Concílio Vaticano II - 50 anos
Paisagens
Pedras angulares A teologia visual da belezaQuem somosIgreja e CulturaPastoral da Cultura em movimentoImpressão digitalVemos, ouvimos e lemosPerspetivasConcílio Vaticano II - 50 anosPapa FranciscoBrevesAgendaVídeosLigações Arquivo

Vaticano II: Um concílio presente na vida da Igreja e do mundo

Os 50 anos do Concílio Vaticano II, mais que uma comemoração celebrativa importante, são uma visita ao maior acontecimento eclesial do século XX. Ele continua dentro de muitos de nós a pautar consciente ou inadvertidamente o nosso dia a dia. Todos os que aqui nos encontramos estivemos e estamos lá. Nem nos apercebemos que cada passo, reflexão, gesto pastoral, aprofundamento teológico e, possivelmente, muito do nosso ser e estar no mundo e na Igreja tem a ver com essa aula magna da Igreja Católica. Recolheu aspirações e carismas de séculos e projetou novos séculos na Igreja, ainda que haja quem pense que seria necessário outro Concílio ou para ir em frente ou mesmo para voltar para trás. Cada qual, mesmo dentro da mais pura ortodoxia, o recebe, analisa, ama ou rejeita dentro da nossa história pessoal, do nosso ambiente familiar, eclesial, social, cultural.

E o tempo. O tempo enriqueceu e desvaneceu muito do que o Espírito plantou no coração da Igreja a meio do século XX. Mas é bom que no mesmo Batismo, com o mesmo Credo, na unidade da Igreja, possamos, com a nossa reflexão, aprofundar o que o Espírito disse às Igrejas. Mesmo que não pensemos nem digamos o mesmo. Mesmo que pareçamos em terrenos opostos, mesmo que alguns vejam o Concílio como um momento de esperança empolgante e outros, uma distração do Espírito Santo. Talvez possamos começar por aí: não cair na ingenuidade de pensar que o Concílio é mãe de todas as virtudes da Igreja do século XX ou, pelo contrário, mãe de todos os vícios e causa de todos os males da Igreja. Sei que não foi aí que começou a Igreja e que o Concílio foi não apenas um ponto de partida, mas de chegada de muitos anseios, estudos, dinamismos latentes em bispos, padres e leigos, alguns «vencidos do cristianismo », mas gerados em movimentos, iniciativas que, vindos do Espírito, ao Espírito foram dar no momento em que a Igreja os animou e assumiu. E deu uma forma de arranque e vida no Concílio Vaticano II.

Recordo a minha infância, a minha terra de pescadores e baleeiros. Agarravam-se a S. Pedro quando as ondas e as baleias lhes viravam as canoas, tinham mais medo que
temor de Deus, um respeito temeroso pelo pároco. Lembro a festa do Padroeiro – uma vez interrompida, porque o foguete (bombão) estalou, e isso queria dizer que havia baleia à vista. Os baleeiros saíram como loucos da Igreja: mudar de roupa, apanhar o farnel, fugir para o porto, partir para o mar, sem saber por quantos dias. Era o pão árduo que chamava por eles. Gente de fé, desconfiada da Igreja, dos padres, dos praticantes, fariam, segundo penso, as suas orações lá no fundo do coração. Mas a Igreja era outra coisa. Até quando iam para o futebol, passavam longe da igreja, para que o padre os não visse a caminho de espetáculo tão profano.

Na Quaresma, vinham ao rol desobrigar-se. Pelo que ouvia e via, aquela confissão tinha um prazo de validade muito curto, pois dali a uma semana, numa igreja repleta até ao adro, era quase só mulheres, e não muitas, que iam à comunhão. Impressionava-me todavia o respeito dos homens pelo Divino. Alguns ajoelhados à caçador, guardavam as tosses todas para depois da elevação, pois um soleníssimo silêncio – que me assustava como criança – exprimia o respeito e a fé no momento da consagração. Não esqueço também dois sons: o cavo das mãos grossas que batiam no peito, várias vezes durante a missa, e o cantar, numa oitava abaixo, das vozes barítonas dos homens, que não sabiam latim, mas sabiam cantar «perdão, ó meu Deus», melodias que ainda oiço de vez em quando.

Numa enorme igreja, sem amplificação sonora, com um padre muito idoso e doente, que quase sempre começava a missa das sete às nove horas, o povo saía da celebração eucarística sem quase ouvir uma palavra em português. A não ser os cânticos ou o terço – que se rezava em contraponto ao que se passava no altar. Devo dizer que tudo isto faz parte integrante da minha infância. Por isso, nem pretendo nem sei fazer ironia ao narrar estes acontecimentos. Pelo contrário. Nesta multidão estão incluídos os que me ensinaram um respeito enorme mesmo perante o que eu não entendia e até por aquilo de que discordava. Em casa não havia autorização para divergir. Não me lembro de nessa altura ser tolerada uma crítica à Igreja ou ao sacerdote. Da autoridade familiar surgia sempre um grande argumento: «Já alguma vez te ensinou alguma coisa errada?»

Lembro-me da pregação como repetição das cenas descritas no Evangelho, a que se acrescentava moral, muita moral, e por vezes só moral. As festas eram gregorianas e polifónicas, cantadas em latim por quatro senhores que vinham da cidade e traziam um violino. Os sermões eram intermináveis e, por vezes, a missa cantada era um momento de descontração para os padres, que já chegavam esgotados e em jejum das suas paróquias. E aqueles terríficos ofícios de defuntos num tom tétrico e desafinado, cujo latim nós imitávamos sem entender uma palavra.

Mas neste mesmo caminho encontrei santos, sacerdotes exemplares em fé e humanidade. Frequentei uma escola paroquial cujo modelo o meu pároco trouxera das Américas. E aprendi a ler, escrever e a viver para além de tudo o que me parecia sem sentido. Recordo que quando me veio a ideia de ir para o seminário, tinha dentro de mim como que um propósito: não fazer nada sem alma e explicar bem ao povo o que Deus dizia.

Aos poucos, fui clarificando melhor que algo pairava no coração dos mais iniciados e intervenientes na Igreja e no mundo. Fui crescendo a ver movimentos eclesiais. Novos olhares a partir da Ação Católica, dos cursos bíblicos, das missões, e de tantos que tentavam antecipar uma renovação que se tornava cada vez mais premente na Igreja. O Concílio afinal começara muito antes. E eu não escutei mais que vagas ressonâncias desse sopro.

Com o tempo li e ouvi mestres em espiritualidade, na entrega pelos outros, no amor à Igreja, no espírito missionário, na compreensão para com os que andavam longe, na vontade de marcar a vida social com sentido cristão. Encontrei leigos que se reuniam e empenhavam em resposta a um movimento do Espírito que vinha de longe. E que, à maneira de profecia, apontava uma transformação na Igreja e no mundo sem nunca perder o oiro precioso da tradição que atravessara os séculos, no desafio da fidelidade e na resposta ao homem concreto de cada tempo.

Este dizer quase ficou pela liturgia. Mas era um terreno central da vida cristã, congregadora de comunidades, lugar de expressão de linhas de pastoral, conceções do mundo, revelação, eclesiologia, Escritura, lugar do sacerdócio, da mulher, conceitos de salvação, inserção no mundo. E, no diálogo, tolerância, liberdade, missão, cultura, mundo da ciência, universo das artes, vida contemplativa, oração comunitária, o espaço dos Santos, da Virgem Maria, e sobretudo da vida cristocêntrica, em troca de tantos acessórios religiosos que ocupavam lugares indevidos na devoção de muitos cristãos. Tudo isto estava lá, expressa ou implicitamente. Era um tesouro de 2000 anos que se degradou e restaurou.

O Concílio foi tudo isto e muito mais. O mundo de então, e o de hoje, foi tudo isto e muito mais. Não podemos compactar a história num livro de bolso ou vade mecum para consultas tipo Google, como resposta em qualquer concurso. Toda a vida humana e eclesial se reveste de profunda densidade (digamos a palavra certa – mistério – que não se compadece com análises simplistas). Isso não acontece só com o Concílio. Depois de um retiro, de um congresso, de um tempo prolongado de estudo, muitas vezes se pergunta: para que serviu, que resultados deu? Como se se tratasse duma campanha de recolha de alimentos que a seguir fosse para a balança. O que é humano, e divino, mede-se com outra medida. Ou melhor, não se mede. Inscreve-se, embebe-se na história que, como um rio, corre com todos os componentes que se lhe juntam para o grande Oceano.

O meu livro de cabeceira, durante os anos pós-conciliares, foi o Diário do Concílio, escrito por um colega meu espanhol, padre e jornalista: José Luis Martín Descalzo, de quem acabei por me tornar amigo em trabalhos jornalísticos que fizemos mais tarde. São quatro volumes com o papel amarelecido pelo tempo, mas que guardo e releio religiosamente. Sinto-os novos em folha na sua frescura narrativa e esperançosa, no olhar quotidiano sobre as pessoas e o Espírito, que se encontraram em Concílio.

Não erro se disser que do Concílio recebi e mantenho o impulso fundamental da minha vida e do meu sacerdócio, numa Esperança que nunca quis refrear. Fazia parte duma época, duma quase mistura da esperança com a utopia. Eram os anos 60.

O tempo do Concílio foi coincidente com os meus estudos de Teologia. Na clandestinidade, assinávamos e líamos revistas que nos iam dando notícias e reflexões sobre os novos ventos que sopravam. Havia novos olhares, e percebi que os tempos não eram fáceis para quem havia começado a estudar por livros de teologia e moral condenados a falecer, por ultrapassados e inúteis. Lembro que mantive durante anos, na rádio, a memória dessa transição num programa diário de 30 minutos chamado Esquema XIII, em homenagem ao Concílio Vaticano II.

Importa lembrar que se o Concílio foi convocado a 25 de dezembro de 1961, inaugurado a 11 de outubro de 1962 e encerrado a 8 de dezembro de 1965, existiu e prolongou-se muito para além destas datas. Há uma fase de germinação que os historiadores conhecem, talvez com mais precisão, mas que testemunhei com colegas de curso e jovens do meu tempo. Não era possível ver a história caminhar numa direção, e a Igreja simplesmente ignorá-la ou apenas condená-la sem um gesto de diálogo, e a pergunta fundamental: Deus está só do lado de cá? O Espírito sopra apenas no acampamento dos cristãos? Todo o restante terreno é geena?

Se da figura do papa Pio XII nos chegava uma respeitável visão angélica, com João XXIII compreendemos que havia outra atitude perante tudo; e foi esse homem conhecido como «Bom Papa João» que convocou o Concílio, que o Espírito tão bem soube conduzir através de Paulo VI. Para muitos de nós foi um dia quase fúnebre o da notícia da eleição do papa João XXIII. Já tinha estado em Portugal, e nada de marcante havia por parte dos analistas religiosos. Mas rapidamente se compreendeu que tinha um olhar enternecido sobre o mundo. Desajeitado no aspeto, conseguira o milagre de tornar percetíveis gestos e aspetos do Evangelho proclamados há séculos. E, naquele Natal em que convocou o Concílio, deixou o mundo sob um nervosismo expectante. Queria passar das palavras aos atos. Isso foi compreendido.

Paulo VI foi o Papa da minha juventude teológica e sacerdotal. Se João XXIII era um traço rasgado de simplicidade e esperança, Paulo VI era um condutor de alta tensão, que trazia a um tempo o passado e o futuro. Foi ele que realizou o Concílio anunciado por João XXIII.

Havia um elemento comum que atravessava a Igreja e o tempo: a esperança. Certamente não era dado em plenitude o mesmo significado à mesma palavra. Mas havia horizontes comuns, dados como a paz, a justiça, a espiritualidade, o desenvolvimento, o respeito pela natureza, a libertação dos países colonizados, o diálogo ecuménico, o entendimento entre os povos, o esforço de equilíbrio entre a modernidade e a defesa dos grandes valores patrimoniais. Isso está latente no Concílio e parece germinar em muitos pontos do mundo. O mundo deve muito ao Concílio. Como o Concílio muito deve ao mundo.

Há saudades, e algumas justas, do latim, dos concertos litúrgicos das catedrais, de algumas rendinhas que ornavam ministros e altares. Mas as celebrações de hoje, não tendo a espetacularidade teatral, têm uma dignidade viva, uma participação da assembleia celebrante, um cuidado na preparação dos sacramentos, uma formação catequética que enquadra o saber com o compreender e o viver. Um sentido de comunidade eclesial corresponsável, uma participação da mulher, ativa e enriquecedora do todo pastoral, uma presença nos media, em atitude de testemunho, muito mais que um simples jogo de reação, um reequilíbrio na sua arte musical, arquitetónica, aperfeiçoada pelo tempo e pelas necessidades pastorais e alterações sociais. Um diálogo com o mundo da cultura, uma presença em hospitais e lugares sociais complexos, com atenção particular aos mais pobres. Uma forma inteiramente nova de estudar, proclamar, celebrar e viver a Palavra de Deus. Basta pensar nas iniciativas bíblicas de carácter popular, que são o coração de muitas atividades evangelizadoras, algumas nascidas antes do Concílio – movimento litúrgico, bíblico, etc. Mas, no pós-Concílio, os pastores desceram dos seus tronos, os bispos fazem mesmo visitas pastorais, os sacerdotes dialogam lado a lado com os membros de movimentos, riqueza ativa e atuante da Igreja de hoje. Outras importantes iniciativas terão perdido força, mas foram nucleares na evolução da Igreja. Com todas as fragilidades, muitas delas mais visíveis depois do Concílio.

A Igreja está mais purificada, mais humilde, consciente que é pecadora, mais tolerante em julgar, mais disponível para ouvir, mais atenta ao essencial da fé, com a comunidade mais comprometida com a missão, disponível para servir o mundo, sentindo-se pequeno rebanho, sem tentações de Império ou Estado de cristandade. Disponível para aprender com a humanidade sinais do Evangelho que ela não plantou, mas que sabe serem da ação do Espírito. Evangeliza em missão como quem procura e anuncia um Cristo que já lá está. Volta-se para o Ocidente para falar pela segunda vez de Jesus Cristo, numa sociedade muitas vezes indiferente e esquecida. Oferece a sua voz entre muitas outras vozes, sem a pretensão de ser a única ou sequer a melhor.

Sabe hoje estar com vigor e firmeza na sua fé e ao mesmo tempo com a docilidade de quem quer ainda aprender e se disponibiliza a dialogar com todos. Mantém o lugar charneira de defensora da Paz e disponibilidade para as questões mais complexas que a humanidade atravessa. Prossegue o seu rumo perante a descrença e desconfiança, algu mas vezes justificada, no seu ter e no seu poder. Mesmo no meio da tempestade, sabe que o Mestre vai ao leme.

Talvez esteja a exagerar o otimismo. Talvez. Mas não a esperança. A Igreja não nasceu com o Concílio. Mas bendito seja Deus que o inspirou. Por mim, para já não sinto necessidade doutro.

 

Cón. António Rego
In A ilha e o verbo, ed. Paulinas
15.06.14

FotoConcílio Vaticano II
Foto: D.R.

 

Ligações e contactos

 

 

Página anteriorTopo da página

 


 

Receba por e-mail as novidades do site da Pastoral da Cultura


Siga-nos no Facebook

 


 

 


 

 

Secções do site


 

Procurar e encontrar


 

 

Página anteriorTopo da página