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Leitura: "Sermão da montanha - Caminho de um peregrino"

Imagem Capa (det.) | D.R.

Leitura: "Sermão da montanha - Caminho de um peregrino"

O cardeal patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, apresenta hoje a obra "Sermão da montanha - Caminho de um peregrino", textos do padre Ricardo Neves (1972-2015) publicados pela Lucerna, chancela da Principia Editora.

«É frequente a referência aos dois braços da Cruz, vertical e horizontal como são. Frequência reveladora da verdade que transporta, podemos acrescentar. Todavia, do dizer ao saber o caminho pode ser longo. Algumas vezes não dura muitos anos, mas percorre sempre uma grande distância interior. Talvez a maior de todas, que vai da cabeça ao coração, como também há quem diga», escreve o prelado, no prefácio.

O padre Ricardo Neves acompanhou, durante mais de uma década, os candidatos ao sacerdócio no seminário de S. José de Caparide, da diocese lisboeta, de que foi vice-reitor, tendo sido mais tarde nomeado pároco do Estoril, concelho de Cascais, missão que desempenhou até morrer.

«Agradeço a feliz iniciativa de recolher, transcrever e editar algumas das catequeses do Padre Ricardo neste livro que tanto bem fará aos seus leitores. Não terá o rosto que assim se exprimia, senão na recordação, na imaginação, ou na fotografia. Mas o que diz e o modo como o dizia irrompem em cada linha do discurso transcrito», sublinha D. Manuel Clemente, no texto que intitulou "Uma vida em forma de cruz".

O «traço horizontal» da vida do sacerdote «cruzava-se ao meio com o vertical que vai da Terra ao Céu, como o descobrira em Cristo. Por isso, a conversa podia passar rapidamente do agradável ao profundo, do jocoso ao sério, do episódico ao mais duradouro. Porque nele os dois braços não se sobrepunham, cruzavam-se realmente, fazendo de cada momento uma ocasião de outra coisa, do aquém ao além e vice-versa», aponta.

«Neste livro, encontramos muitos exemplos do que vai dito. Frases como "no meio do sofrimento, serão consolados aqueles que se abrirem a Deus e ao caminho que Ele traça no meio desse mesmo sofrimento" (p. 30); "Deus sofre onde sofrem as pessoas" (p. 63); "Deus prega no mundo uma estaca de amor" (p. 106) estão impregnadas da sabedoria da Cruz», prossegue D. Manuel Clemente, que conheceu o jovem Ricardo nos seminários do patriarcado.

O cardeal-patriarca realça que o sacerdote «encontrou em Cristo uma possibilidade total, que agora plenamente vive»: «Encontrou terra firme, "porque esta nova terra não é um sítio, é uma forma de vida" (p. 32). Tudo num encontro em que a vida lhe coube inteira, fosse aonde fosse, seminário, paróquia ou hospital: "o Reino é a construção da vida humana a partir da relação com Jesus" (p. 168)».

O volume, de que apresentamos seguidamente um excerto, reúne as 25 catequeses, sobre o Sermão da Montanha, apresentadas entre 2012 e 2014 ao chamado «Grupo de Peregrinos» da paróquia de Santo António do Estoril. As intervenções foram gravadas e foram posteriormente passadas à forma escrita pelas Irmãs Concecionistas do mosteiro da Imaculada Conceição de Campo Maior, «com as quais o autor tinha uma profunda vinculação», lê-se na introdução.

A sessão de apresentação realiza-se às 21h15, no auditório da igreja da Senhora da Boa Nova (R. Campo Santo, 441, Estoril).

 

As Bem-Aventuranças: A Boa Nova do Reino
P. Ricardo Neves
In "Sermão da montanha - Caminho de um peregrino"

As Bem-Aventuranças são, no conjunto do Sermão da Montanha, uma espécie de pórtico de entrada. Um pórtico que abre a porta, abre a riqueza do Sermão da Montanha e ao mesmo tempo lhe sugere a sua orientação. E o que me parece importante nesta meditação das Bem-Aventuranças? Penso que interessa mais interiorizá-las do que debatê-las, pôr em perspetiva o que elas valem ou não valem, o que significam ou não significam… Mais do que isso, interessa que, à medida que se vai repetindo, que se vai insistindo na bem-aventurança, cada um possa pô-la no coração. É esse o objetivo: que estas Bem-Aventuranças fiquem uma a uma dentro do nosso coração de tal maneira que enformem os nossos sentimentos e os nossos movimentos interiores. Para além do exercício racional de perceber o que elas significam, de extrair as suas implicações, era bom repeti-las, de modo a que ficassem dentro, como uma espécie de elã que desenvolva toda a nossa interioridade. Fez-me lembrar logo que, quando andávamos na escola, quando eramos miúdos, repetíamos para saber de cor. Sabem o que quer dizer «saber de cor»? «Saber de cor» é uma expressão latina que significa «saber de coração». É isso que se pretende. Era bom que a repetição que vamos fazer, a insistência que vamos fazer na bem-aventurança, no-la pusesse não na memória intelectual, mas na memória afetiva, quer dizer, na sede do coração.

Não obriguem as Bem-Aventuranças a justificar-se. Elas não têm de se justificar, elas não têm de certificar, mostrar um certificado de qualidade; elas são uma proposta de caminho. Não gastem energias a tentar que elas se justifiquem para terem lógica dentro da vossa cabeça, porque não terão lógica dentro da vossa cabeça. Elas são uma realidade teologal, de Deus, e, portanto, aquilo que é importante é cada um deixar que elas se imponham ao coração – deixem-me dizê-lo assim, desta maneira mais violenta… porque é disso mesmo que nós precisamos. Gastar energias a debatê-las, compreendê-las, para que, depois de muito claras, então «me entrem pela cabeça adentro e me façam não sei o quê…» é só conversa, porque serei eu a tentar modelá-las à minha maneira. Aquilo que é necessário é que elas se imponham como são, e eu me adeque, quer dizer, me configure a elas.

As Bem-Aventuranças, quer na composição de Jesus, quer na maneira como São Lucas e São Mateus as trabalharam, foram escritas em cima de um texto muito especial – Isaías 61 –, que é um texto messiânico sobre a missão do profeta; mas o que ele anuncia é uma das ações do Messias e a instauração do Dia do Senhor. O texto é muito bonito e nós já o conhecemos: «O espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu. Enviou-me para levar a boa nova aos que sofrem, para curar os desesperados, para anunciar a libertação dos exilados e a liberdade aos prisioneiros, para proclamar um ano da graça do Senhor, o dia da vingança da parte de Deus, para consolar os tristes, para coroar os aflitos de Sião, para mudar a sua cinza em coroa, o seu semblante triste em perfume de festa e o seu abatimento em cânticos de alegria. Então serão chamados terebintos de justiça, plantação do Senhor para sua glória» (Is 61, 1-3).

Este texto do profeta Isaías fala, tal como muitos outros, do tempo messiânico, do tempo em que o Messias virá e voltará a instaurar o Reino prometido de Deus, que é uma reposição da terra prometida. É curioso que, na história do povo de Israel, há sempre estes segmentos. Já com Abraão: Deus prometeu a Abraão uma terra boa e deu-lha. Depois, quando estavam no Egito, prometeu-lhe uma terra boa (outra vez!), uma terra onde cresce a abundância; e eles saíram do Egito e chegaram à terra prometida.

Portanto, todas as referências de futuro, quanto ao tempo messiânico, são referências a que se instaurará um tempo num sítio que será cheio de abundância, de alegria, de festa, de paz. Um tempo em que tudo aquilo que já foi vivido nestas «terras prometidas» ao longo da história de Israel se completará. É isso que o profeta Isaías está a anunciar: Deus promete e compromete-Se com a felicidade do seu povo. E as Bem-Aventuranças tratam disto. Elas não são um conjunto de sentenças moralistas, mas o anúncio de uma novidade maravilhosa: o Reino de Deus. Esse tal tempo da felicidade está a aproximar-se, está próximo, está no meio de nós e, portanto, já está a acontecer. As Bem-Aventuranças querem anunciar isso. É o tempo do Reino de que Jesus já tinha começado a falar nos capítulos anteriores, no início da sua pregação; o que Ele está a dizer é que o Reino de Deus está próximo. O Reino de Deus é um acontecimento que já está a desenvolver-se e, por isso, aqueles que o acolhem, aqueles que o vivem desenvolvem atitudes e formatos novos de vida.

Na simbologia bíblica, esta vinda do Reino trata sempre de um rei. A vinda do rei nas profecias messiânicas não é o anúncio de uma terra nova, porque eles já sabiam onde era a terra, aquela que estava consolidada desde sempre, onde tinham entrado e de onde tinham saído várias vezes. A grande questão era o anúncio do rei. Tanto que, quando Jesus diz no Evangelho que «o Reino está próximo, o Reino já está no meio de vós», está a referir-Se a Si. O Reino no meio de vós é o Rei no meio de vós! E o Rei no meio de vós o que é? Porque é que produz o Rei? Porque o Rei estabelece relações e catalisa relações e formas de vida que desenvolvem um Reino, um novo Reino. Na simbologia bíblica é isto que está aqui em jogo: a vinda do Reino é a vinda de um Rei que vai exercer o seu poder e a sua justiça. Este Rei, dono do Reino, instaurador do Reino, exerce um poder, uma justiça, e esse poder – e esta é que é a novidade – está fora das métricas, dos ritmos do mundo. A justiça deste Rei exerce-se dentro do mundo mas com umas métricas, com uns ritmos diferentes dos do mundo. Por isso é que pode anunciar a consolação no meio do choro, pode anunciar a propriedade do Reino de Deus para os que são mansos e por aí adiante… Pode associar realidades que parecem, segundo os critérios do mundo, completamente incompatíveis. Por exemplo, quanto aos mansos, é muito sugestivo, porque a lógica do mundo é que quem tem poder e tem força é que é dono, é que é proprietário… A lógica do Reino de Deus é outra! O manso é que é proprietário do novo Reino, de uma forma diferente.

Neste sentido, o Rei, Jesus, exerce esse poder para conduzir à realização definitiva. O Rei não está a trabalhar para a mera constituição temporal de um reino, está a trabalhar para uma meta muito mais longa. Está a trabalhar para uma meta que será a última, e aqui a última não é a que não tem mais sequência, é aquela que será a mais completa de todas, onde tudo se completará. É por isso que, como dizem algumas das Bem-Aventuranças, os débeis, os injustiçados, os que sofrem, os que choram, os que são vítimas de violência podem ter esperança, porque estão sob um poder, o de Jesus ressuscitado, Senhor do novo Reino que trabalha para a consumação definitiva e não para a circunstância histórica do deve-haver que cada etapa da História tem.

Um segundo elemento que acho importante para perceber as Bem-Aventuranças é que elas acontecem na pessoa de Jesus. Dito de outra forma: elas são o espelho da vida, do percurso e da missão de Jesus. Portanto, quando as proclama, Jesus, de certa maneira, descodifica o seu percurso e a sua missão. A forma como Ele exercerá a sua missão e como a definirá está ali. Vemos que, ao longo de todo o itinerário de Jesus, é Ele quem realiza a bem-aventurança da misericórdia, a bem-aventurança da mansidão, a bem-aventurança do choro e da perseguição, a bem-aventurança da pobreza… Se é em Jesus que se consubstanciam as Bem-Aventuranças, é também a partir de Jesus que se pode viver as Bem-Aventuranças. Se elas são o espelho da vida de Jesus, só na comunhão viva com Jesus é que elas me possuem, me constituem como pessoa. Especialmente as mais radicais, as mais contraditórias. Por exemplo, a bem-aventurança do choro, «bem-aventurados os que choram porque serão consolados». Então como é que é? Basta chorar para ser consolado? É assim? Não. A chave da bem-aventurança está na comunhão com Jesus. Os que choram em comunhão com Jesus, os que choram procurando a comunhão com Jesus, os que se abrem, no seu sofrimento, à comunhão viva com Jesus, serão consolados, encontrarão um patamar que os fará ultrapassar, relativizar e transformar o sofrimento em que estão.

Por fim, queria acentuar que as Bem-Aventuranças são um anúncio de alegria e de felicidade. O seu nome quer dizer isso: «felizes », «bem-aventurados». «Bem-aventurados» era o título que se dava às pessoas que tinham recebido uma bênção, que tinham recebido uma graça especial, um presente especial de Deus, que tinham sido especialmente agraciadas pela ação de Deus. Como é que posso dizer «bem-aventurados os que choram», «bem-aventurados os que são perseguidos»? O que eu estou a dizer não é isso. O que eu estou a dizer é que é bem-aventurado aquele que vive em comunhão com Cristo, na sua situação de sofrimento, porque ele encontra aí, na comunhão com Cristo, uma alegria que é impossível ter em qualquer outra circunstância. Este elemento é importantíssimo, porque estas bem-aventuranças que falam sobre o sofrimento, sobre o choro, a perseguição, não são uma alienação, não são uma técnica budista de alienação («eu relativizo o assunto, pairo por cima da coisa e isto não me toca…»). Não. O que está dentro da bem-aventurança é que é feliz aquele que é agraciado com a comunhão com Jesus, com a união viva a Jesus, a vida segundo Jesus, e esse, quando experimenta o choro, a perseguição, será consolado, encontrará a paz. Pelo contrário, se vive o seu choro fechado sobre si, o seu sofrimento fechado sobre si, não encontrará consolo, porque não tem capacidade para se regenerar.

 

Publicado em 29.06.2016

 

Título: Sermão da Montanha - Caminho de um peregrino
Autor: P. Ricardo Neves
Editora: Principia (Lucerna)
Páginas: 192
Preço: 11,90
ISBN: 978-989-880-924-7

 

 
Imagem Capa | D.R.
Não obriguem as Bem-Aventuranças a justificar-se. Elas não têm de se justificar, elas não têm de certificar, mostrar um certificado de qualidade; elas são uma proposta de caminho. Não gastem energias a tentar que elas se justifiquem para terem lógica dentro da vossa cabeça, porque não terão lógica dentro da vossa cabeça
É o tempo do Reino de que Jesus já tinha começado a falar nos capítulos anteriores, no início da sua pregação; o que Ele está a dizer é que o Reino de Deus está próximo. O Reino de Deus é um acontecimento que já está a desenvolver-se e, por isso, aqueles que o acolhem, aqueles que o vivem desenvolvem atitudes e formatos novos de vida
Os débeis, os injustiçados, os que sofrem, os que choram, os que são vítimas de violência podem ter esperança, porque estão sob um poder, o de Jesus ressuscitado, Senhor do novo Reino que trabalha para a consumação definitiva e não para a circunstância histórica do deve-haver que cada etapa da História tem
Vemos que, ao longo de todo o itinerário de Jesus, é Ele quem realiza a bem-aventurança da misericórdia, a bem-aventurança da mansidão, a bem-aventurança do choro e da perseguição, a bem-aventurança da pobreza… Se é em Jesus que se consubstanciam as Bem-Aventuranças, é também a partir de Jesus que se pode viver as Bem-Aventuranças. Se elas são o espelho da vida de Jesus, só na comunhão viva com Jesus é que elas me possuem, me constituem como pessoa
Estas bem-aventuranças que falam sobre o sofrimento, sobre o choro, a perseguição, não são uma alienação, não são uma técnica budista de alienação («eu relativizo o assunto, pairo por cima da coisa e isto não me toca…»). Não. O que está dentro da bem-aventurança é que é feliz aquele que é agraciado com a comunhão com Jesus, com a união viva a Jesus, a vida segundo Jesus, e esse, quando experimenta o choro, a perseguição, será consolado, encontrará a paz
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