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Poesia e contos de fadas

Apesar de tudo amo a minha época porque é a época em que falta tudo

Dantes, o poeta existia para nomear as coisas: como se fosse a primeira vez, diziam-nos em crianças, como se fosse o dia da Criação. Hoje em dia ele parece existir para se despedir delas, para as recordar aos homens, terna e dolorosamente, antes que sejam extintas. Para escrever os seus nomes na água: talvez nessa mesma vaga que daí a pouco as arrastará consigo.

Um parque sombroso, o verde espelho de um lago atravessado por belos gerânios dourados, no coração da cidade, da tormenta de cimento armado. Como não pensar ao olhá-lo: o último lago, o último parque sombroso?

Quem hoje não tiver consciência disto, não é poeta de hoje.

Na poesia, tal como na relação entre as pessoas, tudo morre assim que é aflorado pela técnica. A verdadeira educação da mente nunca teve outra finalidade, desde que o mundo existe, senão a morte da técnica, daquele triste saber viver que à criança, à qual tudo resulta por natureza, um dia foi fornecido pelos adultos. Por este artesanato do viver todos os homens são arrancados aos limiares da sua inocência, tal como pelas flores matizadas ou pela cerva perseguida na caça os antigos princípios à casa paterna. É uma viagem necessária, que todavia terá de conduzir bem para além da roda ou do cervo, até mesmo ao coração das cavernas e dos terrores, onde o saber viver se dissolverá como a cera ao contacto, real e metafórico, com os quatro elementos.

Podemos tornar-nos também naturais para além da técnica, tal como em crianças o estivemos para aquém dela. Mas desde há uns tempos o homem parece murado na sua técnica como um insecto no âmbar. Os caminhos para a água e o fogo – e até para a terra e o ar – agora estão-lhe todos vedados. Em torno do seu jardim ergue-se um muro alto dentro do qual nada de novo pode crescer – “se um pássaro em voo não deixar cair uma semente”. (...)

Apesar de tudo amo a minha época porque é a época em que falta tudo e, exactamente por isso, talvez seja o verdadeiro tempo do conto de fadas. E é claro que não entendo com isto a era dos tapetes voadores e dos espelhos mágicos, que o homem destruiu para sempre no acto de fabricá-los, mas sim, a época da beleza em fuga, da graça e do mistério prestes a desaparecer, como as aparições e os sinais arcanos do conto de fadas: tudo aquilo a que certos homens nunca renunciam, que quanto mais os apaixona mais parece perdido e esquecido. Tudo o que se vai procurar bem longe, mesmo com risco de vida, como a rosa de Belinda em pleno inverno. Tudo o que sempre se oculta sob peles cada vez mais impenetráveis, no fundo de cada vez mais horrendos labirintos.

Cristina Campo

in Os Imperdoáveis

02.10.2008

 

 

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