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Diálogo em tempo de escombros

A última década foi, para Portugal, uma década perdida? Podemos ter esperança no futuro? Como portugueses, temos “medo de existir”, ou temos “História a mais”? Que papel tem a Igreja Católica hoje em Portugal? E no mundo? No centenário da República, que balanço das relações entre o Estado e a Igreja? Será que vivemos tempos de nvos ateísmos, e de novos anticlericalismos? Bento XVI tem sido o Papa de que a Igreja e o mundo necessitavam?

Eis algumas das questões que, colocadas por José Manuel Fernandes, anterior director do Público, serviram como ponto de partida para uma troca de cartas com o bispo do Porto, presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais, e ainda Prémio Pessoa 2010, D. Manuel Clemente.

O volume, intitulado “Diálogo em tempo de escombros – Uma conversa sobre Portugal, o Mundo e a Igreja Católica, é prefaciado por José Tolentino Mendonça, texto que apresentamos seguidamente.

 

O fazer e o refazer de uma conversa

«Hei-de restaurar cidades destruídas/
e os escombros de muitas gerações» (Isaías 61,5).
 

A relação do cristianismo com o espaço público é-lhe genética, pois foi aí que ele primeiro se formulou. Um dos espantos na fractura que Jesus e os seus seguidores introduzem face aos sistemas religiosos do tempo (primeiro o judeu e depois o helenístico-romano) é também o da produção e inscrição de uma experiência crente fora do espaço sagrado. Quem lê os quatro relatos evangélicos rapidamente se apercebe que Jesus desenvolve o seu percurso de modo ex-cêntrico em relação ao Templo (e claramente essa escolha esconde/revela a pretensão de superar o próprio Templo), elegendo espaços religiosamente neutrais, como a praça, a margem, o caminho, a casa, que são o lugar, por excelência, da coreografia humana com a qual o cristianismo dialoga. Na mesma linha, havemos de acompanhar Paulo de Tarso que prega tanto numa sinagoga, como numa escola de filosofia ou num teatro. Isso que em Paulo tanto fascina  (in)controversos mestres contemporâneos como Alain Badiou, Agamben ou Žižek é precisamente a ruptura cultural de um discurso desassombradamente proposto como inclusivo e universal: «não há grego nem judeu, circunciso e incircunciso, bárbaro, cita, escravo, livre, mas Cristo, que é tudo e está em todos» (Cl 3, 11). Ora, este discurso é desassombrado no conteúdo e na locução. Quando da oralidade o cristianismo passar à expressão escrita, transitará incólume a mesma autocompreensão de si como novidade, opinião, notícia. Nesse sentido, é interessante o termo grego “politeuma” que no Novo Testamento cristão aparece com o sentido comum de pátria e de cidadania. Algumas traduções históricas do texto sagrado preferem verter aquele termo por “conversa”. E, de facto, a experiência cristã (também) é isso: circulação de palavra, cartografia vária de oralidades,  escritas e hermenêuticas plurais, discurso, debate. No fundo, o fazer e o refazer de uma conversa infinita.

Dois mil anos de história mais do que consolidam este retrato. Se olharmos para a tradição Apostólica e para o oceânico volume de pensamento e escritura dos Padres da Igreja, se mergulharmos na extraordinária vivacidade da escolástica medieval ou na sofisticação vertiginosa da oratória posterior, se, por exemplo, nos detivermos na proferição de actores tão diversos como Agostinho de Hipona ou João Crisóstomo, Francisco de Sales ou António Vieira, percebemos que o cristianismo, sendo uma experiência interior e circunscrita, sempre procurou uma dicção pública e transfronteiriça. Aquilo que George Steiner escreve de São Paulo, «poucos homens em toda a história acreditaram tanto como ele no poder da palavra», deve-se, com justiça, estender aos cristãos no seu conjunto, pela fundamental confiança nas formas da humanidade como lugar teológico, horizonte da procura e da comunicação de Deus. Juntamente com a palavra refira-se toda a expressão artística, o repositório extraordinário de imagens, fulgurações, sonoridades que faz com que o cristianismo seja, desde as origens, tão cultual  quanto cultural.

É verdade que a Modernidade determinou uma recomposição do lugar público concedido ao religioso em geral, e ao cristianismo em particular, e há embaraços e impasses, de parte a parte, ainda por ajustar. A grande tentação é sempre a de reduzir a realidade a um estribilho dicotómico. Da parte da Igreja, tal corresponderia a desistir de estar presente e de dialogar com uma cultura onde os modelos de normatividade são amplamente contrariados e se extremam as reservas a proposições de maior complexidade, tanto sobre as questões últimas como  sobre os estilos do viver. É verdade que o puro discurso de natureza doutrinal parece ter perdido chance no espaço comum, mas o regresso à concha (que o cristianismo nunca teve, nem nunca foi) determinaria o empobrecimento da reflexão e da própria vitalidade cristã. O mandato evangélico que institui a Igreja é um imperativo de construir uma presença cordial de esperança na itinerância do mundo, muitas vezes nas suas brechas e interstícios. A tentação da parte da cultura seria insistir numa privatização obsessiva do religioso, nem se dando conta do paradoxo que é idealizar uma sociedade aberta e, ao mesmo tempo, clandestinizar uma porção fundamental dela, ou descrevendo-a então como forma de exotismo do interior, ao qual concede uma atenção vagamente nostálgica, mas que verdadeiramente já não conta. Há que reconhecer, no entanto, que há mais realidade para lá deste esquema dicotómico: tanto no campo da sociedade como no da religião, se tem vindo a trilhar um caminho bem mais estimulante.

Um exemplo notável é o de D. Manuel Clemente, de que este livro constitui um testemunho directo. Ele foi, curiosamente, ordenado Bispo na transição para o século XXI, e passada uma década torna-se mais claro, no estilo, na especificidade e qualidade das suas propostas, no modo como a sua actividade é seguida e estimada dentro e fora do contexto eclesial, que esse marco não é apenas circunstancial. Forma-se primeiro em História na Faculdade de Letras e só depois passa para a Teologia, numa trajectória longa de formação que culminou no Doutoramento, com uma tese muito elogiada e talvez ainda pouco lida, sobre um tema que antecipa muito da sua visão do futuro da Igreja: ele escolheu tratar, nem mais nem menos, do que das origens do apostolado laical no nosso país, e aí especificamente do contributo de leigos católicos que ensaiaram um diálogo com o pensamento liberal.

Foi primeiro em Lisboa, como agora é no Porto, onde apesar de todos os afazeres mantém uma colaboração docente na Faculdade de Teologia, um professor extraordinariamente marcante, e essa condição, vê-se, é-lhe estrutural: tem a paixão da “conversa”, uma vivacidade invulgar de pensamento, um lastro aturado de investigação e leituras, mas também a leveza divertida de humorista que desenha, com dois ou três episódios anedóticos, o traço mais fundo de um rosto ou o alarde de toda uma época. É um dos mentores da importante viragem que em Portugal ocorreu com a transição da chamada “História Eclesiástica” para a mais ampla “História Religiosa”, sendo co-fundador e director do activíssimo centro de estudos desse domínio na Universidade Católica.

Bispo-Auxiliar de Lisboa, colaborador próximo de D. José Policarpo, detectam-se afinidades claras entre ambos, tanto no entendimento da Igreja, para os dois a grande marca é o Concílio Vaticano II, como no esforço franco por compreender que tipo de inscrição pode ser a do religioso em sociedades plurais e abertas. Mas a grande surpresa no percurso de D.Manuel Clemente é que tendo ele um perfil intelectual tão trabalhado, se tenha tornado igualmente um homem de acção inspiradora. Os três anos que leva à frente da Diocese do Porto são uma prova inequívoca da capacidade de ler profundamente a realidade, de programar um caminho com audácia profética e de cumprir etapas com forte mobilização dos variadíssimos actores eclesiais. Do mesmo modo na década que leva como responsável na Conferência Episcopal portuguesa pelas comunicações da Igreja e pela cultura, onde tem evidenciado um estilo que passa pela escuta competente e incondicional, pela valorização positiva do outro e por um dinamismo de evangelização que se apresenta sobretudo como disponibilidade para desenvolver uma história esperançosa e comum.

A acta da recente atribuição que lhe foi feita do Prémio Pessoa toca, de facto, alguns dos pontos essenciais do seu percurso e sintetiza-os: «a sua intervenção cívica tem-se destacado por uma postura humanística de defesa do diálogo e da tolerância, de combate à exclusão e da intervenção social da Igreja. Ao mesmo tempo que leva a cabo a sua missão pastoral, D. Manuel Clemente desenvolve uma intensa actividade cultural de estudo e debate público. Em tempos difíceis como os que vivemos actualmente, D. Manuel Clemente é uma referência ética para a sociedade portuguesa no seu todo».

Por tudo isto é mais do que justificado este projecto de uma conversa pública, mesmo se essa prática continua estranhamente arredada da nossa vida cultural. Dialogamos pouco sobre o nosso viver colectivo e damos escasso tempo à audição de vozes que se recortem singularmente, sem a opacidade sôfrega dos agendamentos. Há, em relação a este livro é verdade, um importante precedente, embora de natureza assumidamente diversa: os “Diálogos sobre a Fé”, resultante de uma troca epistolar entre D.José Policarpo e Eduardo Prado Coelho que o Diário de Notícias promoveu, e que depois lançou como volume autónomo em 2004, com um prefácio de Eduardo Lourenço. Essa experiência recuperava o modelo que o quotidiano “Corriere della sera” havia já provado nas suas páginas, colocando lado a lado o Cardeal Carlo Maria Martini e Umberto Eco.

«Diálogo em tempo de escombros. Uma conversa sobre Portugal, o Mundo e a Igreja Católica» dá corpo a um projecto diferente. Um jornalista com a dimensão profissional, cultural e humana de José Manuel Fernandes, um grande jornalista deste tempo português e europeu desafia um homem de Igreja para um encontro construído em três andamentos: na primeira parte, José Manuel Fernandes, enuncia conjuntos de questões que gostaria de ver abordados, quase à maneira de um diagnóstico interrogado do presente. D. Manuel Clemente ensaia uma resposta na segunda parte. E no terceiro round, chamemos-lhe assim, uma conversa epistolar entre entrevistador e entrevistado vem precisar e ampliar alguns aspectos do diálogo. O tempo é de escombros, mas não a conversa, como o leitor rapidamente verá.

 

Prefácio: José Tolentino Mendonça
In Diálogo em tempo de escombros, ed. Pedra da Lua
17.05.10

Capa

Diálogo em
tempo de escombros

Autor
Manuel Clemente
com José Manuel Fernandes

Editora
Pedra da Lua

Ano
2010

Páginas
112

Preço
9,00 €

ISBN
978-989-814-2306





















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