Leitura
Subversivo há 2013 anos
1. Não sei de ninguém que conheça o território português como Duarte Belo. Arquitecto de formação, fotógrafo incansável, passou os últimos 20 anos a construir um arquivo que hoje ronda um milhão de imagens da paisagem natural e construída com a minúcia das cartas militares. É um legado assombroso para a «identificação de um país», se posso usar a expressão de José Mattoso, um dos seus mestres, a par de Orlando Ribeiro. De carro e a pé, por trilhos, rios, montanhas, tantas vezes acampado em lugares ermos, poucos serão os quilómetros quadrados de Portugal que o Duarte não pisou.
2. Deste arquivo-contínuo já resultaram vários livros, a começar por "O Sabor da Terra", em 1997. Vários outros estarão por existir até que o fotógrafo pense num recorte, um ângulo. Foi o que aconteceu com "Os Rostos de Jesus - Uma Revelação", lançado há dias na Capela do Rato, em Lisboa. Nos seus périplos, sobretudo pelo Norte, e em particular no Minho, o Duarte tinha fotografado muitas dezenas de cruzeiros em granito. Sabia que esse conjunto era extenso e talvez pudesse dar um livro, mas só ao debruçar-se sobre as imagens viu o rosto que geralmente não se vê, por estar demasiado alto, lá no cimo da cruz. Zoom a zoom, o espectro de Jesus concebido pelos homens foi-se revelando: era uma escultura renascentista, um gnomo infantil, um totem arcaico, e por aí fora, nenhum igual a outro. Vendo os 95 rostos escolhidos para o livro, se algo os une é serem uma espécie de «seresdespanto», como diria o poeta amazonense Vicente Cecim (e Duarte, que em geral não fotografa pessoas, também fotografou a Amazônia dos «seresdespanto» quando foi atrás dos passos de Ferreira de Castro, levando consigo esse que é um dos livros mais formidáveis da literatura em português, "A Selva").
3. No fim de "Os Rostos de Jesus" há um mapa. É aí que se vê como a concentração de cruzeiros incide no Minho e abaixo do Tejo se conta pelos dedos de uma mão. O fotógrafo, que os observou de longe e ao perto, escreve no texto final: «Esta é a face de todos nós, ou uma cosmogonia de ser humano, é perplexidade e medo perante o desconhecido, o fascínio exacerbado perante a Natureza e o próprio homem, que todos os dias se descobre e se revela, se oculta, se esconde.» Em suma: «Talvez mais do que um ser divino, esta é, na sua imensa diversidade, a representação possível de nós próprios.»
4. Para o texto de abertura, Duarte convidou José Tolentino Mendonça, poeta, padre e teólogo, deixando-o livre para o registo que preferisse. Tolentino escreveu sobre os vários rostos de Jesus que emergem das interpretações contemporâneas. É uma súmula surpreendente para uma não-crente como eu: na intersecção de todas as leituras, vejo sobretudo um enigma subversivo. A pertinência política da ideia que é Jesus projectando-se sobre 2013.
5. Só «a polifonia» de interpretações permite captar Jesus, diz Tolentino. «O que é o seu rosto? O rosto de um simples judeu? De um judeu marginal? De um profeta escatológico? De um revolucionário social? De um sábio itinerante, igual a tantos outros que o mundo greco-romano conheceu? De um homem santo? De um camponês do Mediterrâneo?» Então, uma a uma, o texto percorre as diversas hipóteses, expondo os argumentos.
6. O historiador judeu Géza Vermes, por exemplo, sustenta que «Jesus não chegou verdadeiramente a abandonar os esquemas mentais e religiosos do judaísmo do seu tempo». Não queria «"romper" com Israel, nem "substituí-lo", criando uma nova religião», apenas reformar o judaísmo, «numa linha carismática, mesmo se um pouco ingénua». Já o teólogo católico John P. Meier vê Jesus como «um judeu marginal», não «o simples intérprete da Tora ou das tradições dos Pais, mas sim um protagonista que se tornará intrigante, para todos, pelo modo como se apresenta», atribuindo-se uma autoridade própria, retomando «a Lei, mas à sua maneira e sem lhe parecer submetido». O perito em estudos bíblicos E. P. Sanders defende que Jesus foi um profeta escatológico, «o último enviado antes da instauração do Reino de Deus», operando curas e exorcismos que inscreviam esse Reino no presente. Para uma visão de Jesus como um reformador social, Tolentino cita o académico americano Richard Horsley e o teólogo protestante alemão Gerd Theissen, explicando que «o contexto da actuação de Jesus foi o da ocupação, levada a cabo pelos romanos, que, à época, tinham praticamente colonizado o território judaico». Jesus «ter-se-ia oposto à dominação romana e ao colaboracionismo da aristocracia sacerdotal». Horsley enquadra-o mesmo num «banditismo social», aliado do descontentamento dos camponeses explorados, empenhado numa «conversão social»: «Todos os recursos de Jesus são colocados na construção de uma alternativa.» E naturalmente as autoridades viam-no como subversivo, alguém que não respeitava os limites da terra santa, nem o sábado, nem o jejum, nem o mandamento de não tocar os mortos, e ainda convivia com doentes, impuros, pecadores.
7. Há investigadores que vêem em Jesus um sábio, sendo que na definição bíblica a sabedoria é uma entidade feminina, portanto «designar Jesus como bandeira da sabedoria divina corresponde a um gesto insurrecional: incluir o feminino como chave fundamental para a aproximação a Jesus». Outros têm a percepção de «um homem santo», «uma pessoa que experiencia o poder de um outro reino, o poder do Espírito», ou seja, «um místico», mas «comprometido na crise histórica do seu povo», sem dúvida fundador de um movimento de renovação dentro do judaísmo, com actos radicais como «a integração dos párias». Tudo isto, sintetiza Tolentino, «atesta uma identidade definida pela própria relação com Deus, em total liberdade, e não pelos padrões culturais». Um professor nórdico, Halvor Moxnes, propõe um Jesus que «penetrava na área disputada da autoridade, fosse ela qual fosse», sempre provocando «a que se rompesse com os limites». Mesmo na visão de Jesus-camponês-do-Mediterrâneo, ele aparece como «um outsider», «empenhado na ressocialização dos excluídos sociais de todo o tipo».
8. O que me fica deste elenco de hipóteses é a figura de um inconformista, claramente um não-conservador, abrindo-se a todos sem exclusão, alguém que busca a mudança de forma mais ou menos radical, entregando para isso a vida. Como a partir desta figura se construíram e constroem até hoje, no amplo interior do cristianismo, estruturas tão conservadoras, repressivas e excludentes é um mistério exclusivamente humano. Jesus, em qualquer das hipóteses enunciadas por Tolentino, parece-me aquele que não baixa a cabeça. O seu lugar é o contrapoder, aspiração permanente à liberdade. Teologia da Libertação é quase uma redundância: como é que a teologia pode não ser de libertação? Eu estive em Nazaré, Galileia, hoje uma cidade palestiniana dentro do Estado de Israel, e estive em Belém, Cisjordânia, hoje uma cidade palestiniana em território ocupado por Israel. Se Jesus está vivo por lá, é em cada cabeça levantada.
As fotografias de Duarte Belo que acompanham este texto estão incluídas no livro "Os rostos de Jesus", tendo sido obtidas na Capela do Rato, em Lisboa, onde se encontram em exposição e venda.
Alexandra Lucas Coelho
In Público, 17.11.2013
29.11.13