalhei água no papel uma, duas e ainda outra vez até chegar ao meu último desenho, a minha depuração final: a montanha de valor incalculável perante a escassez de meios.

De facto, quando olho para o primeiro desenho e para o último, sinto mesmo que «o que nos enfraquece não é a escassez». Este último desenho não fica nada a dever ao primeiro, antes pelo contrário. O processo foi doloroso, insistente, mas recompensador.

 

Mário Linhares
Texto redigido após a realização do Retiro de Diários Gráficos em Veneza
© SNPC | 13.05.14

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