Observatório da Cultura
Criação e evolução

Aspectos metafísicos de uma teoria biológica

A teoria do Intelligent Design (desígnio inteligente – doravante ID) advoga, contra o neo-darwinismo, uma “third possible cause for an event, object, or pattern”: “design”. “A designed event, object, or pattern, is one that was originally conceived by a mind or intelligence, and then brought into being «on purpose» by manipulation of matter and energy” (1). Ou seja, os organismos vivos não podem ser compreendidos senão pela invocação deste terceiro tipo de causa, além do acaso e da necessidade presentes no modelo explicativo neo-darwinista. Isto não significa uma deriva teológica: a simples inspecção atenta dos fenómenos ditos vivos obriga, dizem, a inferir esta forma de explicação (2). Ao defender este ponto com os seus argumentos, o ID permite evidenciar, mais uma vez, os limites e insuficiências do neo-darwinismo, as suas anomalias, tantas vezes silenciados. Por um lado, os dados fósseis e geológicos disponíveis (a chamada explosão câmbrica) estão longe de corroborar a noção de mutação ocasional pequeníssima, adaptada, a qual, só devido a isso, integra a hereditariedade específica para se perpetuar. Por outro, a probabilidade ínfima do surgimento de estruturas químicas complexas compatíveis com a vida celular (quanto maior a complexidade, menor a probabilidade, e tanto menor quanto o tempo calculado para o aparecimento da vida na terra é minúsculo comparado com a idade do planeta), corrói a noção de acaso – como pode algo tão complexo, tão bem integrado na totalidade do mundo (fine tuned), os seres vivos, terem surgido, apenas, por acaso (3)? Assim, estes dados levam à afirmação da causalidade inteligente como origem da vida, independentemente da sua ulterior caracterização. Há ainda outro ponto da argumentação do ID, mais decisivo pela sua consequência, a noção de complexidade irredutível, que altera o próprio modelo explicativo do neo-darwinismo. Aqui é a análise dos próprios organismos vivos ou de alguns dos seus órgãos que obriga a classificá-los como “irreducibly complexes” (complexos irredutíveis). Um complexo irredutível é “a single system [which is] necessarily composed of several well-matched interacting parts that contribute to the basic function, wherein the removal of any one of the parts causes the system to effectively cease functioning” (4). De tal modo que o todo determina as partes, e sem aquele estas são desprovidas de sentido ou função (pelo que a sua presença isolada, não teria qualquer justificação). Esta constatação impede a génese evolutiva dos seres vivos, pois há um dado descontínuo na sua descrição. É um aspecto qualitativo, que pela sua natureza global escapa à série de operações físico-químicas da célula. Pelo contrário, é esse aspecto que preside às funções celulares parciais, ordenando-as no todo vivo: o olho vê, e cada uma das actividades moleculares presentes ocorre em nome da visão. Com esta noção, o ID rompe com o mecanicismo da ciência moderna (herdado pelo neo-darwinismo).

Cabe perguntar quais são, então, os termos dos paradigmas explicativos em confronto? O acaso e a necessidade quantificados, versus o acrescento de uma descrição qualitativa do todo orgânico. Observe-se que a necessidade e probabilidade das transformações celulares é dada pela identificação dos sucessivos estados dos materiais da célula. Comprove-se ainda que o todo complexo toma simultaneamente a posição de forma e de fim relativamente aos seus constituintes. Estão aqui presentes noções com uma história mais antiga do que a ciência moderna: forma, fim, matéria; aquelas precisamente que Aristóteles usava para dar conta da realidade. Uma obra de Etienne Gilson tem um subtítulo que clarifica esta situação: “Essai sur quelques constantes de la biophilosophie” (5). A análise cuidada que aquele autor faz de diferentes biólogos que possibilitaram a afirmação generalizada do darwinismo e de alguns neo-darwinistas condu-lo à identificação de constantes no pensamento biológico, a saber, a necessidade mais ou menos consciente de recorrer na descrição do vivo à posição de um arranjo terminal (e estrutural) dos elementos, novo, quer relativamente às partes, quer ao próprio processo, mas que secretamente já estava dado, pois era para lá que se encaminhava a sequência das alterações (vida). Há uma qualquer forma que actua como fim do processo vital, i.e., está presente em potência, fazendo com que, de cada vez, as alterações se dirijam para ela: a causa final. O estudo de Gilson começa com a apresentação da posição de Aristóteles no “De partibus animalium”, onde se discute a possibilidade de reduzir a compreensão da vida à descrição das suas partes constitutivas (causas materiais – isso a partir do qual algo é o que é (6)), acrescida da narração da sequência das suas alterações (causas motoras – isso que provoca as alterações (7)). Aristóteles conclui que tal não é possível, contra Empédocles, precisamente, porque o fim é outra coisa: é o isso para onde, que procura dar conta do que é característico do ser vivo, a ordenação da alteração espontânea (auto-motora), patente na individuação das alterações, na reprodução homóloga, na organicidade de cada ente vivo e, em suma, na própria adaptação ao todo da natureza, condição da sobrevivência (8).

A que se deve a rejeição, muitas vezes acintosa, da finalidade (presença do fim ainda não realizado num ser) das explicações científicas aceites? Certamente o seu carácter escondido (em potência), embora não menos evidente (sustenta Gilson) – “l’explication par la cause finale a toujours été d’un type entièrement différent, en ce que le principe d’explication qu’elle invoque n’est pas en soi objet d’observation empirique. La fin n’est pas une cause que l’on puisse observer à l’œuvre comme la cause motrice l’est dans le cas de corps qui s’entrechoquent. Pour la même raison, la fin n’est ni mesurable ni calculable, on peut seulement en dire qu’elle est là. En revanche, on peut le dire avec assurance parce que les effets dont on lui demande de rendre raison sont visibles […]” (9). Mas, mais importante, é o facto da finalidade não se incluir nas intenções da ciência moderna. É o que E. Gilson explica pacientemente citando F. Bacon e Descartes: a exclusão da finalidade começa com a constatação do seu desinteresse e culmina com a sua negação pura e simples – o inútil não existe (10). Com a compreensão da finalidade não se inicia nada, não se transforma nada. Em certo sentido há algo de irremediavelmente conservador nela (11).

Sublinhe-se, porém, que só a finalidade é facto. A transformação da causalidade final numa causalidade inteligente, actuando a montante de todo o processo vivo, como defende o ID, pode parecer plausível e tornar mais aceitável a noção de fim, mas supõe longos raciocínios e, principalmente, ultrapassa o âmbito da ciência biológica (12). Em rigor, trata-se do velho problema de saber se a natureza imita a arte, ou vive-versa. O artesão constrói entes com um fim, mais ainda, toda a sua actividade é intencional, de tal modo que os seus produtos se assemelham ao que ele antecipou pela imaginação. Houve uma inteligência que previu o fim e em seu nome ordenou os meios materiais para o produzir (13). Assim, o fim actua, de acordo com a nossa experiência da produção, com a necessidade do passado – mecanicamente. Nada na natureza por si só indica que ela seja inteligente, ou que haja uma inteligência qualquer com poder para a fazer actuar de modo orientado: “la manière dont la nature opère nous échappe; sa finalité est spontanée, non apprise; [...].”, por isso, “la nature n’imite pas l’art” (14). A finalidade é uma propriedade imanente dos seres vivos, significa a sua orientação fixa, e tão-somente isso. Poder-se-á perguntar o que o justifica, mas com essa pergunta, ainda que fundamental, aponta-se para um horizonte de resposta que transcende a evidência fenoménica.

O ID, como teoria científica explicativa dos fenómenos vivos, reintroduz no discurso científico a finalidade, e nessa medida atém-se à evidência disponível e mostra a insuficiência da explicação mecanicista da bioquímica. Ao interpretá-la como propósito inteligente e reclamar para isso o apoio dos dados, vai demasiado longe. Emerge do debate uma compreensão mais alargada da racionalidade (esta não se restringe ao modelo material-motor da física-matemática), e muito se ganharia com o esclarecimento aturado das próprias condições da inteligibilidade dos diferentes modelos. Refira-se ainda, a vertente ética da rejeição do conceito de finalidade. A ciência moderna alterou e altera, aparentemente de modo imparável, as condições de vida da humanidade. Modificou também o que o homem pensa de si próprio (nisto a biologia é fulcral) e, por conseguinte, um ser (que se pensa de modo) diferente, age de modo diferente, e tantas vezes indiferente... Compreende-se agora o dito de Ivan Karamasov – “Se Deus morreu, tudo é permitido”. Não se trata de perder o polícia e o rebanho dispersar. Perdeu-se o fim – não se sabe para onde ir.

(1) W. S. Harris e J. H. Calvert, Intelligent Design – The Scientific Alternative to Evolution, in The National Catholic Bioethics Quarterly, Autumn, 2003, p. 545.

(2) Cfr. ibid., pp. 532, 539-541, e 556.

(3) Cfr. ibid., pp. 548, e 552-553. Cfr. tb. G. Sewell, A Mathematician’s View of Evolution, in The Mathematical Intelligencer 22, nº 4 (2000), pp. 5-7.

(4) Ibid., pp. 549-551. Cfr. tb., M. J: Behe, Evidence for Intelligent Design from Biochemistry (…), http://www.arn.org/docs/behe/mb_idfrombiochemistry.htm , e Irreducible complexity, in Wikipedia, http://en.wikipedia.org .

(5) O título é: D’Aristote à Darwin et Retour, Vrin, Paris, 1971.

(6) Cfr.  E. Gilson, op. cit., pp. 26-27.

(7) Cfr. ibid., p. 13.

(8) Cfr. ibid., pp. 13-14, 21.

(9) Op. cit. p.198; cfr. tb., pp. 20 e 200-201. É de notar que o próprio princípio da causa motora, mecânica, é oculto, pese embora a tangibilidade do choque (cfr. Hume).

(10) Todo o cap. II, pp. 33-53 é dedicado a este ponto, com longas citações dos pais fundadores e ideólogos da modernidade.

(11) E de estético... cfr. E. Gilson, op. cit., pp. 37-40.

(12) Gilson sublinha insistentemente este ponto (cfr. op. cit. ): uma coisa é a biologia, estudo científico do ser vivo, baseado na identificação de fenómenos, outra a reflexão sobre as condições de possibilidade do ser vivo e a inteligibilidade total da natureza, objecto da filosofia natural e da teologia natural.

(13) Cfr. supra a definição da causalidade inteligente do ID.

(14) E. Gilson, op. cit., p.23; cfr. tb., pp. 18-24, em especial nota 9, p. 22. Mais uma vez, Gilson apresenta a discussão aristotélica do problema... E posteriormente, afirma: “Le finalisme n’exige même pas que les phénomènes vitaux tendent vers une fin «préconçue» ” (ibid., p. 196).

Miguel Bagorro

Professor de Filosofia

 

 

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