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Incarnação

O amor de Deus ao homem real

«Ecce homo» – vede o Deus feito homem, o mistério impenetrável do amor de Deus para com o mundo. Deus ama os homens. Deus ama o mundo. Não um homem ideal, mas o homem tal como é; não um mundo ideal, mas o mundo real. O que para nós é abominável pela sua oposição a Deus, aquilo de que nos retraímos com dor e hostilidade, a saber, o homem real, o mundo real, é para Deus motivo de um amor insondável, com isso Ele se une do modo mais íntimo. Deus torna-se homem, homem real. Enquanto nós nos esforçamos por ir além da nossa humanidade, por deixar atrás de nós o homem, Deus faz-se homem, e temos de reconhecer que Deus quer que também nós, homens, sejamos homens reais. Enquanto nós fazemos uma distinção entre piedosos e ímpios, bons e maus, nobres e vulgares, Deus ama sem distinção o homem real. Não suporta que dividamos o mundo e o homem segundo os nossos critérios e nos tornemos juízes a seu respeito. Leva-nos «ad absurdum», porque Ele próprio se faz homem real, companheiro dos pecadores, obrigando-nos a tornar-nos juízes de Deus. Surge ao lado do homem real e do mundo real, contra todos os seus acusadores. Deixa-se acusar com o homem e com o mundo e transforma assim os seus juízes em acusados.

Mas não basta dizer que Deus aceita o homem. Esta proposição assenta em algo de infinitamente mais profundo, de mais impenetrável quanto ao seu sentido, a saber, que Deus, na concepção e no nascimento de Jesus Cristo, aceitou corporalmente a humanidade. Deus eleva o seu amor ao homem acima de qualquer suspeita de inautenticidade, de qualquer dúvida e incerteza, porque Ele próprio entra como homem na vida do homem, porque assume sobre si e carrega corporalmente a natureza, a essência, a culpa e o sofrimento do homem. Por amor do homem, Deus faz-se homem. Não busca o homem mais perfeito para se unir a ele, mas assume a essência humana como ela é. Jesus Cristo não é a transfiguração de uma humanidade sublime, mas o sim de Deus ao homem real; não é o sim impassível do juiz, mas o sim misericordioso daquele que sofre o destino de toda a humanidade. Jesus não é um homem, mas o homem. O que n’Ele acontece tem lugar no homem, acontece a todos e, por isso, também a nós. O nome de Jesus encerra em si a humanidade inteira e a plenitude de Deus.

A mensagem da encarnação de Deus abarca um tempo em que, tanto nos maus como nos bons, o desprezo ou a deificação do homem é a derradeira ilação da sabedoria. As fraquezas da natureza humana descobrem-se mais claramente na tormenta do que no decurso tranquilo de tempos mais calmos. Em face de ameaças e possibilidades insuspeitadas, o medo, a avidez, a dependência e a brutalidade revelam-se como os móbiles do seu agir. Em tais momentos, o tirânico desprezador do homem aproveita-se facilmente da baixeza do coração humano, alimentando-a e dando-lhe outro nome: ao medo chama responsabilidade, à avidez chama ambição, a dependência transforma-se em solidariedade, a brutalidade transmuta-se em dominação. Assim, no trato amistoso com as fraquezas do homem, gera-se e intensifica-se continuamente a sua baixeza. Sob os protestos mais sagrados de amor ao próximo, o desprezo mais baixo pelo homem leva a cabo o seu trabalho obscuro. Quanto mais baixa se torna a baixeza, tanto mais é, nas mãos do tirano, um instrumento dócil e flexível. O pequeno número das pessoas rectas é rejeitado com desprezo. A sua coragem chama-se revolta, a sua disciplina farisaísmo, a sua autonomia arbitrariedade e a sua dominação soberba. Para o tirânico desprezador do homem, a popularidade surge como o sinal do supremo amor pelo homem; esconde a sua secreta e profunda desconfiança de todos os homens por trás das palavras sonegadas de verdadeira comunhão. Enquanto diante da multidão se confessa como um dos seus, gaba-se a si mesmo com vaidade repugnante e despreza o direito de cada indivíduo. Tem os homens por estúpidos e eles tornam-se estúpidos, tem-nos por fracos e eles tornam-se fracos, tem-nos por desprezíveis e eles tornam-se desprezíveis. o seu empenho mais sagrado é um jogo frívolo, a sua jurada e filistina solicitude é o mais impudente cinismo. Mas quanto mais, no profundo desprezo pelo homem, busca o favor daqueles que despreza, tanto mais certamente desperta na multidão o culto divino da sua pessoa. Desprezo e idolatria dos homens estão intimamente associados. Mas o bom, que dá por tudo isto, que se retira enojado da presença dos homens e os abandona a si mesmos, que prefere cultivar a sua horta a tornar-se participante da vida pública, sucumbe, como o mau, á mesma tentação de desprezo pelo homem. O seu desprezo pelo homem é, sem dúvida, mais nobre, mais elevado, mas também estéril, inoperante. Tal como o tirânico desprezador do homem, também não pode subsistir diante da encarnação de Deus. O desprezador do homem despreza o que Deus amou, despreza a figura do próprio Deus encarnado.

Mas há ainda um amor pelo homem, correcto e bem intencionado, que equivale ao desprezo pelo homem. Assenta na apreciação do homem de harmonia com os valores nele latentes. De acordo com a sua mais profunda saúde, racionalidade e bondade. Este amor do homem cresce, quase sempre, em épocas tranquilas, mas também nas grandes crises o esplendor ocasional destes valores se pode converter no motivo de um amor-dos-homens obtido com dificuldade e sincero. Com uma indulgência forçada, interpreta-se então o mal como se fora bom, passa-se por alto o que é vulgar, desculpa-se o que é repreensível. Por razões diversas, receia-se dizer um claro não, e acaba-se por aprovar tudo. Ama-se uma imagem do homem feita à medida de si, que dificilmente tem ainda semelhança com a realidade e, deste modo, acaba-se por desprezar de novo o homem real, que Deus amou e cuja natureza Deus assumiu.

Conhecer e não desprezar o homem real só é possível através da encarnação de Deus. O homem real pode viver diante de Deus e poderemos deixá-lo viver ao nosso lado diante de Deus, sem o desprezar ou divinizar. Não como se o homem real fosse um valor em si, mas somente porque Deus o amou e assumiu. O motivo do amor de Deus pelo homem não reside no homem, mas apenas no próprio Deus. A razão pela qual podemos viver como homens reais e poderemos amar o homem real ao nosso lado reside, de novo, somente na encarnação de Deus, no amor insondável de Deus pelo homem.

Dietrich Bonhoeffer

in Ética

23.09.2008

 

 

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Encarnação
Fernão Gomes, c. 1590-1600
Mosteiro de Santa Maria de Belém, Lisboa

















































































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