Leitura
A profundidade dos sexos
“A profundidade dos sexos - Para uma mística da carne”, de Fabrice Hadjadj, é uma das últimas novidades das Paulinas. Da obra, prefaciada pelo P. José Tolentino Mendonça, oferecemos um excerto retirado do capítulo “Da glória dos corpos”:
Mistério e publicidade
Nada se afigura mais hostil ao mistério do que a publicidade: as exibições vulgares, os refrães maçadores, os engodos grosseiros são o contrário do invisível e do íntimo. E, no entanto, porque ela visa suscitar um desejo irresistível, a publicidade tem, sem saber, de lidar com as nossas aspirações mais profundas. O que naturalmente queremos é a bem-aventurança: «Todos os homens procuram ser felizes. Não há excepção, por diferentes que sejam os meios que eles em pregam». Se o bem soberano estivesse diante dos nossos olhos, não poderíamos deixar de o escolher. Mas, à nossa frente, há apenas coisas limitadas, captando dele tão-só um reflexo fugaz; por isso, nenhuma delas pode atrair-nos ao ponto de nos privar do nosso livre-arbítrio. Todavia, para forçá-lo um pouco, importa que, de algum modo, o objecto no cartaz se enfeite, por um instante, de uma bondade suprema. O salsichão Saint Justin dá-vos, de novo, o Gosto do Verdadeiro; o creme Eternal varre as vossas rugas; o portátil X-tremity permite-vos estar em toda a parte ao mesmo tempo... É tão copiosa a oferta de absolutos diversos que não sabeis onde dar as cartas. Mas entrais na Simplicidade, graças ao crédito de consumo Pax-Plus e pela Providência dos seguros Immut, sois sondados nas vossas mínimas necessidades. Nunca o púlpito ressoou com tantas promessas religiosas. O marketing mais agnóstico tem, sem cessar, de recorrer à teologia. Os anunciantes esforçam-se por igualar a Anunciação. As nossas prateleiras são invadidas pelos deuses.
Entre todos os artigos de fé reciclados para dourar os artigos do bazar, aquele que o reclamo mais facilmente retoma é a crença na ressurreição. Se fosse o catecismo que estivesse em causa, haveria a seu respeito muitos incrédulos. Mas se for uma página publicitária, aumentará o número dos fiéis. Lá está, quase sempre, uma mulher bonita para exaltar os méritos de um carro, de um patê para gato ou de uma manteiga sem colesterol. Poderia, à partida, pensar-se que o processo consiste apenas em referir o desejo sexual a uma embalagem qualquer. E estaria certo, por pouco que se admita que este desejo vai além da sexualidade. Tomás de Aquino observa que «os bens exteriores são feitos para o corpo; e que é natural, pois, que os bens do corpo (a saúde, a beleza, o vigor) sejam preferidos aos bens exteriores». O atractivo comercial joga com esta preferência. Utiliza os esplendores do corpo de modo que eles se comuniquem às mercadorias e lhes concedam um excesso de amabilidade. Ele, de facto, não se serve de quaisquer carcaças. As suas silhuetas lembram as propriedades clássicas dos corpos gloriosos: claridade, agilidade, incapacidade de sofrer, perfeição em todos os aspectos da sua natureza. O génio da pós-produção deslastra a actriz do seu peso mortal. Nenhum pus ou tumor parece ameaçar a sua pele. Mas é à custa de uma descarnação radical. Enquanto os corpos gloriosos são de carne e osso, iluminados pelo logos, estes corpos fantasmagóricos são de cátodo e octeto, recuperados por um programa electrónico. Enquanto aqueles só irradiam por terem arcado, numa paciência suplicante, com as obscuridades da história, estes brilham apenas porque se esquecem de todo o martírio e de toda a miséria.
O desejo do corpo glorioso pode descobrir-se no que, aparentemente, lhe é mais adverso. Acontece que o charco reflecte melhor o céu do que a escada rústica que a ele leva devagar. A Vida Sexual de Catherine M. dá disso um testemunho perturbador. Nas primeiras páginas do seu capítulo intitulado «O número», a narradora evoca um sonho da sua infância, o de ser mãe e missionária católica: «Queria ser religiosa, “desposar Deus”, e partir como missionária para uma África onde pululavam povoações desventuradas, mas desejava também ter marido e filhos.» No final do mesmo capítulo, depois de ter exposto o seu passado muito libertino, ela reconhece o seu sentido «progressiva e obscuramente compreendido»: «A ilusão de abrir em mim possibilidades oceânicas» 4. O sonho da sua infância parece sepultado nas «bambochatas» e, no entanto, é o mesmo ímpeto que a leva a entregar-se às turbas. O que ela busca de maneira ilusória, como declara com rigor, é a qualidade mais sublime do corpo glorioso: a sua abertura universal, que acolhe intimamente toda a criação e, sobretudo, todos os membros do Corpo místico de Cristo. O seu deboche não é capitaneado por uma complacência imunda e lamacenta, mas por uma impaciência do Céu.
Catherine M. fala, pois, das suas ligações físicas como da de manda de uma comunhão electiva: «Os primeiros homens que conheci fizeram logo de mim o mensageiro de uma rede, da qual não é possível conhecer todos os membros, o elo inconsciente de uma família que se declina à maneira bíblica.» Interpreta carnalmente a vocação espiritual do apóstolo, que desejaria fazer-se tudo para todos (1Cor 9,22): «Era preciso, de cada vez, adaptar-me a outra epiderme, a outra carnação, a outra pilosidade, a outra musculatura... Eu estava disponível em todas as circunstâncias, sem hesitação, sem segundas intenções, por todas as aberturas do meu corpo e em toda a extensão da minha consciência» 5. Esta utopia de uma disponibilidade integral no amor corresponde, de modo muito preciso, à fé numa carne ressuscitada que, até ao infinito, dilata e une às outras carnes a visão única de Deus.
O modo como Catherine M. pensou levá-la a cabo é, decerto, repreensível, porque se dissipa numa miragem: a disponibilidade é aí apenas superficial, o concílio das carnes não chega aos corações. Mas esta miragem brota da sede de uma realidade mística. A este respeito, a rameira oferece uma imagem mais forte do que a lambisgóia mesquinha, e a nossa libertina surge como um guia mais seguro do que a santarrona, cuja «monotonogamia» não passa de uma avareza confortável. Embora ela se desdobre numa modalidade falaciosa, não despreza, pelo menos, a extensão celeste do seu corpo.
A fé na carne
Afirmou-se, muitas vezes, que a Igreja católica reunia no seu seio Atenas e Jerusalém. Será, pois, que neste seio, como no de Rebeca, se defrontam os dois gémeos? A revelação judaica traz em si a glória da carne. O pensamento grego só pode opor-lhe, antes de mais, uma grande resistência. Para os epicuristas, o corpo é sobretudo lugar de deleite, mas a morte condena-o irremediavelmente à decomposição. Para os platonizantes, o corpo é sobretudo túmulo, mas a morte suscita a libertação da alma. Que enrascada para os Apóstolos, se tivessem sido filósofos, proclamar a Boa-Nova, tão tensa que não pode aninhar-se em nenhuma destas posições contrárias. Têm de anunciar o Espírito que liberta e, ao mesmo tempo, pregar o Verbo feito carne, pior: o Messias crucificado, que ressuscita três dias depois, sem que as suas chagas se ocultem. Perante tal doutrina, o materialista hedonista e o espiritualista etéreo, normalmente adversários entre si, colaboram, de repente, numa caçoada comum. Quando o judeu Paulo fala perante o Areópago, toda a gente o escuta até ao momento em que ele dá testemunho da ressurreição: Ao ouvirem falar da ressurreição dos mortos, uns começaram a troçar, enquanto outros disseram: «Ouvir-te-emos falar sobre isso ainda outra vez» (Act 17,32). Resistem eles ao discurso de Paulo? Não estarão antes presos nas suas oposições mútuas? A pregação do apóstolo vai buscar a um a exaltação do corpo, a outro a exigência do espírito. Ela teria podido reconciliá-los. Mas, para aqueles que se instalaram nos reflexos de uma velha polémica, o anúncio de uma concórdia mais elevada é incompreensível.
O mistério da Encarnação entra, sem dúvida, em ressonância com o fundo do nosso coração. Mas, à primeira vista, afigura-se absurdo à nossa razão. O espiritualista acha-o demasiado material, e o materialista, demasiado espiritual, cada qual projectando nele o erro do seu inimigo congénito. A Igreja, no entanto, retém a extrema tensão da fórmula joânica: E o Verbo fez-se carne (Jo 1,14). Porquê «carne» e não «homem»? Pode, decerto, observar-se que «carne» designa, por sinédoque, o homem integral, corpo e alma; mas a verdade é que o termo de Incarnatio prevaleceu, e não o de Inhumanatio, que o esquecido Facundus de Hermiano tentou aclimatar na teologia latina. Escolha tanto mais difícil quanto a palavra «carne» tem outras ocorrências que conotam estranhamente a fórmula. É a mesma palavra que surge, ao dizer-se que os esposos formam uma só carne (Mc 10,8); a mesma, quando S. Paulo indica o que se subleva contra Deus: Porque a carne deseja o que é contrário ao Espírito (Gl 5,17). Santo Agostinho sublinha, contra os espiritualistas, que esta última acepção é equívoca. Quando Paulo emprega «carne» para designar o que nos induz ao mal, é necessário entender «orgulho», «porque não é enquanto está na carne, onde o diabo não está, mas enquanto vive de acordo consigo, que o homem se assemelha ao diabo». O facto é que o Novo Testamento, em vez de usar vários termos, emprega só um, com o risco de mergulhar os seus leitores na perplexidade e abrir espaço para uma interpretação errónea, que relaciona o Cristianismo com um desprezo do corpo. Estará, então, o texto mal escrito? Não seria melhor distinguir, com três palavras diferentes, a carne assumida pelo Verbo, a carne formada pelo homem e pela mulher no seu amplexo, e a carne que não passa de tendência para a ignomínia? Não se teriam evitado confusões deploráveis? Sem dúvida. Mas a Sagrada Escritura teria sido, assim, apenas um escrito especulativo, em vez de ser, acima de tudo, um lugar de prova. Os seus diversos usos da palavra «carne» referem-se menos a uma abordagem linguística do que a uma questão decisiva: o Verbo feito carne é também o Eterno que forma uma só carne, ao desposar a humanidade; e é ainda o santo que assume a nossa carne de concupiscência, rebaixando-se à condição do malfeitor... Equação tão avassaladora que exige do leitor um acto de fé, e não tanto uma interpretação teórica.
Notemos de passagem que, ao longo de toda a Bíblia, o verbo «conhecer» sofre de uma ambiguidade similar, porque significa sobretudo «o uso do leito». O seu primeiro emprego encontra-se no Génesis: Adão conheceu Eva, sua mulher (Gn 4,1). Mas reaparece, de modo especial, na vocação de Moisés, quan do o Senhor diz: Reconhecereis que Eu sou o Senhor, vosso Deus (Ex 6,7). Pobreza do vocabulário hebraico? Profundeza da ironia divina. Que o encontro de Deus se possa designar com as mesmas letras que a união sexual com o seu arfar, os seus fluidos, a sua decomposição final, eis algo que nos deve intrigar sem fim. Rabi Joseph Gikatila, cabalista do século XIII, tira daí uma consequência antropológica: «Escusado será dizer que, se o evento não comportasse uma grande santidade, a relação não teria recebido o nome de “conhecimento”. [...] Os órgãos sexuais seriam órgãos repugnantes, mas foi o Nome que os criou». Eis um motivo para alguém abraçar com um entusiasmo desconhecido do platonizante e do epicurista: as nossas partes genitais são dons do Criador, tal como os nossos rostos. O optimismo do Rabi Joseph é teoricamente correcto e vem, oportunamente, compensar o pessimismo de um Maimónides. Mas relega o drama para segundo plano. A ironia do léxico sagrado não tem por fim primacial levar a conclusões filosóficas, mas fazer entrar na intriga da existência.
A recusa deste «conhecimento» intrigante é que comanda o ensinamento gnóstico. Nas suas Morais (Ethiká), Isidoro, filho e discípulo de Basílides, ordena ao fiel assediado pelo desejo: «Leva contigo uma jovem pouco tímida, para não perderes a graça de Deus: entrega-te a ela com o fogo da paixão e, depois, vai orar – com toda a paz de consciência». Esta ordem de dormir com alguém, logo que vos acicata o apetite, oculta o maior desprezo pela realidade. Reduz-se a uma barrela. Trata-se de se desobstipar para acometer actividades mais sérias. O «conhecimento» de Deus (a gnose) nada tem a ver com o «conhecimento» da mulher (os sexos). O espírito é estranho à carne. Esta não passa de um despojo que, eventualmente, atravessa sucessivas reencarnações, que se macera sob o cilício, que se esgota em cima da galdéria, mas que não pode ter parte no Reino. O gnóstico Valentino afirma que o Verbo só podia assumir uma aparência de corpo: como é que um deus, argumenta ele, poderia fazer as suas necessidades? A ideia parece blasfema. E contudo...
Georges Bataille, ao regressar a um dos seus pseudónimos, «Lord Auch» (contracção de «Senhor das latrinas»), parece assinalar esta inconveniência como a base da sua «ateologia». O antigo seminarista torna-se valentiniano. Mas, de repente, a sua tese inverte-se e, ei-lo, numa inspiração a confessar: «Lord Auch é Deus a aliviar-se. A vivacidade da história proíbe tornar-se pesado... Que Deus a tal se sujeite faz rejuvenescer o céu». Bataille transita, de súbito, da gnose para a doutrina católica. O que se afigurava contrário ao céu manifesta-se como aquilo que o rejuvenesce. O verdadeiro Deus-verdadeiro Homem uniu-se à nossa condição ao ponto, não só de sofrer - o que denota ainda a sua nobreza –, mas também de sofrer as nossas servidões fisiológicas, desde a erecção matinal até à necessária excreção. Só a aparência é sacrílega. Por detrás dela, ao seu jeito inaudito, esconde-se a juventude da misericórdia divina.
Fabrice Hadjadj
In A profundidade dos sexos, Paulinas
08.07.10
A profundidade dos sexos
Para uma mística da carne
Autora
Fabrice Hadjadj
Editora
Paulinas
Páginas
288
Preço
18,50 €
ISBN
978-989-673-106-9