Bíblia
Um ano com S. Paulo: entrevista ao P. Carreira das Neves
São Paulo não teve medo. Movia-se bem nos ambientes gregos e romanos. Pensava converter o mundo inteiro em pouco tempo. Entrevista do biblista Joaquim Carreira das Neves ao «Correio do Vouga».
Por que é que São Paulo é tão importante para os cristãos?
São Paulo é importante e é um grande desafio para a Igreja. O que chegou até nós do cristianismo é de Jesus Cristo e de Paulo. São Paulo não conheceu o Jesus da história. Nas comunidades cristãs do início há dois grupos: os judeo-cristãos e os pagano-cristãos. Há os que estão ligados a Jerusalém, a Pedro e ao culto do templo – são os judeo-cristãos. Esses judeo-cristãos continuaram depois da queda de Jerusalém, no ano 70, e vieram até ao século IV-V. Mas quem vence, finalmente, é São Paulo, que vai pregar aos pagano-cristãos, que abre o cristianismo não apenas a judeus, mas também ao helenismo. E, no fundo, a todos nós.
Os cristãos são, pois, paulinos, mesmo sem o saberem…
Sem São Paulo não estaríamos aqui a conversar. O Cristianismo seria uma seita, que talvez já tivesse morrido. Não teria universalidade.
Conversão de S. Paulo. Gustave Doré
Guiada pelo Espírito Santo, a Igreja deve a sua expansão a Paulo.
Paulo movia-se bem no Império Romano. Tinha uma cultura greco-romana extraordinária, falava grego e escrevia em grego, como também estava dentro do Império Romano e conhecia muito bem as linhas de força da filosofia grega e da pax romana, do poder romano. São Paulo vai responder aos filósofos gregos e romanos. O que chegou até nós é o São Paulo da Igreja que venceu os judeo-cristãos.
No entanto, o Papa é o sucessor de Pedro, não de Paulo...
A igreja nascente, quer as comunidades de Paulo quer as de Jerusalém ou de Antioquia, sentem a necessidade de alguém que represente Jesus cá na terra. E é assim que nasce o Pedro daquela narrativa do Evangelho de Mateus 16: “Tu és Pedro”, ou de João: “Pedro, tu amas-me mais do que os outros? Apascenta o meu rebanho”. Foi uma necessidade da Igreja nascente. Precisavam de um alter ego de Cristo, de alguém que o representasse na terra. E vão ter com Pedro.
São Paulo nunca pensou em Pedro desta maneira, mas considerava-o importante. Em Gálatas 2, diz que decide ir a Jerusalém falar com Pedro. Pedro era, de facto, a primeira figura. Paulo tem um embate com Pedro. Deram-lhe as bênçãos todas de Jerusalém para pregar aos pagãos, mas critica Pedro por este primeiro comer com pagãos e depois deixar de comer com os pagãos e comer só com judeus. Paulo diz que Pedro é hipócrita. Isso marca outra fase na vida de Paulo.
Conversão de S. Paulo. Pietro da Cortona
Além da fase de perseguição aos cristãos e do anúncio de Cristo há outras fases?
Sem dúvida. Primeiro temos o Paulo judeu; após a conversão, temos o Paulo cristão dos primeiros anos, que está com Jerusalém e Antioquia; entretanto, Paulo tem estes problemas complicados e temos o terceiro Paulo, que diz: “O Senhor apareceu-me”. “O Senhor alcançou-me”, ainda que nunca revele o “como” nas suas cartas. O livro dos Actos dos Apóstolos é que relata, mas este livro tenta conciliar Pedro e Paulo. É uma grande catequese. Não podemos considerar como históricas muitas das coisas que narra… É uma grande conciliação de Pedro e Paulo.
O que caracteriza esta terceira fase de Paulo?
São Paulo faz uma afirmação do essencial. “O que é que nos salva?” “Que Cristo é este?” Em Jerusalém dizia-se: “É Cristo com a Lei; é Cristo com Moisés; é Cristo com a circuncisão”. Paulo diz: “É Cristo”. Ponto final. Cristo sem Lei, Cristo sem Moisés, Cristo sem circuncisão. Isso é que é fundamental.
Pedro e Tiago queriam Jesus, mas queriam também Moisés. Paulo diz: “Cristo acabou com Moisés, acabou com a Lei. O pecado está ligado à lei. A paixão, morte e ressurreição de Jesus mudou tudo”. Paulo tem importância para nós porque as nossas igrejas, quer católicas quer protestantes, dependem de Paulo.
S. Paulo evacuado do meio da multidão. Gustave Doré
Mas Paulo está contra Jerusalém, Pedro e Tiago? Hoje diríamos, “contra Roma”?
Não, porque Paulo vai empenhar-se na colecta em favor dos pobres de Jerusalém. Ele fala da colecta em várias cartas e quer levar a colecta a Jerusalém. Essa viagem dá origem à prisão. Paulo nunca cortou esse cordão umbilical porque sabe que os cristãos de Jerusalém são os primeiros, como os apóstolos. Jerusalém é a comunidade mãe.
Paulo não assistiu à derrocada de Jerusalém, no ano 70, que muda tudo [morre em 63/64]. Deixa de haver templo e passa a haver apenas fariseus e cristãos. Há então uma bulha tremenda entre eles. Frases que estão nos evangelhos e que originaram o anti-semitismo têm origem neste contexto e foram postas pelos cristãos na boca de Jesus. Hoje temos de saber ler as escrituras no seu tempo…
Temos de ter cuidado com as interpretações literais…
O literalismo é perigoso. Se lermos a Bíblia à letra, não há Papa, não há Igreja, não há isto, nem aquilo. Há milagres e diabos à la carte... Tem de haver uma formação bíblica e para isso também o Ano Paulino é importante. Mas isto não quer dizer que só haja verdadeira Palavra de Deus através de uma iniciação teológica profunda. Não, não é isso. A Palavra de Deus está acessível a todos, com muita, pouca ou nenhuma formação.
S. Paulo foge da prisão. Gustave Doré
Ao apresentar Paulo, o Papa pretendeu sugerir um modelo de evangelização para o mundo actual. Como é que Paulo continua actual?
É que Paulo não teve medo. Nem da filosofia grega, nem do poder romano. Os filósofos gregos eram muito importantes. Andavam de terra em terra a pregar a paz interior sem Deus. São Paulo vai levar Jesus Cristo ao mundo inteiro, levar o fogo da fé cristã. É pela morte e ressurreição de Jesus que vem a paz e a salvação. Mas não deixa transformar a cruz numa filosofia. Cristo é um maldito para judeus e pagãos. Paulo é o primeiro a escrever e o primeiro teólogo a sistematizar a cruz de Cristo. Essa cruz de Cristo tem de ser pregada hoje e não tenhamos medo disso. O verdadeiro Paulo continua a ser um desafio para a Igreja. Transmitiu-nos a grande fé em Jesus Cristo, que, de facto, veio estabelecer um mundo novo, um povo novo, uma arquitectura nova.
O carácter apaixonado de Paulo faz falta à Igreja?
A paixão de Paulo era tão grande que ele pensava converter o mundo todo em quinze anos. Correu a Anatólia toda (Turquia), a seguir percorreu a Macedónia e a Acaia (Grécia) e cria muitas comunidades. Decide vir a Espanha, passando por Roma, como diz na Carta aos Romanos… Ele queria ir ao fim do mundo. E o fim do mundo era o sol das praias do Algarve.
S. Paulo em Éfeso. Gustave Doré
No início do Ano Paulino, e quando estava a decorrer o Sínodo sobre a Palavra de Deus, foi dito as homilias deviam ser mais bíblicas. Como é que São Paulo, que é lido quase todos os domingos, pode ajudar?
Tenho sido atacado por católicos e por protestantes. Os protestantes acham que sou demasiado católico. Os católicos acham que sou protestante porque nas homilias e na televisão não falo nas devoções a Nossa Senhora de Fátima, ao Sagrado Coração de Jesus… Nas homilias, vai-se muito para as devoções e a Bíblia fica de lado. Na minha freguesia, o pároco, que ainda era da minha família, só falava do Evangelho de São Mateus. Ele nem sabia que havia outros. As nossas homilias são muito moralistas, uma ou outra vez abordam a justiça social, mas esquecem a Palavra de Deus, o amor de Deus e o Homem Novo. Este Homem Novo, que é uma das linhas de força da teologia Paulina, tem implicações com tudo o que é político e social, individual e comunitário. Penso que pode ser por aí.
São Paulo é conhecido e lido pelos cristãos católicos?
É estudado nas faculdades e nos grupos bíblicos. Mas tem de ser mais conhecido pelos cristãos. Hoje, os judeus estudam São Paulo. Os protestantes já não estudam tanto São Paulo como estudavam. E os católicos já não estudam apenas este ou aquele aspecto para defender certos conceitos eclesiais [em contraposição aos protestantes, que realçavam outros aspectos da teologia paulina], mas estudam carta por carta. Hoje sabemos que as Cartas aos Coríntios incluem umas quatro ou cinco cartas. Na carta aos Filipenses há pelo menos duas ou três. Quando as cartas vieram cá para fora, no século primeiro, havia muitas mais cartas. Foram coladas umas às outras – o que é normal. Não podemos acreditar na inspiração vinda directamente do céu, o Espírito Santo a dizer a Paulo: “Escreve este verbo, aquele advérbio, aquele adjectivo…”
Naufrágio do navio em que S. Paulo viajava e mordedura da serpente
Como se explica o relativo apagamento de Paulo no catolicismo? Não é santo popular, há poucas igrejas dedicadas a Paulo, é tido como difícil de interpretar…
Uma das causas está no facto de as igrejas protestantes terem tomado conta de Paulo. Quando nos séculos passados falavam da sua identidade, sublinhavam a justificação pela fé, e não pelas obras, como crítica à Igreja Católica do tempo de Lutero. E com razão. Fizeram-se grandes construções, como a Basílica de Roma, e quem desse mais dinheiro, mais depressa ia para o céu – era assim que pregavam os oradores católicos, na Itália e na Alemanha. Lutero tinha os seus problemas de consciência muito complicados e encontrou a sua paz nesta fé sem obras. Mas o verdadeiro Paulo não é assim. É o homem da Lei de Cristo. Não é o homem da Lei de Moisés, com os seus 613 mandamentos, mas da lei de Cristo. Quem tem fé em Jesus Cristo tem de operar segundo a fé. Temos que trabalhar a partir da fé e não as obras da Lei.
Os protestantes só têm Cristo, a fé e a Bíblia, por causa da Carta aos Romanos. Mas é preciso entender o que é a fé e o que são as obras, que, para Paulo, são as obras de Lei de Moisés. Por isso ele diz: “Não as obras de Lei, mas as obras do Espírito”.
Essas clivagens entre católicos e protestantes estão ultrapassadas?
Sim. Hoje em dia, católicos e protestantes, entendemo-nos. Não nos entendemos durante séculos, mas há um consenso entre teólogos católicos e protestantes sobre a justificação pela fé em Jesus Cristo e não pelas obras. Mas, volto a dizer, é preciso entender o que é a fé e o que são as obras. Estamos a falar das obras da Lei. São Paulo foi contra elas para realçar Cristo. Só Cristo.
No dia 28 de Junho, Bento XVI preside na Basílica de São Paulo Extramuros (Roma) às Vésperas da solenidade litúrgica dos santos Pedro e Paulo, encerrando o Ano Paulino.
P. Joaquim Carreira das Neves, ofm
In Correio do Vouga
26.06.09



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