Pré-publicação
"Uma casa aberta a todos - O novo patriarca fala dos grandes temas"
"Uma casa aberta a todos - O novo patriarca fala dos grandes temas" é o livro que a Paulinas Editora lança a 7 de julho, dia em que D. Manuel Clemente entra solenemente no Patriarcado de Lisboa, com uma missa na igreja do Mosteiro dos Jerónimos.
O Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura oferece a pré-publicação de alguns excertos de uma obra composta de entrevistas conduzidas pelo diretor da Agência Ecclesia, Paulo Rocha, um "dicionário" com as posições de D. Manuel Clemente sobre várias questões relacionadas com a Igreja e a sociedade, bem como fotografias do prelado, desde a infância à atualidade.
Da infância à vocação
A minha avó materna viajou neste mundo mais de 100 anos e chamava-se Aurora; de Lisboa para o Porto e depois novamente, longamente, no sul... (…)
Morando numa casa cheia de recordações geracionais, não gostava de velharias, nem se entretinha com elas, aderindo de bom grado às novidades do tempo, viajando com o século – ou entre séculos –, pois nascera em 1890 e falava de D. Carlos e D. Manuel II, Afonso Costa ou Sidónio Pais, como nós falamos de personagens de agora. Mas sem saudades pesadas, porque a viagem continuava.
A minha mãe nasceu no Porto e foi cedo para o sul onde eu nasceria, ia ela pelos trintas. Chegou aos 95 e chamava-se Sofia. (…)
Lembrava espontaneamente episódios históricos. Sobretudo nossos, pois era medularmente patriota, sem ser minimamente chauvinista, bem pelo contrário. (…)
Já nos seus oitenta, aí foi ela contente, como a revejo em fotografias que vão da Noruega à Índia... E ai dos mais novos, bem mais novos até, que não lhe acompanhassem a passada.
Recorde-nos os tempos do Oeste, de Torres Vedras. Que memórias guarda desses anos?
Muito boas, muito boas!... Antes de mais, memória muito grata à família em que nasci e onde cresci. Depois, à comunidade paroquial, excelente, muito próxima, muito calorosa, muito integradora. E também à escola primária, onde aprendi as primeiras letras. (…)
Recordo a adolescência, o fim da catequese (que, naquela altura, na primeira metade dos anos 50, eram 4 mais 1, de perseverança); a iniciação na Ação Católica...
Deveria ter 8 ou 9 anos, estava a ajudar à missa (nessa altura chamava-se «menino de coro», não acólito), presidida pelo padre da minha paróquia, o padre Joaquim Maria de Sousa, de quem tenho tão boa recordação! E lembro-me como se fosse hoje. Até me lembro do sítio na sacristia, de estar a vê-lo a tirar as vestes sacerdotais e dizer: eu quero ser como o padre Joaquim! Lembro-me perfeitamente desse momento.
Ficou essa recordação que, de vez em quando, voltava. Lá em casa, sobretudo a minha mãe, sempre dizia: «Primeiro, forma-te; depois, vês!» E foi o que acabou por acontecer!
O escutismo no Oeste foi dinamizado também por si?
Sim, quando começou na Região Pastoral do Oeste, que ia de Mafra a Alcobaça, onde não havia escutismo católico até essa altura, a meados dos anos 60. Foi a partir de Torres Vedras, e de um agrupamento que se fundou no Seminário de Penafirme, que começámos a fazer proliferar iniciativas escutistas desde Alcobaça até Mafra. Hoje são quase meia centena de agrupamentos por onde, em meio século, passaram milhares de homens e mulheres que foram marcados – alguns muito bem marcados – por essa espiritualidade do escutismo, que costumo chamar «A Igreja acampada». (…)
A minha espiritualidade é também a de uma Igreja acampada e com a tenda itinerante.
Do que aconteceu entre a adolescência e a juventude, absolutamente normais para qualquer jovem estudante dos anos 60 que fosse católico e que andasse ligado à paróquia, ao escutismo, à Ação Católica, etc., o que acabou por ir prevalecendo foi a concentração num tipo de atividades que tem a ver com a Igreja, com fé, com conversas de assuntos religiosos. E foi isso que, depois do curso universitário, me levou ao seminário. Porque também não tinha disponibilidade interior para outro tipo de vida.
Significativamente e desde muito cedo, a dimensão histórica das coisas esteve presente. Nasci numa família com alguns parentes idosos, onde se contavam episódios pessoais que entroncavam na história nacional, desde meados do século XIX. E, em geral, as conversas precediam o presente com alusões mais antigas.
Creio que este foi um fator determinante, para que o sentido do tempo e do devir se tornasse medular no meu modo pessoal de ser e de sentir.
No curso universitário, a ausência de referências ao catolicismo marcou-o?
Sobretudo o facto de achar que, quando se falava de épocas mais contemporâneas do mundo, quer na universidade quer no diálogo com colegas e amigos, a componente católica e de fé entrava pouco, como se não existisse. O que contradizia absolutamente o que era a minha vivência. O desfasamento entre a vivência católica e o pouco reflexo cultural que parecia ter marcou-me. E perdurou... Quando fiz o curso de Teologia, orientei muito o meu trabalho de investigação e de lecionação no âmbito da História da Igreja, nomeadamente em Portugal, para tentar preencher, quer pela palavra quer pela escrita, esse vazio da componente católica na contemporaneidade portuguesa.
Entrei no seminário num tempo muito curioso: quando toda a gente estava a sair de lá! Estávamos no princípio dos anos 70. Lembro-me de ter tido um primeiro contacto com o Seminário dos Olivais, em 1972, e, depois, entrei efetivamente, em 73. O Seminário, poucos anos antes, tinha mais de 100 alunos. E, naquela altura, estavam 8, e passámos a ser 11. Havia também muitos abandonos sacerdotais, nessa ocasião.
Na Faculdade de Teologia, cedo começou a lecionar História?
Porque trazia a História muito «fresca». E como o meu trabalho final na Licenciatura em História, na Faculdade de Letras, tinha sido sobre História Medieval, o professor António Montes Moreira, que mais tarde veio a ser Bispo de Bragança-Miranda e que dava essas aulas, pediu-me para dar a parte portuguesa da lecionação da História geral que ele fazia. Acabei por ser até professor dos meus colegas, nessas aulas. Comecei muito cedo, há 40 anos!
Nomeação para Patriarca de Lisboa
Aceito com naturalidade e sobrenaturalidade, como as coisas vão aparecendo. Vou repetindo para mim e desde há muito tempo que a única maneira de estarmos na vida é levarmos a sério o que Jesus manda: «Não vos preocupeis com o dia de amanhã, basta a cada dia a sua preocupação» (Mt 6,34). E também com a liberdade interior que esta atitude dá e à qual me tento converter: quando não somos nós a escolher mas outros, concretamente, a Igreja que nos pede para assumirmos missões, isso dá-nos a liberdade que não teríamos caso tivéssemos sido nós a vincular o destino.
Vim para Lisboa estudar com cerca de 13 anos, mas indo frequentemente à minha terra. Fui ordenado padre em Lisboa, onde exerci o sacerdócio durante 20 anos, depois o episcopado durante 7, com as funções que me foram cometidas e que tentei desempenhar como soube e como pude. Com certeza que nunca acertando no 20, nem no 15, mas fazendo o possível!
Agora volto a uma diocese que, como dizia e é verdade, conheço. Em 6 anos as coisas mudam um tanto. Graças a Deus, fui vendo que Lisboa teve várias ordenações sacerdotais e diaconais nestes anos. Vou conhecer esses padres e diáconos, assim como outros que vieram de vários países e estão ao serviço do Patriarcado.
O papel do Bispo é estar muito atento a tudo aquilo que o Espírito vai suscitando, e não digo trazendo para a ribalta, mas aproveitando, integrando, chamando. Por isso, o seu papel, mais do que ser uma posição de topo, é uma posição de centro (em termos evangélicos uma posição de serviço, como Jesus se apresenta quando lava os pés aos discípulos). O que requer é uma atenção constante à ação do Espírito, porque essa é a sua maior oportunidade.
Como costumo dizer (e as pessoas que conversam mais comigo já o ouviram muitas vezes), o programa da Igreja está 99% feito: estar nas comunidades cristãs, onde acontece a formação através da oração para o louvor a Deus como Cristo ensina, da prática litúrgica onde se exercita, da escuta da Palavra de Deus e da ação sociocaritativa. E estar nas famílias, com os pais a educar os filhos... Esse programa está feito. Outra coisa é concretizá-lo em Lisboa, no Porto, Algarve ou Açores. É sempre a mesma essência que se traduz depois nas realidades concretas. Não vamos sobrecarregar as comunidades com outro programa em cima de um que já têm e que devem cumprir prioritariamente!
Há uma regra básica da pastoral, seja numa diocese, paróquia ou onde for: no primeiro ano não se muda nada! Temos de tomar conta da realidade e temos de deixar que a realidade tome conta de nós. Portanto, o que devemos é ir com disponibilidade para conhecer. No meu caso, voltar a conhecer e conhecer o que existe de novo; ouvir, ouvir muito as pessoas, o que fazem, o que gostariam de fazer, o que não podem fazer; e depois, em conjunto e exercitando a comunhão eclesial em todas as instâncias e níveis, ir tomando decisões que se mostrem mais afins ao que se pretende. (…)
Lançar iniciativas só por arranques de vontade, por muito que sejam bem-intencionadas, só isso não as faz eclesiais. Temos de as maturar, temos de ouvir. E depois, quando é altura de decidir, temos de decidir. Mas não devemos precipitar as coisas sob o risco de serem fogachos.
Eu não vou regressar a Lisboa como de lá parti! Regresso a Lisboa com mais de seis anos de Porto, muito preenchidos por uma Igreja magnífica, onde há gente excelente, leigos, consagrados e clérigos que dão tudo pelo Evangelho, com uma enorme abnegação. Colegas sacerdotes sobrecarregadíssimos de trabalho porque têm várias comunidades, dada a escassez de clero, e não desistem, apesar da idade de alguns – estou a falar de 80 e 90 anos –, o que nos deixa perplexos tal é o entusiasmo e a dedicação que mantêm.
Vou muito preenchido por uma sociedade, a do Porto e a do Norte em geral, em que as pessoas, talvez por estarem historicamente afastadas do poder, andaram mais por si, são capazes de arrancarem com a vida mesmo quando parece que já não há nada a fazer, lançando empresas de todo o tipo; uma malha sociocaritativa e filantrópica imensa, cultural e desportiva; uma população extremamente ativa!
Tudo isto foi para mim uma enorme experiência humana. Eclesial também. E é com ela que regresso a Lisboa.
Tempos novos para a sociedade e para a Igreja
Cada uma das nossas paróquias, associações ou famílias deve viver em acolhimento do outro; desde logo, o acolhimento mútuo, sem deixar ninguém de fora e preocupando-se com os que mais precisam de ser acolhidos e correspondidos, e com os que nos procuram mesmo não querendo, sobretudo agora em tempo de crise, para responder a necessidades básicas; e em missão, levando mesmo a sério a frase final da missa «Ide» em missão, testemunhando lá fora o que se faz dentro.
Nós estamos numa grande mudança de civilização e de cultura, que vai gerar um outro tipo de organização da vida e de partilha de ideias, na qual nos temos de manter como comunidade cristã. Exatamente como comunidade. Por isso, temos de recompor.
Vamos manter o que há e que funciona, e vamos à procura de coisas novas na maneira de nos reconfigurarmos comunitariamente. Sem isso não há experiência cristã, porque o grande ensinamento de Jesus de Nazaré é que Deus é Amor. O próprio Deus é comunicação, como Ele a vive com Aquele a quem chamou Pai.
Sem haver experiência de comunidade, tanto numa família como numa instituição religiosa de qualquer tipo, associação ou movimento, não há experiência cristã. Não há para os cristãos e não há para os cristãos oferecerem ao mundo.
O que é próprio do liberalismo é o acentuar a disponibilidade pessoal: eu escolho, eu quero.
A deriva libertária consiste em fazer isso apenas «porque sim», sem ter de dar satisfações a ninguém, transformando o indivíduo (não a pessoa, porque a pessoa implica a relação), a instância individual em instância única de liberdade, em único critério da moralidade: independentemente de ser homem ou de ser mulher, ser assim ou de outra maneira, escolho agora ser outra coisa e ninguém tem nada com isso. Esta deriva libertária do liberalismo não é o liberalismo autêntico.
Se estamos numa sociedade democrática, as pessoas encontram-se e podem manifestar conjuntamente as suas ideias, apresentando-se mediaticamente na praça pública. Isso é perfeitamente legítimo. Na sociedade democrática é assim.
Mas o essencial não é isso: é o dia a dia, é o comportamento, é o que convence. E o que convence é o que diziam das primeiras comunidades cristãs: «Vejam como eles se amam.» (…) A forma como acontecia entre cristãos causava perplexidade e estranheza. O que é isto? É isso que precisamos de causar agora.
Papa Francisco
Julgo que, quando ficamos admirados, no melhor sentido da palavra, porque as atitudes do papa Francisco efetivamente nos maravilham, vamo-nos apercebendo de que há ali uma vida muito densa e bela, até no relacionamento que tem com as pessoas. O que se está a passar nas audiências de quarta-feira impressiona. Não só pela afluência de gente que é imensa, parecendo sempre domingo, como a entrada e saída parece que nunca mais acaba, porque o Papa parece deter-se junto de cada pessoa, não com cansaço nem com abstração, mas com cuidado. As pessoas sentem isso! E não acontece por acaso!
A Igreja tem de sair. O que tem riscos. Mas é melhor arriscar, porque se trata da própria vida da Igreja no encontro com as pessoas.
Creio que a sua atividade como Bispo de Roma irá nesse sentido. E para o exercício do seu ministério petrino, para continuar o serviço de Pedro na Igreja, isso é muito importante.
O D. Manuel Clemente escolheu para análise o percurso biográfico do papa Francisco. Revê-se neste programa? É o programa para o Patriarcado de Lisboa?
Tenho muita coincidência com as linhas mestras e com as etapas do papa Francisco. Passei grande parte da minha vida ligado a ambientes pedagógicos, quer em colégios, quer em seminários. Depois, essa urgência da evangelização de proximidade, a insistência na pessoa de Jesus Cristo com tudo o que a Igreja tem para oferecer. Subscrevo inteiramente.
O papa Francisco, quando cumprimentou o então Cardeal-Patriarca de Lisboa – agora Patriarca emérito, que eu saúdo muito vivamente, muito cordialmente e muito gratamente –, disse logo: eu quero consagrar-me a Nossa Senhora de Fátima. Com certeza que há aí uma alusão ao facto de ter sido num 13 de maio que o núncio lhe disse
inesperadamente que iria ser bispo.
Quando os sinais são muitos e vão todos no mesmo sentido, muita coisa querem dizer. No caso, o que é que querem dizer? A afirmação de um lugar mariano e marial, da Mãe de Jesus, nestes acontecimentos eclesiais. Concretamente no que ao Papado se refere.
Este olhar positivo sobre a humanidade é muito importante. E é a nossa maior esperança, na situação portuguesa, com tantas dificuldades que se sofrem, e que nós devemos sofrer com quem sofre, há tanta gente que não desiste, que é capaz de andar para a frente, corrigindo o que tem de ser corrigido ou inovando no que tem de ser inovado.
É muito importante que o papa Francisco mantenha, como está a manter e a repetir, essa esperança, que já motivava o cardeal Bergoglio, portanto a mesma pessoa.
Para nós, católicos latinos, o que foi sempre a relevância que os nossos irmãos protestantes deram à Palavra de Deus é importante; aquilo que os nossos irmãos da tradição oriental grega deram à vida espiritual, aos dinamismos do Espírito na conversão de cada um, é importante.
Temos de recriar uma unidade que inclua tudo o que o Espírito foi dizendo às Igrejas. Essa abertura do papa Francisco à reconstrução ecuménica é muito relevante.
Portugal e os portugueses
A estabilidade democrática tem tensões. Faz parte da vida social, cultural, política, haver debate, haver tensão. Mas não nos esqueçamos que somos pessoas com outras pessoas. E que, antes das ideias que se debatem, estão as pessoas a respeitar. É muito saudável que, numa democracia, se debata tudo, se apresentem todas as argumentações, mas numa base do respeito mútuo, porque somos pessoas. E esse é o único valor que não pode estar em causa.
Quando as pessoas são deseducadas, quando não se escutam, quando ainda o outro nem sequer começou a falar e já a está a ser quase sufocado... Isso não é democracia, porque isso não é cidadania, onde todos podem ser pelo menos ouvidos. Isso não quer dizer concordar, quer dizer ouvir. Não se pode condenar antes de escutar. Aí é que não há democracia.
Uma sociedade não se resolve no momento. No caso português tem longuíssimas raízes, tem afirmações culturais multisseculares. É por isso necessário conhecer melhor, do ponto de vista histórico, saber o porquê das coisas. O autoconhecimento, dos países e das pessoas, é muito importante. Trata-se da identidade: para andarmos com um pé para a frente, temos de ter o de trás assente, caso contrário caímos. E é o que muitas vezes acontece: parece que nos estamos agora a criar como se tivéssemos aparecido no momento. Nós estamos aqui há quase mil anos, como sociedade!
O melhor de Portugal pouco aparece e não abre geralmente os noticiários. Mas existe e por ele mesmo continuamos nós a existir. Apesar de tudo, mas não apesar de nós. Em muitas escolas, estatais ou particulares, em muitos estabelecimentos de saúde, serviços públicos e instituições particulares de solidariedade social, deparamos com abnegações quotidianas e boas vontades que não esmorecem, antes parecem recrudescer no meio das dificuldades.
Em muitos jovens licenciados há uma vontade de vencer e convencer, que consegue ultrapassar positivamente a escassez das ofertas de trabalho, criando para si, para outros, novas oportunidades, por vezes em domínios imprevistos ou pouco explorados. Assim como há empresários e gestores com verdadeiro sentido de missão, que revelam surpreendente capacidade de inovar e conquistar mercados, a par de reais preocupações com a manutenção e a criação dos postos de trabalho dos seus colaboradores.
Quando nos relacionamos bem com Portugal, fazemo-lo com um País mais sentimental do que mentalmente definido, como se a espuma das ondas nos toldasse a visão.
Um bom indício do modo como nos relacionamos com Portugal são as nossas autofigurações, as feitas e as por fazer. A popular é certamente o Zé Povinho. Desde que Bordalo a pintou, foi constantemente reproduzida e encontramo-la em todo o lado. Mas que significa ao certo? Ignorância ou esperteza? De tudo um pouco, como se tem dito e escrito, em análises rápidas ou de maior fôlego. Mas é exatamente nessa indefinição que ela pode servir para caracterizar a relação que mantemos connosco próprios, ou com o País no seu todo. Coexistimos uns com os outros – e, cada vez mais, com os estrangeiros – em subalternidade e atraso ou em esperteza, razoável desconfiança e quase «retranca» galega?
Deus e Igreja
Contemplar a cruz do Redentor, absorver algo da sede divina que só a explica, é passar em definitivo para o lado de Deus e dos seus sentimentos, é viver de modo absolutamente cristão, para com Deus e para com os outros. E importa compreender que, para aí chegar, é preciso morrer para si, de modo igualmente absoluto e definitivo.
Recordo-me, como tanta gente, das imagens em direto de Nova Iorque, no 11 de setembro. Ao fundo, os escombros das torres gémeas. Ao microfone, alguém perguntava por Deus... E eu «via-o» lá atrás, no trabalho dos que removiam os escombros à procura de sobreviventes. Quando deixaremos nós de procurar além das nuvens o Criador que constantemente origina a vida e a refaz a partir do que a criação tem de mais profundo, o coração do homem, imagem sua sempre, mesmo quando (ainda) dissemelhante?
É-nos também dirigida a ordem estrita de Jesus: «Ide aprender o que significa: “Prefiro a misericórdia ao sacrifício”.» E como haveria Deus, suma bondade, verdade e beleza, de preferir outra coisa senão aquilo que Ele mesmo é, criando-nos a todos, para o fruirmos também? Deus prefere a misericórdia, porque nela se define e nela como que infindamente se resume.
A maior contribuição evangélica para uma ecologia integral é e será o «estilo» cristão de vida, próprio dos que se deixaram libertar por Cristo para a verdade essencial e a beleza absoluta, que nele todas as coisas alcançam, repassadas de caridade universal. Na esteira e no Espírito de Jesus, Francisco de Assis e tantos outros deram ao mundo o que este mais requer: a adoração do Criador e a fruição cuidadosa e solidária dos recursos da criação.
Não faltam dificuldades na vida das famílias, da sociedade e mesmo da nossa Igreja. Recebamos de Cristo a oferta de si próprio, caridade e vida das nossas vidas, como na Eucaristia acontece. Recebamo-lo e preparemo-nos para o receber com maior fidelidade e propósito, com muito maior entrega e adesão ao seu amor. Não há outra fonte onde beber, outra força a buscar, outra luz a receber. Dizemo-lo tantas vezes, sejamos mais coerentes agora.
Eu sei, até por experiência própria, distinguir entre aquilo que é específico de um carisma laical e que tem necessariamente de ser valorizado, porque há trabalhos, há presenças – no âmbito da família, da sociedade, da política, da cultura, da profissão, do mundo empresarial – que é um trabalho especificamente laical e ao serviço do qual nós, ministros ordenados, estamos para os sustentar dentro desta grande tradição eclesial da Palavra e dos sacramentos.
À luz de Fátima, foi mais uma vez interpretado e garantido o destino nacional... Desde então, a devoção portuguesa continua a unir Maria e o nosso futuro nacional, não se cansando de repetir: «Nossa Senhora do Rosário de Fátima, salvai-nos e salvai Portugal!»
Sociedade
Da família que teve na terra, Jesus extraiu toda a linguagem e sentimento com que depois nos traduziu tão maravilhosamente a misericórdia que o seu Pai celeste nos oferece a todos. Das famílias que tivermos e mantivermos extrairemos nós o ideal e os gestos que a sociedade finalmente há de ter.
A fragilidade da vida uterina ou a fraqueza e enfermidade que a atinjam depois, são outros tantos apelos a que acorramos céleres – como os pastores do Evangelho – ao seu cuidado preciso, solidário e eficaz. Qualquer hesitação neste ponto, qualquer amolecimento cultural ou legal em relação a ele, é absolutamente um atentado à paz.
Transportamos todos uma humanidade complexa, com algo de trágico que não devemos iludir, pois também aí encontramos a nossa condição.
Mais do que acusar os jovens de alheamento e descaso, devemos ser nós, os adultos, a testemunhar-lhes um real compromisso com a sociedade e o desenvolvimento. A isto, decerto, aderirão.
Ainda há muito a repensar e a fazer para que a escola e a sociedade se reencontrem, com as necessárias consequências na relação cultural professor-aluno. Como igualmente constataremos que, dada a radicalidade da mutação contemporânea, o «problema» não se resolverá a partir do Estado, hoje menos consistente, mas duma sociedade que não desista de continuar.
Creio poder afirmar que um dos maiores desperdícios desta sociedade de tantos consumos é precisamente o da pouca valorização dos idosos. Há felizmente muita iniciativa, particular e pública, que lhes proporciona boas ou razoáveis condições materiais de vida. Mas há muitíssimo a fazer no sentido de valorizar e recolher tudo o que eles ainda podem dar.
In Uma casa aberta a todos - O novo patriarca fala dos grandes temas, ed. Paulinas
01.07.13


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