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Cultura contemporânea

"Há qualquer coisa a meter-se-me pelos olhos dentro e ainda não consegui ver o que é"

Podemos intervir no futuro, no próximo futuro? Podemos, certamente. Não no sentido de o determinar, moldar, profetizar, ou encalhar numa utopia ou numa distopia. Mas sabemos que cada um de nós incidentalmente, ou todos em conjunto, nas decisões diárias, nos actos, nos episódios, nas ficções construídas, nas actualizações do real que produzimos, estamos a interferir no futuro. E, em alguns casos, e para o futuro mais próximo, até estamos habilitados a estabelecer previsões, ou seja, a construir extensões racionalizadas do presente, representações mais ou menos optimistas conforme a avaliação que dele fazemos e conforme o desejo de intervirmos para o acautelar. O futuro existe e, apesar da imprevisibilidade e do acidente, podemos intervir para que nem tudo seja informação sem destinatário, actividade sem desejo de realização.

O Modernismo, que continua a ser uma arqueologia da actualidade, inventou a noção cultural de que era possível ser mais veloz que o próprio futuro; juntamente com a tecnologia e a ciência e com a ruptura com os cânones, quis submeter o tempo ao espaço, gerando uma energia criativa invulgar. O Pós-Modernismo por seu lado, veio desacelerar essa energia e, acrescentando a difusão do tempo e do espaço e terminando com as grandes narrativas, insistiu muito no presente e na actualidade, que adquiriram um estatuto de categoria que condicionou projectos e programas, assim como a operatividade de conceitos. Fascinante pelos seus contrastes, a pós-modernidade conduziu tudo ao limite e nas suas contradições relegou para o mercado e para a espectacularidade das imagens todas as visões (!) possíveis sobre o futuro. Guy Débord teve razão antes do tempo e, o filme de Ridley Scott, “Blade Runner”, foi visionário, as Torres Petronas, em Kuala Lumpur, materializam a obsessão pelo record, pela ultrapassagem, e “Still/Here”, de Bill T. Jones, foi a coreografia sobre a luta vencedora contra a morte; todos eles são testemunhos da urgência imposta à condição humana neste período da história.

Vivemos já no século XXI, é um facto; a globalização é outro facto. E a estes dois factos que balizam a vida actual - os países, a economia, as práticas culturais, a disseminação das artes - e que alteraram o mundo como nós o conhecíamos há vinte anos atrás, outros devem ser acrescentados, que enquadram o tempo e o espaço contemporâneos. Um pequeno conjunto desses factos, listados por Fareed Zakaria em “The Post American World” (2008), diz-nos como o século XXI é outro: em 2006 e 2007, 124 países cresceram a uma taxa de 4%, ou superior, número que inclui mais de trinta países de África, o que representa 2/3 do continente; das 25 empresas mais promissoras, 4 são, respectivamente, do Brasil, do México, da Coreia do Sul e de Taiwan, 3 são da Índia, 2 da China, 1 da Argentina, 1 do Chile, 1 da Malásia e outra da África do Sul; ao passo que o maior centro comercial do mundo está agora na China. A par deste conjunto de indicadores enumerados, pelo editorialista da Newsweek, muitos outros poderiam ser invocados, como a alteração dos produtores dos media, a disseminação de objectos, marcas e músicas provenientes do Japão, da China, bem como do Brasil, da África do Sul ou da Nigéria, a emergência de novos coleccionadores de arte - mexicanos, brasileiros, russos, chineses - acompanhada pela emergência de exposições de arte contemporânea de artistas de países exteriores aos tradicionais circuitos da produção artística, como a China, o Brasil e países do Médio Oriente, que ocupam prestigiados espaços expositivos em Londres, Berlim e Nova Iorque. Algumas das melhores e mais inovadoras companhias de teatro, como a Handspring Puppet Company, vêm de cidades como Joanesburgo e, a terceira cidade do mundo onde se produz mais filmes, é Nollyood, na Nigéria. As pessoas deslocam-se e os seus fluxos e os dos bens são permanentes, aumentam todos os dias e alteram-se as suas direcções: actualmente, são mais os portugueses que imigram para Angola, do que os angolanos para Portugal. Lojas chinesas encontram-se tanto em Lisboa como em Maputo ou no Mindelo e a maioria dos artistas mais cotados das galerias de Chelsea são das diásporas latino-americanas, chinesas e do médio-oriente.

O Mundo está diferente e isso implica uma responsabilidade maior para os que nele têm capacidade de intervenção. Há uma personagem de “À Espera dos Bárbaros”, de J.M. Coetze, que diz «Há qualquer coisa a meter-se-me pelos olhos dentro e ainda não consegui ver o que é». Mesmo assim, ou por isso mesmo, é fundamental estar disponível para o que vem, na sua estranheza e na sua imprevisibilidade, e as crises são momentos cruciais para a intervenção que modifica, altera, recoloca as questões centrais. Foi graças a este espírito que os estudos pós-coloniais – hoje já alojados nas universidades e já sem a carga de algum panfletarismo que, necessariamente, tiveram no seu início - que nós europeus nos redescobrimos, na construção de outras narrativas mais justas sobre a história e, sobretudo, na possibilidade que nos é agora dada de beneficiar da memória e da conciliação. E aqui a importância das novas narrativas – que no caso dos países da América Latina e Caraíbas já começaram há mais tempo e que, no caso de África e em alguns países de Oriente, são mais recentes – é fulcral para agir no futuro próximo. De uma forma geral, e mesmo em situações conturbadas, estas novas narrativas surgidas das independências transportam com elas uma energia e uma vitalidade raras. São elaboradas por populações e criadores de países à procura de construírem novas identidades e, com elas, novas formas de representarem e viverem o mundo. Não são países perfeitos, nem paradisíacos. Em muitos deles há guerra, corrupção, racismo e xenofobia, mesmo entre africanos, ou ressentimentos, entre povos latino-americanos. Mas, que sabemos nós das suas realidades e das suas razões para os julgarmos tão apressadamente, como é regra geral? Sabemos pouco e é fulcral sabermos muito mais.

 

Este excerto faz parte do texto que enquadra o programa do «Próximo Futuro», conjunto de iniciativas multi-temáticas que a Fundação Calouste Gulbenkian iniciará no próximo mês de Junho e que se prolongará durante três anos.

 

António Pinto Ribeiro
Programador da Fundação Calouste Gulbenkian
In Fundação Calouste Gulbenkian
27.05.09

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Sara & André





































































































 

 

 

 

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