/head
Filósofo, escritor e humanista, Jean Vanier é o fundador de duas organizações internacionais dedicadas às pessoas com deficiência intelectual, “L’Arche” e “Fé e Luz”, que no conjunto ultrapassam as 1500 comunidades instaladas em mais de 80 países.
Nascido no Canadá em 1928, Vanier assinou cerca de três dezenas de livros, um dos quais, “Verdadeiramente humanos”, da editora Lucerna, de que oferecemos um excerto, vai ser apresentado esta quarta-feira, 27 de março, às 21h00, em Lisboa, na capela do Rato.
A sessão conta com a participação de deputada Ana Rita Bessa, do P. José Manuel Pereira de Almeida, médico, vice-reitor da Universidade Católica, e do casal Joana e Miguel Morais e Castro, pais de quatro crianças, uma delas com trissomia 21.
Da exclusão à inclusão – Um caminho para a cura
Jean Vanier
In “Verdadeiramente humanos”
No Evangelho de São Lucas, Jesus conta uma história comovente. Havia um mendigo chamado Lázaro que vivia na rua. Tinha fome e as suas pernas estavam cobertas de chagas. À frente dele, numa bonita casa, habitava um homem rico que costumava dar grandes banquetes para os amigos. Lázaro bem gostaria de poder saciar-se com as migalhas que caíam da mesa dele, mas os cães comiam-nas todas. Um dia, Lázaro morreu e foi para o lugar da paz, no «seio de Abraão». Morreu também o rico e foi para o «lugar dos tormentos». Erguendo os olhos, viu Lázaro radiante de paz e exclamou: «Pai Abraão, envia por favor Lázaro aqui abaixo para que me refresque os lábios com um pouco de água, pois estou atormentado neste lugar!-. Abraão respondeu: «É impossível. Entre ti e ele há um grande abismo que ninguém pode transpor». Podia ter acrescentado: «Tal como houve um abismo entre ti e ele durante a tua vida na Terra».
Esta parábola de Lázaro diz-nos muito acerca do mundo atual, onde é enorme o abismo entre os que têm alimento, dinheiro e conforto e aqueles que estão esfomeados ou não possuem um lugar para viver. Lembro-me de ver crianças em Calcutá com os narizes colados à montra de um luxuoso restaurante. De vez em quando, o porteiro ia enxotá-las. Os ricos - e essa classificação abrange-me a mim e, certamente, a muitos dos leitores deste livro - não gostam de ver pedintes imundos a olhar para eles. Não ficámos já todos nós em dado momento embaraçados e receosos perante os famintos?
Um dia, em Paris, fui abordado por uma mulher de cabelos em desalinho que me gritou: «Dê-me algum dinheiro!». Começámos a falar. Fiquei a saber que ela tinha acabado de sair de um hospital psiquiátrico; rapidamente me apercebi de que estava a passar por enormes dificuldades e fiquei assustado. Tinha um encontro marcado e não queria chegar atrasado; por isso, dei-lhe algum dinheiro e segui o meu caminho, tal e qual como o fariseu e o levita na parábola do Evangelho do bom samaritano. Tive receio de me deixar envolver pela dor e pela miséria dela.
O que é este abismo que separa as pessoas? Por que motivo somos nós incapazes de olhar Lázaro nos olhos e escutá-lo?
Tenho a impressão de que excluímos Lázaro porque receamos que os nossos corações fiquem tocados se estabelecermos uma relação com ele. Se escutarmos a sua história e o seu grito de sofrimento, descobriremos que ele é um ser humano. Poderemos ficar comovidos pelo seu coração destroçado e pelos seus infortúnios. E o que acontece quando os nossos corações são tocados? Poderemos desejar fazer alguma coisa para o confortar e ajudar, para aliviar a sua dor, e onde é que isso nos levará? Quando entramos em diálogo com um pedinte, arriscamo-nos a ser arrastados para uma aventura. Porque Lázaro precisa não só de dinheiro, mas também de um lugar para ficar, de tratamento médico, talvez de trabalho e, mais ainda, de amizade.
Por isso é que é perigoso estabelecer uma relação com os Lázaros do nosso mundo. Se o fizermos, arriscar-nos-emos a que as nossas vidas sofram uma mudança.
Todos nós, em maior ou menor grau, estamos encerrados nas nossas culturas, nos nossos hábitos, até nas nossas amizades e nos lugares a que pertencemos. Se me torno amigo de um pedinte, eu gero ondas em meu redor. Os meus amigos podem sentir-se incomodados, talvez até ameaçados, pela mudança operada na minha vida; talvez sintam que estão a ser desafiados a fazer o mesmo. Podem tornar-se agressivos, criticar o procedimento louco e supostamente utópico daquele que pertence ao seu meio e que resolveu ajudar um mendigo.
Estou a começar a descobrir até que ponto o medo constitui uma terrível força motivadora em todas as nossas vidas. Temos receio dos que são diferentes. Assustam-nos as ideias de fracasso e rejeição. E tornei-me cada vez mais consciente não só dos meus próprios medos, mas também dos medos dos outros. O medo está na base de todas as formas de exclusão, tal como a confiança está na génese de todas as formas de inclusão.
A história da humanidade é uma história de guerras, opressão, escravatura e rejeição. Ao longo dos tempos, todas as sociedades criaram as suas próprias formas de exclusão.
É infindável a lista daqueles que podemos excluir; podemos ter a certeza de que cada um de nós está na lista de alguém: os sem-abrigo, os doentes, os moribundos, os jovens, os idosos, os incapacitados, os estrangeiros, os imigrantes, os que têm SIDA...
A minha experiência de exclusão tem incidido principalmente naqueles que são portadores de deficiência mental. Visitei instituições abomináveis pelo mundo inteiro. Em países africanos, vi homens e mulheres considerados «loucos» acorrentados a árvores, espancados até sangrarem, a fim de libertarem o suposto demónio de que estavam possuídos. Na América Latina, visitei um asilo onde cerca de uma centena de homens e mulheres, a maior parte dos quais seminus, partilhava um edifício prestes a desmoronar-se pelo qual deambulavam enormes ratos pretos e brancos.
Todavia, esta forma de maus-tratos físicos é tão-só uma manifestação de uma exclusão mais vasta.
Cheguei à conclusão de que os seres humanos que sofrem de deficiência mental se encontram entre os mais oprimidos e excluídos do mundo. Até os seus próprios pais têm muitas vezes vergonha de terem gerado uma criança «como aquela». Esses pais sentem-se humilhados e envergonhados pelo aparente fracasso, tão forte é a pressão social para gerar um bebé perfeito.
Em determinadas culturas, as crianças com deficiência são consideradas um castigo de Deus. No capítulo 9 do Evangelho de João, os discípulos questionam Jesus sobre um mendigo que nasceu cego: «Foi por causa dos seus pecados ou dos pecados dos seus pais que ele nasceu cego?», perguntam. Este sentimento de culpa está presente em muitas culturas. Em França, um médico veio falar-me sobre a sua filha de 11 anos, que tinha uma deficiência. Disse-me que, quando ela nasceu e ele se apercebeu de que tinha uma deficiência, a sua reação imediata foi a seguinte: «Que mal fiz eu a Deus para Ele me enviar uma desgraça desta?»-. Não é fácil viver com tais sentimentos de culpa.
Medo na base do preconceito e da exclusão
Vivo há mais de 30 anos com homens e mulheres que foram excluídos da sociedade. Vi, por experiência direta, como o medo é um enorme e terrível motivador das ações humanas. Através da minha experiência com estes homens e mulheres portadores de deficiência mental, tomei mais consciência de como o medo está no cerne do preconceito e da exclusão.
Todos ficamos assustados com aqueles que são diferentes, os que desafiam a nossa autoridade, as nossas certezas e o nosso sistema de valores. Todos temos tanto receio de perder aquilo que consideramos importante, as coisas que nos conferem vida, segurança e estatuto na sociedade! Temos receio da mudança e - desconfio eu - ainda mais receio dos nossos próprios corações.
O medo faz com que empurremos aqueles que têm deficiências mentais para instituições isoladas, sombrias e desoladoras. O medo impede que todos nós, com o preço de uma refeição no bolso, o partilhemos com os Lázaros deste mundo. Ironicamente, é o medo que nos impede de sermos mais humanos, ou seja, que nos impede de crescer e de mudar. O medo quer que nada mude; o medo exige a manutenção do statu quo. E o statu quo leva à morte. (…)
Constitui parte integrante da natureza humana desejar pertencer a grupos de criaturas com maneiras de pensar semelhantes, com a mesma cultura ou com os mesmos objetivos e interesses. Se nos conhecemos uns aos outros, podemos trabalhar juntos. Juntos, sentimo-nos seguros. Os que são diferentes de nós perturbam-nos.
Quem são esses que são diferentes? São as pessoas que sofrem de pobreza, fragilidades, deficiências ou solidão. Imploram-nos ajuda, esses milhões de Lázaros. Muitas vezes, vivem no desconforto, enquanto outros gozam de conforto. Os seus clamores tornam-se perigosos para aqueles de nós que vivem no conforto. Se escutarmos os seus gritos e abrirmos os nossos corações, pagaremos por isso um preço. Por isso fingimos não os ouvir e, assim, excluímo-los.
Os que são diferentes são os estrangeiros entre nós. Há muitas maneiras de se ser diferente: uma pessoa pode ser diferente em virtude de valores, cultura, raça, língua ou educação, orientação política e religiosa. E, enquanto a maior parte de nós pode achar estimulante ou, pelo menos, interessante estar durante um curto período de tempo com um estrangeiro, coisa bem diferente é abrir-se verdadeiramente e permitir que um deles se torne nosso amigo.
Este receio do que é diferente é muito marcante quando se trata de pessoas com deficiências mentais. Lembro-me de quando me deparei pela primeira vez com elas. O padre Thomas Philippe, o sacerdote francês que passou a ser o meu acompanhante espiritual quando saí da Marinha e que contribuiu para fundação de L'Arche, convidou-me a conhecer os seus «novos amigos» numa pequena instituição em que era o capelão. Nessa altura, eu estava a ensinar Filosofia no St. Michel's College, em Toronto. Aceitei o convite dele, mas fiquei bastante ansioso. Como ia eu comunicar com pessoas que não podiam falar? E, se fossem capazes de falar, de que iríamos nós falar? Estava com receio de não ser capaz de enfrentar a situação ou de não saber o que fazer e me sentir desajustado.
Quando construímos as nossas vidas em torno de determinados valores de conhecimento, poder e prestígio social, é-nos difícil aceitar aqueles que não podem viver de acordo com essa série de valores. É como se fôssemos ameaçados por essas pessoas.
Os estigmas sociais que recaem sobre os portadores de deficiência mental são fortes. Há aí uma questão implícita: se alguém não consegue viver de acordo com os valores do conhecimento e do poder, os valores da sociedade mais alargada, perguntamo-nos: será que esta pessoa é plenamente humana?
As pessoas portadoras de deficiência mental são geralmente colocadas no extremo mais baixo do espectro humano. Quando me encontrei com elas pela primeira vez em L'Arche, acreditava no amor mas, para mim, amar significava generosidade, fazer o bem aos outros. Nessa altura, não me apercebia de que, através do nosso amor, podemos ajudar os outros a descobrir o seu próprio valor intrínseco; podemos revelar-lhes a sua beleza e a sua singularidade. (…)
Qual é a origem dos terríveis medos que tanto entravam na realização daquilo por que o nosso coração anseia: um mundo melhor?
Creio que as origens do receio da dissidência e dos que são diferentes, do fracasso e da perda, bem como do feio e do sujo, podem ser encontradas nos medos experimentados na infância. Os pais são capazes de fazer com que os filhos sintam que têm de merecer o amor deles, de que ele é uma recompensa pelo seu bom comportamento. Nessas circunstâncias, os filhos julgam que têm de ser perfeitos, de estar à altura das normas dos pais, antes de merecerem o seu amor. O mérito é algo que tem de ser provado; o valor único de cada pessoa não é considerado como uma qualidade intrínseca.
No seu livro Le Chemin de l'Homme, ou The Road of Mankind, o filósofo judeu Martin Buber afirma que «cada pessoa que vem ao mundo traz algo de novo que nunca existiu antes, algo totalmente novo e único... É essa qualidade única e excecional que cada pessoa é chamada a desenvolver».
Mas como poderão os filhos sentir que são únicos quando têm de se ajustar às normas dos pais? Só quando forem aceites tais como são, com os seus dons únicos e os seus limites, quando forem escutados e respeitados, é que os filhos, mais tarde, serão capazes de aceitar os outros. O amor e o respeito, tal como o medo e o preconceito, são legados passados de pessoa para pessoa. O impulso de procurar aprovação para assumir responsabilidades, para estar aberto àqueles que são diferentes, implica uma mudança de consciencialização. É como se se quebrasse uma concha e, aos poucos, a pessoa verdadeira fosse capaz de ir emergindo.
Uma razão de peso para a nossa desconfiança mútua, para a nossa propensão para integrarmos grupos mutuamente exclusivos, é a de que a grande maioria de nós apenas vivencia o amor da maneira mais imperfeita. Quando descubro que sou aceite e amado como pessoa, com as minhas forças e as minhas fraquezas, quando descubro que transporto dentro de mim um segredo, o segredo da minha singularidade, então estou apto a abrir-me aos outros e a respeitar o seu segredo. O medo dos outros começa a diluir-se; a inclusão, a amizade e um sentido de irmandade começa a despontar. À medida que vamos tomando mais consciência da singularidade, do caráter único dos outros, apercebemo-nos da nossa comum humanidade. Somos fundamentalmente os mesmos, não importa quais possam ser a nossa idade, género, raça, cultura, religião, limitações ou deficiências. Todos somos dotados de corações vulneráveis, todos precisamos de ser amados e apreciados. Todos nós já fomos feridos no nosso íntimo e perdemos a confiança naquilo que de mais profundo existe em nós. Todos desejamos ser estimados, estar aptos a desenvolver as nossas capacidades e a crescer numa maior liberdade.
Até que nos apercebamos de que pertencemos a uma humanidade comum, de que precisamos uns dos outros, de que podemos ajudar-nos uns aos outros, continuaremos a esconder-nos por trás de sentimentos de elitismo e superioridade, por trás dos muros do preconceito, dos juízos e do desdém que esses sentimentos engendram.
No entanto, cada ser humano, por muito insignificante e fraco que seja, tem algo a oferecer à humanidade. No nosso belo universo, há sóis e estrelas, bem como um sem-fim de pequenos animais e plantas que são importantes por causa da sua beleza, das suas qualidades curativas e da sua capacidade de dar vida. Cada parte do corpo é importante e desempenha um papel no nosso bem-estar geral.
Da mesma maneira, cada pessoa, mais ou menos importante, tem um papel a desempenhar no mundo. Quando nos dispomos a conhecer realmente os outros, quando começamos a escutar as histórias uns dos outros, tudo começa a mudar. Deixamos de nos julgar uns aos outros de acordo com os conceitos de poder e de conhecimento, ou segundo a identidade de grupo, mas sim de acordo com esses encontros pessoais, de coração com coração. Damos início ao movimento da exclusão para a inclusão, do medo para a confiança, do encerramento em si mesmo para a abertura, dos juízos e do preconceito para o perdão e a compreensão dos outros. É um movimento do coração. Passamos a ver-nos uns aos outros como irmãos e irmãs em humanidade. Já não somos regidos pelo medo, mas pelo coração.