Alentejo Barroco: A Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres em Beja
A edição de 26.01.2008 do “Expresso” abre um espaço de meia página ao livro “A Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres em Beja”, revelando que “a recuperação de um templo singular revela acção pioneira da defesa do património”.
Apreciação crítica feita pelo jornalista Mário Robalo:
Não é possível escrever sobre este livro sem citar o trabalho de salvaguarda e recuperação do património cultual e artístico realizado pela diocese de Beja, ao longo das duas últimas décadas, e reconhecido pela União Europeia ao atribuir-lhe o prémio “Europa Nostra” em 2005.
A diocese bejense já preservou meio milhar de templos, inventariou mais de 200 mil bens culturais e implantou uma rede museológica – acção pioneira reconhecida pelo Museu do Louvre, que estabeleceu uma parceria técnico-científica com o Departamento Histórico e Artístico da Diocese de Beja (DHADB).
Este livro resgata a memória de uma das mais significativas intervenções daquele organismo – a recuperação da igreja de Nossa Senhora dos Prazeres, construída em 1672, adossada à muralha medieval. O templo é o mais representativo de um estilo «sui generis»: a arte total do Barroco, expressa na talha, azulejaria, escultura e pintura que lhe recobrem a totalidade dos espaços.2
“A remoção de camadas e camadas de vernizes oxidados, negro do fumo das velas, resíduos de argamassas e cal, fez ressuscitar um património de insuspeita opulência plástica e simbólica, há muito eclipsado”, escreve José António Falcão, director do DHADB, recordando a exigência dos trabalhos de investigação e de recuperação ao longo de 15 anos, e que terminaram em 2006.
O movimento de renovação estética na segunda metade do século XVII em Beja resulta de um orgulho da cidade que, desde 1654, se tornara a cabeça da Casa do Infantado chefiada por D. Pedro II, o monarca reinante quando o templo se construiu, recorda Vítor Serrão, director do Instituto de História da Arte da Universidade de Lisboa. Assim se explica, sublinha este historiador, a construção daquele templo “num centro provincial de importância secundária no aro alentejano, como era no século XVII a cidade de Beja”. As investigações de Vítor Serrão nos fundos notariais do Arquivo Distrital de Beja “apresentaram resultados surpreendentes para o conhecimento do passado da igreja e permitiram reconstituir minuciosamente as suas campanhas artísticas”, assinala José A. Falcão. Um expressivo conjunto de fotografias dá conta do luxo cenográfico conseguido pelo entrosamento dos materiais – azulejos, talha, pintura e imaginária – do templo que Vítor Serrão considera “exemplo ímpar da cenografia barroca de arte total”.
A Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres
Longamente meditado pelas autoridades concelhias, o propósito de facilitar o acesso á principal praça de Beja levou à abertura, em finais do século XVI (ou já em inícios do seguinte), de uma porta na muralha medieval, perto da Corredoura. Foi junto a este postigo que se construiu, poucas décadas mais tarde, encostada ao pano da fortaleza, a igreja de Nossa Senhora dos Prazeres. A escolha do sítio, contíguo à velha ermida de Santo Estêvão, cujo adro passou a partilhar, explica-se não só por ser um dos mais frequentados da urbe, mas também pelo costume, usual em terras do Sul, de se assinalar a protecção simbólica de cada uma das principais entradas das povoações com a presença de uma capela. O título adoptado, por seu turno, reflecte uma devoção muito patente entre nós na época pós-tridentina, quando o culto da Virgem atingiu u clímax.
A veneração tributada a Nossa Senhora dos Prazeres constitui um reflexo do intensificar da piedade mariana em finais da Idade Média e, à semelhança da elaboração dos Mistérios Dolorosos e Gozosos do rosário, assenta no paralelismo entre as Sete Dores e as Sete Alegrias da Mãe de Deus, tendo alcançado vastas ressonâncias litúrgicas e devocionais. Conheceu depois significativo acréscimo em meados do século XVI, devido a um acontecimento milagroso que provocaria grande comoção. Junto à fonte de certa quinta do vale de Alcântara, no termo de Lisboa, foi encontrada uma imagem de Maria que comunicou virtudes curativas às águas deste manancial. Na mesma ocasião, a própria Virgem apareceu a uma menina, indicando-lhe que dissesse aos pais e aos vizinhos para erguerem aí uma capela em Sua honra. Construída a ermida e posta no altar a dita imagem, começaram os milagres, atraindo ao local inúmeros devotos. O fenómeno despertou um intenso surto devocional e em vários pontos do país foram construídas igrejas e capelas sob a mesma invocação.
Referência cimeira de tão impressionante série de fundações, a igreja que consideramos espelha a implantação local de um cultor de vasta repercussão. São escassamente conhecidas as circunstâncias que rodearam a sua construção, talvez nascida da iniciativa de particulares. Em 1672 já se encontrava concluída, a ajuizar pela data gravada na verga do portal. Do ponto de vista tipológico, o edifício segue um modelo característico da arte maneirista portuguesa, com planta longitudinal, dotada de uma só nave, coberta por abóbada de berço, capela-mor mais estreita e mais baixa, com paredes perpendiculares ao arco cruzeiro e abside semicircular, rematada por cúpula e lanternim, e sacristia quadrangular adossada, também coberta por abóbada. À circunspecção dos alçados exteriores, própria da arquitectura chã, que dominava o panorama nacional, corresponde um interior de sumptuosa cenografia, verdadeira obra de arte total. A azulejaria, a escultura e a pintura afluem aqui, mediante um sistema deveras coerente, em termos teológicos e plásticos, na criação de um “teatro sagrado” que permite antever as glórias do Céu.
Iniciado, quanto ao essencial, à volta de 1680, este ciclo decorativo alongou-se, pelo que as fontes escritas mostram, durante mais de duas décadas, pondo em realce a crescente influência, nos principais círculos bejenses, da Irmandade de Nossa Senhora dos Prazeres. Tiveram nisto papel destacado duas figuras notáveis da sociedade local, Manuel Álvares Azeitado, opulento e prestigiado mercador, que ocupou importantes cargos públicos, com realce para a vereação da Câmara, e o P. Manuel Ledo Gago. O seu desempenho, ao longo de sucessivos mandatos, respectivamente como reitor e como escrivão da confraria, foi decisivo para a fazer brilhar, trazendo-lhe outrossim desafogo económico, graças à multiplicação das esmolas dos fiéis e à obtenção de alguns legados pios. Mercê de tudo isto, o santuário dos Prazeres tornou-se um dos principais centros da piedade das gentes pacenses na época barroca, como o atestam as importantes ofertas votivas que recebeu, incluindo um notável núcleo de exemplares de joalharia. Alguns deles ornamentam, rotativamente, a imagem seiscentista da Virgem, escultura “de vestir” que a devoção da nobreza pacense dotou com rico enxoval.
Formando uma oval irregular ao gosto barroco, a capela-mor recebeu modificações para a sagração do novo altar, em 12 de Abril de 1779, por D. Fr. Manuel do Cenáculo Villas Boas, primeiro bispo de Beja após a refundação da diocese. Devoto de Nossa Senhora dos Prazeres, o insigne prelado contribuiu para reforçar a notoriedade de que gozava a igreja. Vincula-se ao seu mecenato a oferta da cadeira e do par de credências pertencentes ao acervo da antiga Irmandade, valiosos testemunhos do mobiliário meridional da segunda metade do século XVIII. Por esta data as celebrações já ultrapassavam, em esplendor e em repercussão pública, as do santuário “rival”, Nossa Senhora ao Pé da Cruz, sito no bairro dos Pelames, então ainda periférico, e cujas raízes ascendem ao crepúsculo da Idade Média.
Na sacristia continua a preponderar a fisionomia das campanhas de obras dos finais de Seiscentos, destacando-se o altar-arcaz, de talha dourada e acharoada, e o lavabo de pedra de Trigaches, com registos em forma de carrancas. Das pinturas murais que guarneciam primordialmente este espaço restam alguns vestígios, como um medalhão com a figura de São João Evangelista e um trecho de revestimento de um arco que imita azulejos de “figura avulsa”.
Com o advento do Liberalismo, a Irmandade viu-se esbulhada de grande parte dos capitais e bens de raiz que lhe pertenciam, devido à legislação desamortizadora. Logrou, no entanto, vencer sem problemas de maior esta conjuntura de aperto, através da protecção de famílias gradas da cidade. Tal como sucedera na época barroca, a igreja dos Prazeres foi um lugar-chave da Beja romântica, frequentado pela aristocracia e pela burguesia «chic». O seu espólio enriqueceu-se com alfaias oriundas de casas religiosas extintas. Ao convento da Conceição pertenceu o “Cristo em Oração no Horto”, obra de marcado pendor bidimensional, típico da produção dos entalhadores regionais na segunda metade do século XVII. Particular interesse iconográfico possui o “Senhor do Triunfo”, escultura do primeiro quartel do século XVIII que evoca a Ressurreição de Jesus e a Sua vitória sobre a Morte, simbolizada por uma caveira em hipertrofia. A imagem de “São Sebastião”, santo muito venerado no Alentejo como protector das doenças, remonta ao mesmo período e destaca-se pelo ambíguo naturalismo da figura – tendência que redunda, no tratamento da árvore a que está amarrado, por um gosto ornamental arcaizante.
Ostentando na frontaria um fecho de abóbada da época manuelina, o edifício anexo à igreja albergava a casa do despacho e outras dependências da Irmandade de Nossa Senhora dos Prazeres. Mais tarde serviu de residência do capelão. Hoje tem um uso museológico e constitui o núcleo primordial do renascido Museu Episcopal. O nome invoca a memória da instituição fundada por 1892 por Mons. Amadeu ruas, sob a égide do bispo D. António Xavier de Sousa Monteiro, para evitar a dispersão das obras de arte existentes nos últimos conventos e mosteiros femininos de Beja que se foram extinguindo, em penosa agonia, ao longo da segunda metade do século XIX. Este museu desapareceu com o advento da República e o respectivo acervo acabaria por ser parcialmente integrado no Museu Regional, mas o ideal que esteve na sua génese – preservar, estudar e divulgar o património religioso pacense – continua vivo.
Mário Robalo (crítica ao livro) | José António Falcão ("A Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres")
Publicado em 28.01.2008
Topo | Voltar | Enviar | Imprimir
A Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres em Beja
Arte e História de um Espaço Barroco (1672-1698)
Autores
Vítor Serrão
Franciso Lameira
José António Falcão
Editora
Alêtheia Editores
Páginas
140
Data
2007
Preço
€ 31,50
ISBN
978-989-622-121-8