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Diálogo Fé-Cultura

Três apelos aos cristãos

É decisivo que os cristãos experimentem hoje, mais do que nunca, juntamente com os outros homens, buscar caminhos em que a paridade dos direitos e da dignidade das pessoas, a justiça económica, a igualdade de todos os cidadãos, seja qual for a fé ou a ética a que pertençam, se possam realizar na polis: nisto se decide, mais uma vez ainda, a sua fidelidade ao evangelho. Mas tal acontecerá se souberem viver e realizar três condições (...).

 

O primado da fé

A revelação de Deus foi-nos dada através da existência humana de Jesus: por isso, é na adesão a esta existência humana que se afere todo o discurso sobre Deus. Hoje, os cristãos são, de facto, capazes de compreender que também o «está escrito» pode ser ambíguo, e que o critério de discernimento derradeiro continua a ser apenas a conformidade com o Deus de que Jesus Cristo nos fez a narrativa. Penso que, se os crentes souberem verdadeiramente chegar a este conhecimento da fé e partilhar o acontecimento de salvação, que foi a humanização de Deus em Jesus Cristo, saberão então opor-se verdadeiramente a toda a possível deriva idolátrica. Pôr, de novo, no centro a humanidade de Jesus é o que permite recuperar a gramática humana de base necessária para a transmissão hodierna da fé, mas necessária também para conter a barbárie que se difunde na sociedade, uma barbárie que já não parece encontrar obstáculos. Sim, reafirmar o primado da fé em Jesus Cristo, e também da existência cristã, significa preservar o cristianismo de toda a recaída ou redução a religião.

 

A reserva escatológica

O segundo ponto pelo qual os cristãos se devem medir é a necessidade de integrarem, na sua vivência, as realidades últimas. É aquilo que chamamos a reserva escatológica, no sentido de que a vida se não pode limitar ao nosso horizonte mundano. É inaceitável reduzir a valoração do anúncio que os cristãos fazem à eficácia concreta, ao êxito das suas intervenções, ao número das multidões que enchem as ruas e as praças. Seria render-se à lógica mundana da sociedade do espectáculo, àquela lógica perversa que identifica o viver com o realizar actividades, e actividades de êxito prescindindo da sua finalidade, do seu real carácter incisivo. Pelo contrário, a dimensão escatológica relativiza toda a realização na expectativa do regresso do Senhor e da instauração da sua justiça. É, pois, muito importante acolher esta verdade: que o nosso hoje se não identifica com o «ainda não», mas, se for vivido com responsabilidade cristã e fidelidade aos homens, pode tornar-se aceleração do «ainda não», do Reino de Deus. Isto, sim, é «relativismo cristão», capaz de ler todas as coisas em relação com o momento em que a história será ostensivamente julgada e as obras dos homens surgirão no seu autêntico valor.

 

Uma arte da comunicação

Só pela recentração do primado da fé na humanidade de Jesus e pela recuperação da dimensão escatológica da fé - o melhor antídoto contra o mortífero oximoro da posse da verdade - se pode agora compreender de novo o tema da comunicação e do diálogo sob dois aspectos: o estilo da «sinodalidade» a nível intra-eclesial e o do diálogo com os homens na história. De facto, a sinodalidade, o «caminhar conjuntamente» no seio da Igreja acompanha a capacidade dos cristãos para dialogar com os outros homens. Não é credível uma Igreja que se diz em diálogo com os homens não cristãos e com as religiões, mas não é capaz de suscitar em si debates, confrontos sérios na liberdade e na aceitação recíproca. Pois cada cristão que cultive a sua pertença a Cristo mediante a inserção na experiência orante e eclesial está autorizado a falar com a necessária franqueza na comunidade: o diálogo entre cristãos e não cristãos exige, por isso, franqueza e humildade, também no seio da própria communitas. Sem estas atitudes, não se edifica nenhuma casa de comunhão e não se elabora nenhuma ética partilhada. E quem sofre com isso é, efectivamente, a sociedade inteira.

 

Adesão ao evangelho e escuta dos homens

Na situação actual, (...) muitos auspiciam um cristianismo vivido segundo o paradigma da religião forte e encarnado em minorias activas e convincentes, capazes de garantir identidade e visibilidade que se impõem, porque pensadas numa estratégia defensiva e de concorrência. Quanto a mim, afirmo, ao invés, que só vivendo a diferença cristã na companhia dos homens se inicia uma dinâmica que abala a indiferença à fé cristã e às suas exigências, típica também de muitos autoproclamados católicos. Se, pelo contrário, nos contentarmos com um cristianismo «mínimo», com a existência de «um rosto popular do catolicismo», com «uma presença capilar do catolicismo na sociedade», em prejuízo da qualidade cristã da vida e, por conseguinte, do testemunho, corre-se o risco de ele se tornar sal que perde o seu sabor, de se ver esmorecer a força do reino que, como fermento, faz fermentar toda a massa, de ser uma cidade situada no monte, mas privada de esplendor que atrai o olhar, de se descobrir como lâmpada posta no candelabro, mas incapaz de iluminar seja quem for.

Creio, por isso, que, em vista de uma recuperação do primado da fé, da expectativa das coisas últimas e de uma arte da comunicação autêntica, continua a ser indispensável a leitura e o conhecimento do evangelho entre todos os que fazem parte da comunidade cristã. De facto, se é verdade que o cristianismo não é a religião do Livro, é igualmente verdadeiro que só o evangelho permite o conhecimento de Jesus Cristo, centro e coração do cristianismo. «A ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo», afirmava S. Jerónimo, uma expressão que foi retomada propositadamente pelo Concílio Vaticano II. Que figura de cristão poderá, alguma vez, emergir sem um conhecimento directo de Jesus Cristo e da sua humanidade exemplar, como a que pode derivar da leitura e da familiaridade com os evangelhos? Um cristianismo em que o evangelho não inspira a vida, a esperança e a linguagem dos crentes, como evitará tornar-se ritual, devocional, como deixará de se reduzir a facto cultural ou social, se é que não mesmo a fenómeno folclórico ou supersticioso? Só com a leitura pessoal e directa da Bíblia - e, em primeiro lugar, dos evangelhos - poderá o cristão alimentara sua fé e robustecer a sua capacidade de dela dar testemunho.

Neste sentido, seria, pois, desejável um percurso de sério aprofundamento na comunidade cristã que, em suma, se dê conta de duas exigências. A primeira consiste em pôr o acento no evangelho, naquele texto que o Concílio quis e soube colocar de novo nas mãos dos católicos na sua integridade e riqueza, após séculos em que a Escritura esteve exilada da catequese e da pregação: uns espantam-se, outros lamentam-se perante o facto de que nem sequer um quinto dos italianos afirma ter lido os quatro evangelhos. Como é possível, ignorando o evangelho, conhecer Jesus Cristo e ver nele o Senhor? Como se pode apreender a sua humanidade exemplar, a humanização de Deus, «para nos ensinar a viver como homens neste mundo», segundo a expressão de S. Paulo? Como perceber que a meta da humanização de Deus é a autêntica humanização do homem?

A segunda exigência é a escuta da humanidade de hoje, de homens e mulheres: uma escuta que deve ter lugar através da emergência da dimensão antropológica. Sim, na conjunção do evangelho e do homem, da fé e da dimensão antropológica, joga-se hoje o futuro da fé cristã. Se houve e existe um fracasso, é o da transmissão, da «tradição» da fé, mas o antídoto consiste apenas no restabelecimento do primado do evangelho e da escuta do humano. Num período em que tudo está posto em causa - a concepção da relação com o seu corpo, com o outro sexo, com o sofrimento, com o tempo, com a natureza ... - é necessário elaborar respostas de sabedoria que digam quem é o ser humano e como se pode humanizar mediante uma qualidade de vida pessoal e de convivência.

A religião precisa do exercício da razão para não cair em formas paganizantes, mágicas ou supersticiosas, mas reclama também que este exercício racional tenha lugar, não sem os outros mas com os outros, todos habitantes da mesma polis. Em conjunto, cristãos e não cristãos, devemos levantar a questão antropológica: quem é o homem? Para onde vai? Como pode viver numa sociedade que luta contra a barbárie e a favor da humanização? Das respostas que cada qual, a partir do seu património espiritual, souber dar depende, sem dúvida, o nosso futuro, mas também, já desde hoje, a qualidade da nossa vida pessoal e da convivência civil.

 

Enzo Bianchi
In Para uma ética partilhada, ed. Pedra Angular
15.09.09 | Atualizado em 14.01.14

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