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Ética a Nicómaco

Ética a Nicómaco trata da felicidade, como projecto essencial do ser humano. Das virtudes, da sensatez, do que se pode e do que se deve fazer. Trata da possibilidade de se existir de acordo com as escolhas que fazemos. De se ser autónomo, de viver com gosto. Trata da procura do prazer pelo prazer – e do prazer pela honra. Da justiça. Das formas de vida que levam á felicidade. Da procura do amor. É um livro fundamental para a cultura do Ocidente.

Da apresentação:

A análise de Aristóteles procura (...) identificar um sentido que nos possa servir como orientação prática. O sentido orientador está presente em cada situação em que de cada vez nos encontramos. É esse o seu campo de acção. Mas a sua presença pode não manifestar-se. É o que, de resto, acontece o mais das vezes. É necessário por isso evocá-lo. Um tal plano prático mesmo que seja interpretado universalmente , será sempre activado apenas por alguém que se encontra numa determinada situação. É para ele que de algum modo apelamos quando não sabemos o que fazer, quando de algum modo nos encontramos perdidos. É, portanto, a situação concreta em que cada um de nós se pode encontrar que especifica o tempo e a maneira de manifestar-se. Compreende-se, desta feita, por que razão as acções autênticas não são acções em geral mas o resultado concreto, se assim se pode dizer, da aplicação do princípio de orientação prática.

As acções são entes que dependem de nós, isto é, a sua existência passa necessariamente por nós e não existe em lado nenhum no mundo real e objectivo. Dependem exclusivamente de nós. A acção é assim o resultado da aplicação do princípio geral de acção. A sua aplicabilidade depende, contudo, da interpelação que nos fazem as circunstâncias particulares e concretas em que de cada vez nos encontramos. Mas, embora possa existir um plano geral da acção que possa ser observado e seja regulador da mesma, ele apenas se torna constitutivo e formador do carácter se e somente se for aplicado no momento oportuno da sua intervenção. E é aí que se experimenta uma enorme dificuldade. As situações concretas que nos interpelam estão bem caracterizadas. São situações que dão um medo tremendo, ou causam um prazer intenso. Quando nos encontramos em tais situações, esboçamos movimentos de reacção. Tentamos fugir ou escapar ao medo, mas também nos podemos atirar na sua direcção ousadamente. Podemos ir em busca de um prazer intenso, mas também podemos abster-nos. Não há aqui dificuldade. As hipóteses esboçam-se espontaneamente. Mas apenas de modo reactivo. A dificuldade está, antes, em encontrar o sentido orientador que nos permite criar um horizonte aquém daquelas reacções. Como diz Aristóteles, encontrar a disposição do meio.

A disposição do meio está numa tensão para o sentido orientador, que evita o excesso e o defeito patológicos que pervertem a nossa capacidade de acção. Agir é possível mas sem haver nunca uma alteração das condições inalienáveis do ser humano. O Humano está sempre durante toda a sua vida exposto a casos-limite, a circunstâncias particulares e concretas. Essas situações são definidas pelo impacto afectivo ou emocional que causam. As afecções manifestam-se pela sua intensidade. Por excesso e por defeito e obrigam sempre a reacções espontâneas. Mas uma reacção espontânea enquanto uma reacção natural não define a priori um carácter, porque, de facto, pode não ter nenhuma ligação com o princípio de acção e não resultar, assim, de nenhum sentido de orientação.

Em causa está precisamente abrir para o Humano um campo, o único, em que eventualmente lhe é deixado algum espaço de manobra. Apenas aí poderá ter cabimento como Humano, isto é, existir de acordo com a possibilidade que o específica essencialmente: a possibilidade de agir de modo excelente. Abrir este espaço depende do poder de compreensão do Humano como o princípio da acção que lhe é ínsito.

Assim, o processo de deliberação, a definição do carácter voluntário em contraposição ao carácter involuntário da acção, a possibilidade de domínio de si em contraposição à sua falta ou perda, a capacidade de decisão, de fazer escolhas e preterir opções, definem a autenticidade e o carácter sério da acção humana. O sentido orientador define os meios para se chegar ao cumprimento, télos, de uma determinada situação. Só nessa altura se age e constitui uma disposição do carácter, um modo de ser permanente que pode ser activado de cada vez que estamos expostos a situações de perda de domínio, da vontade, da capacidade de deliberação e de decisão.

São estas as operações definidoras do carácter. O termo grego traduzido por carácter, êthos, significa um local familiar. Aparece originariamente no plural para designar os abrigos ou moradas dos animais. A análise ética não é, por conseguinte, apenas uma análise do carácter do homem, isto é, das formas de comportamento e das espécies de relacionamento com o mundo, com os outros, consigo, tanto de um modo excelente como de um modo perverso.
A análise ética constitui-se como a abertura do horizonte onde o Humano se pode encontrar verdadeiramente domiciliado. Trata-se, pois, do estudo da condição da possibilidade de o Humano se abrir ao aí onde se pode cumprir.

Esse cumprimento de si, operado no domicílio específico do Humano, é, na sua possibilidade extrema, a felicidade. O Humano encontra-se desde sempre na existência com um fim já em mãos por cumprir. Na experiência fáctica da vida, qualquer que seja o seu grau de consciência, procura-se essa forma plena e completa de ser. É já lançados no encaminhamento disso que desde sempre nos encontramos. Em vista desse limite, sabemo-nos desviados ou perdidos de nós. Em vista desse limite, sabemos também estarmos na sua proximidade e vizinhança, tê-lo atingido. Tem, pois, de se pôr a descoberto as condições de possibilidade para encontrarmos os meios que nos permitam evitar o que nos torna infelizes e miseráveis e ir no encalço do que nos torna verdadeiramente felizes.

Uma tal abertura é feita pela sensatez. Só a sensatez enquanto uma consciência aguda de si e das situações em que de cada vez nos encontramos pode detectar as possibilidades do seu desfecho. Só o esforço constante e alerta de recondução da afecção meramente passiva a um sentido que oriente permite lançar bases para o poder de compreensão das movimentações que nos afastam do que é destruidor e permitem acercar-nos do que verdadeiramente constitui constância e estabilidade. Esse é um trabalho a realizar a partir do interior do próprio homem. Um trabalho que procura encontrar uma morada e o verdadeiro domicílio onde se pode ser.

O Humano está assim lançado para a felicidade. Motivado por ela. Para Aristóteles estar lançado para a felicidade caracteriza essencialmente a existência humana. É por termos um conhecimento deste projecto que nos está dado em mãos que percebemos também estarmos afastados dele ou termos já desistido de ir no seu encalço. Se «ser feliz» é o projecto fundamental da vida humana é também uma possibilidade sua. Jamais poderá esquecer-se de que tem essa possibilidade. Nesse sentido, a felicidade é o fim, télos. O fim enquanto télos não quer dizer a derradeira coisa a acontecer. Télos significa o que é perfeito, isto é, aquilo ao qual nada falta para ser. O Humano existe, assim, por se cumprir enquanto não for feliz. Ser no encaminhamento da felicidade é ser na tensão para o preenchimento dessa expectativa.

Logo no princípio da Ética a Nicómaco, no livro I, a felicidade é definida como «uma certa actividade da alma humana de acordo com a excelência completa». Apenas o livro X esclarece esta definição aparentemente enigmática. A felicidade é identificada com o prazer que resulta da actividade contemplativa. Se no livro I a felicidade é apresentada como o resultado da constituição de uma disposição completa no domínio do ético, sendo a excelência uma disposição ética, ela há-de resultar da formação do carácter. Feliz será o corajoso e o temperado, o generoso e o justo, enfim, o homem de excelência. A felicidade resulta assim do esforço da acção humana, da actuação de acordo com o sentido orientador, oculto na maior parte das situações que se formam concretamente na vida de cada um.

No livro X, contudo, a felicidade é compreendida como o resultado de uma actividade, e na verdade, da actividade por excelência da alma humana, a contemplativa. O olhar puro contemplativo abre para o sublime. E esse olhar constitui a possibilidade radical do Humano. Este encontro, esta dispensação de sentido, de contemplação, dá um prazer puro. É actividade pura. Ser por ser. Neste sentido, a felicidade parece resultar de uma situação aparentemente avessa à situação prática definida ao longo de todo o texto da Ética a Nicómaco. Mas só aparentemente. Também a contemplação, o olhar puro, é uma actividade. O trabalho específico do Humano depende de uma invocação do poder de compreensão que há em si, aquele poder de compreensão intuitiva que não apenas lhe permite olhar o que lhe é dado ver, mas que abre para, e constitui, o sublime. Essa possibilidade é na sua forma uma actividade, o produto extremo do Humano enquanto divino.

O projecto fundamental do Humano é, assim, a constituição daquele poder de compreensão que inunda tudo no seu todo com o seu olhar, tudo sublima. Esconjurar o poder de compreensão no Humano é a sua tentativa para se libertar da lei da morte, existir o mais possível na dimensão divina que pode alcançar. Essa possibilidade dificilmente é mantida na vida de modo permanente. Não é possível permanecer na contemplação pura para sempre. Mas o esforço de criar e recriar a situação teórica é simultaneamente o esforço de ida ao encontro com o fundamento disposicional que nos permite estar em casa, a demanda por um sítio onde se possa ser, o projecto da saudade de um lugar para si, naquela atmosfera rarefeita em que o Humano existe pura e simplesmente assim só por existir.

 

António e Castro Caeiro
In Ética a Nicómaco, ed. Quetzal
13.07.09

Capa

Ética a Nicomaco

Autor
Aristóteles
Tradução, prefácio e notas:
António de Castro Caeiro

Editora
Quetzal

Páginas
318

Preço
€ 16,16

ISBN
978-972-564-803-2

















































































































 

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