Quando Nelson Mandela foi eleito presidente da África do Sul, em 1994, S. João Paulo II tinha sido escolhido há 15 anos. Os dois líderes encontraram-se pela primeira vez pouco tempo após a libertação de Mandela, em 1990.
Cinco anos depois, o papa polaco visitou a África do Sul, e Mandela recebeu-o no aeroporto, referindo-se a João Paulo II como «irmão». O líder sul-africano viria a encontrar-se com o papa três anos depois, no Vaticano.
Após a morte de Mandela, o papa Francisco assinou um telegrama no qual dizia orar «para que o exemplo do falecido Presidente inspire gerações de sul-africanos para colocar a justiça e o bem comum na vanguarda das suas aspirações políticas».
Nossa Senhora de Paris
Listas de som avançam para mim a fustigar-me
Em luz.
Todo a vibrar, quero fugir... Onde acoitar-me?...
Os braços duma cruz
Anseiam-se-me, e eu fujo também ao luar...
Um cheiro a maresia
Vem-me refrescar,
Longínqua melodia
Toda saudosa a Mar...
Mirtos e tamarindos
Odoram a lonjura;
Resvalam sonhos lindos...
Mas o Oiro não perdura,
E a noite cresce agora a desabar catedrais...
Fico sepulto sob círios--
Escureço-me em delírios,
Mas ressurjo de Ideais...
- Os meus sentidos a escoarem-se...
Altares e velas...
Orgulho... Estrelas...
Vitrais! Vitrais!
Flores de Liz...
Manchas de cor a ogivarem-se...
As grandes naves a sagrarem-se...
- Nossa Senhora de Paris!...
Paris 1913 - Junho 15
Mário de Sá-Carneiro
_________________ de um lado, está o enigma e, de outro, está a prece
é então que este pede a Teresa que seja esse coração decidido
que fale com o seu amado
lhe fale na música
lhe fale na felicidade de nascer da alegria
lhe fale no lápis
lhe fale nos traços
lhe diga que é bom que nada se perca
lhe diga que é vital
e a oração emerge do mais íntimo do pó
eu
glorifiquei-vos sobre a terra
realizei a obra que me pediste que fizesse
dei a conhecer o teu nome aos que me deste a conhecer,
eram teus, e foste tu que mos deste,
e agora sabem que tudo o que lhes dei vem de ti
porque eu comuniquei-lhes as palavras que me tinhas comunicado
e eles receberam-nas e acreditam que é de ti que eu venho
neste momento
é deles
que te falo e por eles é a minha prece
a matéria não é vã
a matéria é luminosa
diz-lhe que o denso é passagem
diz-lhe que estão destinados à alegria
preserva-os do mal
é tudo quanto, finalmente, te peço
in "Ardente Texto Joshua", Relógio d'Água, 1998
Nasce, ó Jesus, e ensina-me a nascer:
quando as esperanças se rompem como coisas gastas
quando o dia não chegou a cumprir nem metade da sua promessa
quando me faltam as forças para o degrau seguinte e hesito
quando da sementeira julgo recolher apenas um vazio
quando o caminho parecia mais leve e simples do que depois foi.
Nasce, ó Jesus, e ensina-me a nascer:
quando não consigo fazer do amor uma escrita legível
quando a instisfação corrói até o espaço da alegria
quando as mãos desaprendem a transparente dança do dom
quando não me sei abandonar verdadeiramente a ti!
Nasce, ó Jesus, e ensina-me a nascer:
diz ao meu coração que não é tarde, nem longe
segreda-me que não tenho de fazer coisa nenhuma
senão deixar-me amar.
Texto: José Tolentino Mendonça
Venha o teu anjo amparar nosso passo vacilante
mesmo se parecemos pessoas tão seguras de si
Venha reparar o azul
que a cada momento em nós soçobra
Desfazer a armadilha do desânimo
e o negrume das lamúrias
que são mais tristes porque nos impedem
de receber cada manifestação da Vida com um sorriso
Venha o teu anjo lembrar-nos que estamos a nascer
apesar dos nossos cansaços, derivas ou descrenças
Que a vida minúscula que quotidianamente abraçamos
não deixa nunca de ser um parto
mesmo se não vemos como, nem percebemos tudo
Venha o teu anjo ajudar-nos a dizer Natal
e a fazer disso verdade
Texto: José Tolentino Mendonça
Todos os dias abrimos os olhos, mas não o suficiente
Vemos descontentes a imperfeição e a pedra
Olhamos com desgosto – em nós e nos outros –
o avesso e a costura
e não nos damos conta
que poder observar com amor o avesso
se torna preciosa aprendizagem de caminho
(e que esse caminho nos leva até ao presépio)
Pois aquilo, precisamente aquilo
que hoje identificares como pedra
Deus vem ensinar-te
a transformar em estrela
Texto: José Tolentino Mendonça
«Tragicamente, no mundo há hoje mais de 65 milhões de pessoas que foram obrigadas a abandonar os seus locais de residência. Este número sem precedentes vai além de toda a imaginação. (...)
Se formos além da mera estatística, descobriremos que os refugiados são mulheres e homens, rapazes e raparigas que não são diferentes dos membros das nossas famílias e dos nossos amigos. Cada um deles tem um nome, um rosto e uma história, como o inalienável direito de viver em paz e de aspirar a um futuro melhor para os seus filhos. (...)
Encorajo-vos (...) a dar as boas-vindas aos refugiados nas vossas casas e comunidades, de maneira que a sua primeira experiência da Europa não seja a traumática de dormir ao frio nas estradas, mas a de um acolhimento quente e humano.
Recordai-vos que a autêntica hospitalidade é um profundo valor evangélico, que alimenta o amor e é a nossa maior segurança contra os odiosos atos de terrorismo. (...)
Vós sois olhos, boca, mãos e coração de Deus neste mundo. (...)
Recordai-vos igualmente das palavras de Jesus: "Tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era estrangeiro e acolhestes-me". Levai estas palavras e os gestos convosco, hoje. Que possam servir de encorajamento e de consolação.»
Papa Francisco
«Maria, a profetisa, irmã de Aarão, tomou nas mãos uma pandeireta, e todas as mulheres saíram atrás dela com pandeiretas, a dançar» (Êxodo 15, 20).
«Quando Jefté regressou a sua casa em Mispá, eis que sua filha saiu para o vitoriar, dançando e tocando tamborim» (Juízes 11, 34)
«Ao regressar o exército, depois de David ter morto o filisteu, de todas as cidades de Israel as mulheres saíram ao encontro de Saul, cantando e dançando alegremente, ao som de tambores e címbalos» (1 Samuel 18, 6).
«David e toda a casa de Israel dançavam diante do Senhor, ao som de toda a espécie de instrumentos: harpas, cítaras, tamborins, sistros e címbalos» (2 Samuel 6, 5).
«Hei-de reconstruir-te, e serás restaurada, ó donzela de Israel! Ainda te hás-de adornar dos teus tamborins e participar em alegres danças» (Jeremias 31, 4).
«O Senhor, teu Deus, está no meio de ti como poderoso salvador! Ele exulta de alegria por tua causa, pelo seu amor te renovará. Ele dança e grita de alegria por tua causa, como nos dias de festa» (Sofonias 3, 17).
«A quem, pois, compararei os homens desta geração? A quem são semelhantes? Assemelham-se a crianças que, sentadas na praça, se interpelam umas às outras, dizendo: "Tocámos flauta para vós, e não dançastes!"» (Lucas 7, 32).
Que procurais? (cf. João 1,38).
Porque tendes medo, ainda não tendes fé? (cf. Marcos 4,40).
Vós sois o sal da Terra. Mas se o sal pede sabor, com que se há de salgar? (cf. Mateus 5,13).
E vós, quem dizeis que Eu sou? (cf. Lucas 9,20).
Voltando-se para a mulher, disse a Simão: vês esta mulher? (cf. Lucas 7,44).
Jesus perguntou aos discípulos: quantos pães tendes? (cf. Marcos 6,38).
Então Jesus levantou-se e disse-lhe: mulher, onde estão? Ninguém te condenou? (cf. João 8,10).
Mulher, porque choras? Quem procuras? (cf. João 20,15).
Simão, filho de João, amas-me? (cf. João 21,16).
Maria disse ao anjo: como acontecerá isso? (cf. Lucas 1,34).
Perguntas para os Exercícios Espirituais do papa Francisco, 2016
"Fiat Lux: Illuminating Our Common Home"
Projeto "O espiritual no desenho": Mário Linhares
felizes os pacíficos, que suspendem a violência
e reparam as redes de logradas fainas
(ai a guerra, mãe da pobreza e irmã da morte)
felizes os que aos olhos do mundo
passam por inútil carga social ou rendimento zero
e que escondidamente participam da alegria
que aligeira a vida
(ai aqueles que a sede de poder afoga)
felizes os pobres de alguma pobreza boa
felizes os que lavam as feridas e vivem com os cegos
honrando neles o fundo de humanidade
que lhes é comum
felizes os que nas situações-limite
decidem da singularidade do fazer, da urgência
felizes os que, excluídos, despojados de qualquer imagem
no documento mortal pregado na cruz
inscrevem os seus corpos
felizes os que, intacta, guardam a sensibilidade
à injustiça, apegados só à força da Palavra que cura
felizes os que não pactuam com os anjos
escuros da morte total
nem desculpam os «erros humanos»
das nossas sociedades sem olhos
(ai os que no inferno climatizado sobrevivem
ai o terror mole do dia a dia sobre os ombros)
felizes os que, à imagem de Deus, perdoam
alargando o coração às dimensões de um mundo abençoado
José Augusto Mourão
Capella Duriensis; Jonathan Ayerst, dir.
Esta noite a angústia
não quis encontrar o sono
Toda a noite perguntei
como
Como levar paz onde há guerra
como levar concórdia
onde há cólera
sete de janeiro em Paris
diz-nos é impossível
para o amor não há lugar
tudo é ódio
Sempre acreditei
que ser muçulmano
é ser bom crente
que ser judeu é um privilégio
que o cristianismo é Cristo que se repete
de geração em geração dizendo
sede irmãos
Sempre acreditei
que quem não tem fé
não é um ateu
mas alguém à espera de testemunho
Sempre acreditei
que a paz é o caminho da vida
Não sou um iludido
nem mesmo hoje quando o mundo
grita vingança
Conversão é abertura
se não existe
o mundo é crime
é terrorismo
é lei do mais forte
«Onde há ódio, que eu leve o amor»
mas como
se estou paralisado
mudo
Ensina-me Senhor
um caminho novo
para falar de paz
para dizer de coração
somos irmãos
Confio-te Senhor
o meu medo
Tu que os paralíticos
fazes andar
os mudos falar
Que teus olhos, Menino, ensinem largueza
e altura aos meus olhos
Que teus olhos curem os meus
da fadiga e dos seus filtros
Que teus olhos desimpeçam a visão
fragmentária, parcial e indecisa
Que teus olhos devolvam aos meus olhos
o vento azul da viagem e a sua alegria
Devolvam o real como anel aberto
em vez dos círculos obsidiantes e fechados
Devolvam o aberto como imagem
e programa
Que teus olhos, Menino, ensinem aos meus
o seu natal
«O presépio e a árvore [de Natal] tocam o coração de todos, inclusive daqueles que não acreditam, porque falam de fraternidade, de intimidade e de amizade, chamando os homens do nosso tempo a redescobrir a beleza da simplicidade, da partilha e da solidariedade. São um convite à unidade, à concórdia e à paz; um convite a dar lugar, na nossa vida pessoal e social, a Deus, o qual não vem com arrogância para impor o seu poder, mas oferece-nos o seu amor omnipotente através da frágil figura de uma criança.»
Volta a olhar o tempo com inocência
como uma tarefa que as crianças
sabem melhor do que tu
Aprende a buscar a sabedoria
como quem constrói uma ponte
quando seria mais fácil a distância
Aprende a elogiar a vida
Aprende a agradecer o amor Acende no centro de ti uma prece Deus connosco, a inteira humanidade surpreendes Deus connosco, Tu ergues a justiça e a paz, Deus connosco, Tu respondes à nossa esperança Deus connosco, todos os dias nos vens salvar Senhor, por vezes, a nossa oração é apenas a necessidade da tua mão, a absoluta necessidade de sentir a tua mão funda, capaz de nos acolher tal qual somos dentro do seu silêncio; é apenas o desejo de sentir o roçar, mesmo que leve, da tua imensidão no precipitado e no precário das nossas quotidianas rotas; é apenas a necessidade de reconhecer que Tu recebes esta espécie de fome e de desejo, esta espécie de noite e de grito, de mistério e de prece. Venha o teu Anjo tocar o peso da nossa vida 2.º retiro de Diários Gráficos na "Casa Velha", Ourém, orientado em outubro de 2014 por Mário Linhares Ó Vida dás-me tudo Procure a alma inclinar-se não ao que é mais fácil, mas ao mais difícil; Neste novo dia Ele disse: assim o Senhor dança nos salões vazios: não fechei as portas fiz tapetes de flores espero nas traseiras e ceio no umbral sirvo na bandeja as mais frescas iguarias o Senhor dorme no leito e eu estou acordado a água sai pura de manhã o Senhor veste-se visto o meu Senhor e eu o alimento que eu nunca me atrase à chamada do Senhor que eu não seja dos que perdem enquanto o Senhor dança o meu coração exulta: Encontro-as por acaso numa ilharga Estas flores tão densamente de ouro, a mim, que me comovo com igrejas singelas mostram um esplendor totalmente inesperado Ó flores cujo nome desconheço, antes de as flores virem ter comigo. Senhor, como estás longe e oculto e presente! Oiço apenas o ressoar do teu silêncio que avança para mim e a minha vida apenas toca a franja límpida da tua ausência. Fito em meu redor a solenidade das coisas como quem tenta decifrar uma escrita difícil. Mas és Tu quem me lês e me conheces. Faz que nada do meu ser se esconda. Chama à tua claridade a totalidade do meu ser para que o meu pensamento se torne transparente e possa escutar a palavra que desde sempre me dizes. No sorriso louco das mães batem as leves Escolho uma idade à minha medida. Não acredito em premonições, não temo superstições,
Pelos olhos de uma criança passam Pelos olhos, as aves deslocadas, Aves nos olhos da criança são Que aves são estas, postas à beira Que aves são e como se deslocam Porquê aves e porquê deste modo, E de que claros dedos surgem aves, Rui Almeida Não foi por um Anjo ter entrado (faz essa ideia tua) Então entoou o Anjo a sua melodia clara. Rainer Maria Rilke «Hoje (…) é bom tomarmos consciência de que a vivência do sofrimento e da morte têm um sentido ou outro, segundo esperamos ou não esperamos a vida eterna. É que só esta dá sentido ao sofrimento e resolve o enigma da morte, na qual a vida não acaba, apenas se transforma. Para nós cristãos, esta esperança na vida eterna não é apenas um valor natural de quem admite uma outra vida para além da morte; é uma virtude teologal, é fruto do Espírito de Cristo em nós, que nos uniu a Ele no Batismo e nos deu a intimidade de “filhos de Deus”. O desejo da vida eterna é, no cristão, expressão espontânea da vida em Cristo, experimentada neste mundo. As alegrias da fé, fruto da intimidade com Deus em Cristo, são já as primícias da plenitude futura. A vivência cristã da vida neste mundo é já da ordem do mundo futuro. Porque se trata de “primícias”, ela gera espontaneamente o desejo da plenitude definitiva, o que leva, por vezes, os santos a desejarem a própria morte, apenas porque ela é a porta necessária para entrar na plenitude da vida.» D. José Policarpo Descalço venho dos confins da infância Venho da estranha noite dos poetas, Feriu-me um dardo, ensanguentei as ruas Quem te de ignorar ignora os que são tristes Pedro Homem de Mello Ricardo Ribeiro (voz), Pedro Joia Deus, foste tu que nos puseste como os Magos à procura do presépio, dá-nos também a companhia de Maria santifica-nos, Deus, pelo fogo da tua consolação José Augusto Mourão
que é sempre a oportunidade mais bela
em vez de a diminuíres
que te esvazia as mãos
e ao mesmo tempo as deixa iluminadas
mesmo se o lume que trazes
te parece anmeaçado ou imperfeito
José Tolentino Mendonça
Imagem: Rui Aleixo
Capela do Rato, Lisboa
12/12/2014
Deus connosco
porque não existes na omnipotência do tirano,
mas na promessa de um nascimento que vem.
Acompanha-nos no nosso caminho para o amor,
e assim tua presença no outro perceberemos.
apesar da guerra, da intolerância, do ódio.
Ensina-nos a acolher-te sem te manipular,
a construir contigo um mundo mais fraterno,
e assim nossos desertos em pomares se mudarão.
quando connosco partilhas a tua sede de libertação.
Grava nas nossas almas a fome da tua salvação,
para que, com Maria, saboreemos a alegria
de um dia estarmos todos reunidos no teu Reino.
pelo desarmado amor do menino de Belém.
Sê a nossa estrela na noite das nossas inquietudes,
com sinais de perdão manifesta a tua vinda,
Tu, o Emanuel, do presépio ao túmulo vazio.
Jacques Gautier
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: Correggio
8/12/2014
Oração de Maria ao longo do seu Advento
José Tolentino Mendonça
Imagem: Rui Aleixo
Capela do Rato, Lisboa
7/12/2014
Venha o teu Anjo
e descobrir neste cerco o que ainda não vemos:
a beleza completamente acesa
Venha o teu Anjo dizer-nos que é possível
uma existência respirar iluminada
por aquilo que espera
Venha o teu Anjo convencer-nos
que é da esperança que nos vem o fogo,
e que em cada um dos nossos instantes
o eterno pode habitar
Venha o teu Anjo aproximar em nós
o barro da estrela
o coração adiado da sua órbita viva
o meu pão do pão de todos
a alegria voltada para fora
da alegria voltada para dentro
José Tolentino Mendonça
Imagem: Rui Aleixo
Capela do Rato, Lisboa
2/12/2014
O espiritual no desenho
Imagem e edição: Patrícia Pedrosa
28/11/2014
Ó Vida dás-me tudo...
O que não me podes dar!...
Vens com mãos de poesia,
Vens com voz de embalar,
E a dor é alegria
A ponto de chorar!
Ó Vida dás-me tudo
O que me vens tirar!:
Até mesmo a infância
Porque a posso sonhar!
Ó Vida, com que mágia
Trémula e deslumbrada
Te agradeço esta paga!
Cristovam Pavia
Fotografia: © Lucie and Simon
19/11/2014
Não ao mais agradável, mas ao mais agreste;
Não ao mais gostoso, mas ao que menos gosto dá;
Não ao que é descanso, mas ao que é trabalhoso;
Não ao que é consolo, mas antes ao desconsolo;
Não ao mais, antes ao menos;
Não ao mais alto e precioso, mas ao mais baixo e desprezível;
Não a querer alguma coisa, mas a não querer nada;
Não a andar buscando o melhor das coisas temporais, mas o pior;
e, por amor de Cristo, a desejar entrar em toda a nudez e vazio e pobreza que há no mundo.
E estas obras convém que se dê a elas do coração e procure nelas aplainar a vontade.
Quem do coração as pratica, muito em breve, agindo ordenada e discretamente, nelas virá a achar grande alegria e consolação.
S. João da Cruz
14/11/2014
O hino quotidiano
que me concedes, ó Senhor!
dá-me uma parte de alegria
e faz que possa ser melhor.
Dá-me esse dom que é a saúde,
a fé, o ardor, a intrepidez,
trazidos pela juventude;
e a colheita da verdade,
a reflexão, a sensatez,
consequências da idade.
Feliz serei se ao fim do dia
um ódio a menos conseguir;
se alguma luz meus passos guia
e se algum erro eu extinguir.
E se por aspereza minha
ninguém as lágrimas verteu,
ou se alguém teve uma alegria
que o meu carinho lhe ofereceu.
Que cada tombo na ladeira
me vá fazendo conhecer
cada armadilha traiçoeira
que o meu olhar não soube ver.
E que eu avance mais segura
sem protestar, sem blasfemar.
Que a ilusão doure a aventura
e essa ilusão ma faça amar.
Que eu dê a soma de bondade,
todos os atos e o amor
que a cada ser se manda dar:
soma de essências para a flor
e brancas nuvens para o mar.
E que o meu século enfatuado
numa grandeza material
não me deslumbre nem me faça
esquecer que sou barro mortal.
Que eu ame os seres deste dia;
que a todo o transe encontre a luz.
Que ame o prazer e a agonia:
que ame o sinal da minha cruz!
Gabriela Mistral
Fotografia: © Pentti Sammallahti
13/11/2014
Cântico
«lava a tua casa retira os móveis todos
aí quero dançar»
semelhante a um turíbulo
espalha o seu perfume
abri as janelas: os ladrões evitam
a casa iluminada
pus grinaldas na entrada
pois é muito grande a festa de Um só convidado
o Senhor ocupa-me
e a casa toda é sua
os frutos colhidos
nos dias de canseira
o Senhor levanta-se
e eu não posso dormitar
das suas lavagens
lavo-me na água que o Senhor usou
com a roupa que lhe trago
come do que tenho – e assim eu empobreço
assim fico sem nada
e Ele me sustém
não vá Ele mostrar-me
não precisar de mim
primaveras e outonos
que não seja contado entre os ignorantes
que Deus este que não para
de se mover por mim!
Carlos Poças Falcão
Fotografia: © Seiji Shibuya
12/11/2014
A umas flores amarelas
sombria do caminho. São amarelas.
Reluzem como um sol que arda na noite.
eriçadas de estames que parecem
a pelagem dum gato posto à prova,
de preferência a grandes catedrais,
neste chão de pedra que ninguém diria
poder florir assim.
prolongai esse fulgor humilde em cada dia
de que ainda disponho para ver as flores,
A.M. Pires Cabral
Pintura: Van Gogh/D.R.
18/7/2014
Luís Miguel Cintra lê poemas da antologia "Verbo: Deus como interrogação na poesia portuguesa"
2/7/2014
Sophia de Mello Breyner Andresen
Foto: Eduardo Gageiro/D.R.
17/6/2014
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e órgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado,
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens,
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo. São
silenciosas.
E a sua cara está no meio das gotas particulares
da chuva,
em volta das candeias. No contínuo
escorrer dos filhos.
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos, porque
os filhos estão como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,
e atiram-se, através deles, como jactos
para fora da terra.
E os filhos mergulham em escafandros no interior
de muitas águas,
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e na agudeza de toda a sua vida.
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,
e através dele a mãe mexe aqui e ali,
nas chávenas e nos garfos.
E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível
amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.
Herberto Helder
Imagem: Pablo Picasso
16/6/2014
Guia-nos o sul, com remoinhos de pós sobre a estepe;
Renques daninhos, pragas de gafanhotos,
As cintilações faiscantes das ferraduras polidas,
Tudo profetizava – visões
De monge – que eu iria perecer.
Peguei no destino, atei-o à sela;
E agora que estou no futuro, permaneço
Hirto nos estribos como uma criança.Viva, vida!
veneno e calúnia não vigoram sobre mim.
Não existe morte, senão plenitude no mundo.
Somos todos imortais; tudo é imortal.
Não é preciso temer a morte,
seja aos dezessete ou aos setenta.
Nada há além de presente e de luz;
escuridão e morte não existem neste mundo.
Chegados que somos todos à margem, sou um dos escolhidos
para puxar as redes quando o cardume da imortalidade as cumular.
Habitai a casa, e a casa se sustentará.
Invocarei um dos séculos ao acaso: eu o adentrarei
e nele construirei minha morada.
Sento-me portanto à mesma mesa
que vossos filhos, mães e esposas.
Uma só mesa para servir bisavô e neto:
o futuro se consuma aqui agora,
e quando eu erguer a minha mão,
os cinco raios de luz convosco ficarão.
Omoplatas minhas como vigas mestras,
sustentaram por minha vontade a revolução dos dias.
Medi o tempo com vara de agrimensor:
eu o venci como se voasse sobre os Urais.
Talhei as idades à minha medida.
Rumamos para o sul, um rastro de poeira pela estepe.
As altas ervas agitavam-se entre vapores
e o grilo dançarino,
ao perceber com suas antenas as ferraduras faiscantes,
profetizou-me, como monge possuído, a aniquilação.
Atei então, rápido, meu destino à sela,
ergui-me sobre os estribos como um menino
e agora cavalgo os tempos vindouros a meu ritmo.
Basta-me minha imortalidade,
o fluir de meu sangue de uma para outra era,
mas em troca de um canto quente e seguro
daria de bom grado minha vida,
conquanto sua agulha voadora
não me arrastasse, feito linha, mundo afora.
Arseny Tarkovsky
Traduções: Paulo da Costa Domingos (1), Álvaro Machado (2)
14/6/2014
Rápidas as aves em ascensão.
São da criança a ilusão do mundo,
Não mais do que aves repetidamente,
A suceder aos olhos de criança
Que de aves sabe o que o mundo lhe traz.
Restos a deslocarem-se do mundo,
Aves permanecendo aves, sempre.
Do caudal do poema, da fadiga
Da escrita e do miolo da memória?
Por entre as folhas limpas arrancadas
Ao vazio das vozes, ao outono?
A arriscar a evidência sobre o voo?
Estas que nunca antes existiram?
Temor único imenso, ed. Labirinto, 2014
Pintura: Pablo Picasso
25/3/2014
Anunciação
que ela se sobressaltou. Tão pouco como outras, quando
um raio de sol ou à noite a lua
nos seus quartos se vão instalando,
se sobressaltam, ela não tinha o hábito de se indignar
à vista da figura que um Anjo assumia;
ela mal sabia que este ali ficar
para os Anjos é laborioso. (Oh, se fosse possível saber
como ela era pura. Não foi uma cerva que, a salvo,
deitada na floresta, dela se apercebeu,
equivocando-se de tal modo que concebeu,
sem sequer ser coberta, o Licorne mais alvo
o animal feito de luz, o mais puro de conceber.)
Não por ele entrar, mas por o Anjo inclinar
para ela, tão de perto, o rosto com que vinha anunciar,
tão jovem; e que de ambos o olhar se entrechocasse
quando um no outro se encontrasse,
como se em volta tudo vazio parecesse
e o que milhões de seres olhavam, faziam, suportavam,
nela se concentrasse: ela e ele apenas ali se encontravam;
Olhar e ser olhado; olhos e deleite para a vista
em mais nenhum lugar senão aquele: repara,
isso sobressalta. E o susto de ambos era coisa prevista.
A vida de Maria, ed. Portugália
Trad.: Maria Teresa Dias Furtado
13/3/2014
Sé Patriarcal de Lisboa, 1.11.2005
24/1/2014
Entrega
Que a minha infância ainda não morreu.
Atrás de mim em face ainda há distância
Menino Deus, Jesus da minha infância,
Tudo o que tenho, e nada tenho, é teu
Noite em que o mundo nunca me entendeu
Vê trago as mãos vazias dos poetas.
Menino Deus, amigo dos poetas,
Tudo o que tenho, e nada tenho, é teu
Onde o demónio em vão me apareceu.
Porque as estrelas todas eram suas
Menino irmão dos que erram pelas ruas
Tudo o que tenho, e nada tenho, é teu
Ó meu irmão Jesus, triste como eu
Ó meu irmão, menino de olhos tristes,
Nada mais tenho além dos olhos tristes
Tudo o que tenho, e nada tenho, é teu!
Do cd Largo da Memória
5/1/2014
Epifania
nos caminhos do tempo
e disseste à nossa vida que a esperança se cumpre
atravessando a noite sem bagagens
assim caminhamos para ti;
que nos guie a estrela
para a prática das mãos, dos olhos e da esperança
e nos revele os perigos tortuosos;
que nos transporte a quadriga da justiça e da fortaleza
e que João Batista, estrela d'alva antes do dia que nasce,
nos indique o roteiro do teu Nome e do teu rosto
que nos ajude a descortinar
as janelas do deserto e da alegria
e pelo fogo que acendeste entre todos nós aqui reunidos
na memória da tua Páscoa,
Deus do nosso berço e do nosso túmulo,
que vens no Pai, no Filho e no Espírito Santo
O nome e a forma, ed. Pedra Angular