Leitura
Uma Viagem à Índia
O autor de “Uma Viagem à Índia”, Gonçalo M. Tavares, conta que a ideia desta obra “partiu da ideia de responsabilidade em relação ao passado”. Acrescentando que, para si, “o que diferencia o homem e o bicho é esta capacidade de memória das gerações anteriores". "Esta ideia de conservar a memória”, precisou.
Admitiu a “aproximação amorosa” em relação a 'Os Lusíadas' e acrescenta que deseja “deixar sinais para gerações futuras”.
“Uma Viagem à Índia” (ed. Caminho) é um livro que, segundo o escritor, pede uma mudança de posição do leitor por obrigar este a arranjar uma nova posição para ler e pela possibilidade de ler fragmentos, a possibilidade de “abrir ao acaso e ler”.
O livro começou a ser escrito em 2003 e a sua revisão final demorou um ano.
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Prefácio
Eduardo Lourenço
Esta repetição da viagem iniciática do Ocidente, tendo como «modelo» a dos Lusíadas, é uma original revisitação da mitologia cultural e literária do mesmo Ocidente, não como exercício sofisticado de des-construção (que também é) mas como versão lúdica e paródica de uma quête, aleatória e como tal assumida. Não sei se existe entre nós - e mesmo algures - um objeto ficcional tão intrinsecamente «literário», quer dizer, o de uma «viagem» que é, em múltiplos sentidos, o da construção do barco literário da mesma viagem. O que lemos releva do segundo ou do terceiro grau. Já Os Lusíadas foram e são texto intra textual e não apenas como todos (pela natureza não «real» dos textos). Este prosaico poema, antipoema e hiperpoema, com consciência aguda da sua ficcionalidade, navega e vive entre os ecos de mil textos-objetos do nosso imaginário de leitores. Como todos os grandes livros, e este é um deles. As peripécias da aventura dramático-burlesca de Bloom - referência hiperliterária, só existe em diálogo com outras de Os Lusíadas ou encontram nele motivos de reinvenção surpreendente, ou em si mesma ou pela música vê olhar) com que o narrador (autor) as acompanha. De maneira que esta é sempre uma dupla viagem. E no coração dela e como seu fogo frio uma devastadora e radical ironia que em permanência desloca o texto para paragens não percorridas.
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Quando chegámos à Índia - os que por nós lá foram para sempre e lá ficaram -, há muito que ela era para o Ocidente a porta aberta e misteriosa para uma quietude capaz de nos curar do nosso demoníaco desassossego. Mas foi a nossa chegada que a converteu para os outros em lugar de todos os sonhos e fantasmagorias. Para nós, todas as viagens são «viagens à Índia», e não é o menor dos seus desafios e atrevimentos que o Gonçalo M. Tavares nos proponha repetir a viagem arquétipo à terra onde realidade e sonho se confundem, subvertendo o sentido da viagem canónica do Ocidente em aventura da ilusão de todas as buscas divinas e epopeia luminosa da deceção. Uma deceção à altura do desespero e da agonia ocidental no momento mesmo em que a sua história e meta-história, como pulsão conquistadora e épica, converteu o Ocidente inteiro e a sua cultura sob o signo de Ulisses em êxtase vazio, fascinado pelo esplendor do seu presente sem futuro utópico, glosando sem descanso a sua proliferante ausência de sentido.
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A singular e provocante Viagem à Índia de Gonçalo M. Tavares não é, contudo, a epopeia desta espécie de terra de ninguém do sentido, em que o Ocidente se converteu, mas a travessia e o confronto, ao mesmo tempo intemerato e burlesco, desse caos, não para descobrir nele uma mítica porta de saída mais ilusória ainda que as já conhecidas, mas para encarar a sério o seu paradoxal enigma. É apenas, num travestimento sem precedentes do texto epopaico (Os Lusíadas, a seu modo, também é já texto de deceção, por conta da realidade), uma viagem ao fim do nosso fabuloso presente como glosa interminável da existência como tédio de si mesma. Partindo como Gama de Lisboa, e diferindo o mais que pode e sabe, como Ulisses, não o regresso, mas o «fim» da Viagem, Bloom, o seu tão célebre e literário herói, não contemplará (como a humanidade inteira) a face de Deus ou as pegadas de Deus, que no espelho da índia imaginava contemplar. Mas não volverá o mesmo. Agora sabe o que já pressentia. Que não viajamos para nenhum paraíso. Que todas as viagens são sempre um regresso ao passado de onde nunca saímos.
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Uma Viagem à Índia não recomeça em tempos outros a eterna busca do Oriente, de todos os Orientes onde o Gama já aportou por nós, mas tenta proeza mais temerosa, a da reescrita da aventura verbal onde ela está consagrada, como a de Homero para Joyce. E sobretudo a contraepopeia, ao mesmo tempo luminosa, paródica e burlesca, de um herói de tudo como nada que subverte todas as versões épicas da Viagem que inventámos e que é sempre, ao fim e ao cabo, a não viagem que nós próprios somos. Não como embarcados, à maneira de Pascal, mas como viajados por conta de ninguém. A nossa fabulosa aventura foi sempre sem sujeito como os gregos já sabiam. Mas agora navegamos pela primeira vez e a sério no mar do nosso sublime, ou apenas trivial e universal, anonimato. Seria - e também é - o cúmulo do niilismo se o seu autor-herói, primeiro não viajante consciente da ficcionalidade de todas as buscas do Graal, não nos acompanhasse ou se acompanhasse, na ausência de musa, o que ele chama «a velha ironia»
que por vezes utiliza[rá] para evitar
rir às gargalhadas, ou chorar.»
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Para nós, todas as viagens são viagens à Índia. As do passado porque para lá se dirigiam sem saber que a alcançariam. De tão percorridas não precisam de ser invocadas. São pura legenda. Gonçalo M. Tavares deixa-as no limbo em que se dissolveram: Jerusalém, Atenas, Roma, o Graal, o novo mundo, a própria natureza, como labirinto ávido de catástrofe, como se fosse a Cassandra de si mesma, já estão inscritas no seu futuro esquecimento. E importam pouco comparadas com a única viagem que um século sem viagens possíveis nos mares do mundo exige a Bloom, o Ulisses do século XXI, «inteiramente ignorado dos antigos», como diria Pessoa, o nosso Bloom caseiro, também ele em busca das famosas «índias que não vêm nos mapas».
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O título provocante que Gonçalo M. Tavares deu à sua original odisseia releva menos de Pessoa - sonhador do puro sonho - que de Borges, fabricante da pura ficção. E mesmo de pleonástica ficção. A Lisboa de onde Bloom parte, como o Gama, para a índia, é e não é a dos Lusíadas, que já era a de um passado eterno quando Camões, evocando-a, a inscreve no nosso imaginário mítico. É só uma capital de um século na sua hora zero, todo presente, e que perdeu ou dispensa todas as bússolas dos viajantes do passado em busca do futuro. O universo de Gonçalo M. Tavares é um mar inavegável à maneira antiga. Mais se parece a um Titanic repousando nas profundezas de um mar de destinos imóveis no único tempo que nos choca, nos fascina e nos convoca, sempre em atraso para evocar as suas aventuras terminadas. Uma Viagem à Índia não é uma versão insólita, para muitos leitores hermética, nem da pura imagem navegante que conta do mar anterior as novas aventuras, nem a pura viagem onírica da Ode Marítima à busca de um Deus que nenhuma baleia branca assinala. E uma viagem menos epopeia que irónica travessia de um espaço mitológico, de nós como Ocidentais, imersos, se não submersos, pelos sonhos dos outros, revividos como nossos e dos nossos como de ninguém.
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O Virgílio desta navegação é Bloom, o nosso Ulisses convertido em literatura e aqui devolvido «à vida» de todas as grandes proezas que mil textos disseminados com ciência e divertida visão de um amante virtual de banda desenhada ilustram a policiesca, surrealizante, e hiper-realística aventura. O autor de Jerusalém celebrizou-se entre nós, e depois no vasto mundo, pelo olhar extraterrestre com que tão familiarmente subverte e converte a visão e a vivência do nosso quotidiano, transfigurando-as, como um prestidigitador à Buster Keaton, numa cena de magia unindo a geometria e o delírio a frio. Com alguma sombra de Pessoa - maior ainda a de Whitman - mas sem lágrimas recalcadas. A inicial Dublin do seu Bloom é Londres, a mais viva e morta das nossas capitais, onde os fantasmas conjugados de Sherlock Holmes e Agatha Christie lhe surgem numa mistura deliciosa de história policial e viagem heteróclita entre as mil tenebrosas aventuras da cidade de um quotidiano fantástico como «armazém metafísico». Mas há outras, como Paris servindo-lhe de Ilha dos Amores.
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O dispositivo de Uma Viagem à Índia é o de um poema provocantemente épico e antiépico. A sua realidade é a de um romance não menos provocantemente inscrito nos «cantos» e «estâncias», ao mesmo tempo prosaicas e hiperliterárias pelos ecos de todas as peripécias que lhe são como mar inacessível à plácida superfície do seu poema, total e totalizante. A sua «viagem» não desconhece todas as viagens já feitas. Sabe-se outra, como a de Camões se desejou. E entre tudo e nada, ao mesmo tempo trivial e sublime, mas hiperconsciente do seu caráter desesperado, da sua necessidade, da sua in-transcendência transcendente. Salvo a do seu herói-anti-herói num mundo e num tempo onde os ícones são mais visíveis que os «homens». Bloom é «o» herói do que vê e, o que vê e o vê a ele, nunca existiu assim. Por isso o seu romance-poema ou poema-romance, tão futurante pelo seu anacronismo paradoxal, é de um futurismo mais convincente que o de Houellebecq e devolve ao não escrito o que nos foi tudo, a começar pela «divina» Grécia que já não somos ou não merecemos:
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«É certo que os Gregos tentaram aperfeiçoar
tanto a Verdade quanto o gesto,
porém as ideias foram de longe as coisas mais mudadas.
Eis pois o momento de colocar a Grécia
de cabeça para baixo
e de lhe esvaziar os bolsos, caro Bloom.»
Não se diga que o autor - criador de Bloom - não assuma o mais diretamente possível a sua aventura real e metafísica. O herói vai à índia procurando «sabedoria» e «esquecimento». Tudo o que o Ocidente nunca teve e não desejou. A sua carta de prego:
«Esperamos, pois, Bloom, que cresças e que crescendo
vás direto à realidade
e não pares. Porque não basta
encostares-te aos acontecimentos,
o que pensámos para ti é bem mais profundo,
não basta conheceres sete teorias,
terás que subir a sete altas montanhas.
E atravessar ainda os continentes
como se a terra fosse uma extensão temporal
capaz de medir os teus dias.»
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Excursão mística? Os deuses não são o assunto de Bloom. Ou do seu criador:
«Os deuses atuam
como se não existissem, e assim
não existem, de facto, com extrema eficácia.»
Contudo é a sua inexistência mesma quem comunica a todas as aventuras ao rés do real mais banal, e só por isso sublime, uma dimensão irónica e transcendentemente sarcástica, música de fundo que articula todas as visões e, sobretudo, todas as vivências em torno da visão original onde tudo e nada se defrontam e se combatem. É de uma negrura absoluta esta viagem à índia, pátria arcaica de nós mesmos como Espírito, entre fantasmas e vampiros de que esta cruel e tónica Viagem se alimenta. Nenhuma das ilusões que nos fazem viver e de onde emergimos, mesmo a mais sublimada, escapa ao seu olhar de anatomista dos nossos sonhos divinos. Bloom é um Édipo que não está disposto a vazar os olhos por um pecado de que não é sujeito. O mundo nunca conheceu perfeição alguma digna de adoração.
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«E o mundo não tem metade
porque nunca está inteiro [...].
O mundo nunca está completo:
faltam pessoas que nos morreram.»
Bloom (ou o seu criador) não desce aos infernos para resgatar, como o incauto Orfeu, a Eurídice, que perdeu por culpa paterna. Por sua causa matou o seu próprio pai. E esse é o «motivo», a causa original da sua viagem. Buscar água que o lave do seu crime irremível, como a do Ganges, feito só de água lustral. A visão de Gonçalo M. Tavares da Índia quando sem pressa aí chega, se é que alguém aí chega («Porque à Índia não se chega, meu caro, na Índia caminha-se») é só por si mitologia e geografia da alma e um prodigioso retraio desse continente onde a religião não é uma crença mas o ar que se respira, a única onde a água suja da vida redime todas as misérias. Essa água que «embebeda mais que o vinho e seduz tanto como as mulheres jovens»...
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Uma Viagem à Índia não é apenas uma busca a essa terra da promissão da alma onde um Ocidente sem ela imagina regressar até descobrir, como Bloom, que os seus «gurus» são vulgares e suspeitos vendedores de ilusões como todos os outros.
Não sendo (ainda que) uma profunda e divertida «suma ateológica» da nossa existência como Ilusão, à maneira de Antero (com o humor a mais), Uma Viagem à Índia é uma navegação parada e fulgurante da nossa alma de pós-modernos, fugitivos e perseguidos, como um herói de banda desenhada entre os recifes simétricos de um Poder sem rosto que nem precisa de existir para nos servir de Destino e uma universal Ilha de Amores tarifados de onde desapareceu até a lembrança de que alguma vez, como na história de Pedro e Inês (de Bloom e Mary), Poder e Amor tivessem dormido na mesma cama.
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NB: As fotografias não foram escolhidas a partir da obra.
In Uma Viagem à Índia, ed. Caminho
© SNPC |
19.11.10