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Economia

Os cristãos do século XXI ante o desafio do capitalismo global

Na mensagem para esta Quaresma, Bento XVI refere que "segundo o ensinamento evangélico, não somos proprietários mas administradores dos bens que possuímos: assim, estes não devem ser considerados propriedade exclusiva, mas meios através dos quais o Senhor chama cada um de nós a fazer-se intermediário da sua providência junto do próximo. Como recorda o Catecismo da Igreja Católica, os bens materiais possuem um valor social, exigido pelo princípio do seu destino universal."

No texto de Francisco Sarsfield Cabral que seguidamente propomos, o autor apresenta uma síntese das grandes transformações que o capitalismo implica e equaciona o papel que os cristãos devem ter para fazer face aos desequilíbrios na distribuição da riqueza.

"A palavra globalização não fazia parte do nosso vocabulário corrente ainda há uns dez anos. Agora, pelo contrário, toda a gente fala em globalização. Mas é antiga a realidade da mundialização (como preferem dizer os franceses). Com os descobrimentos, os portugueses foram, há quinhentos anos, grandes impulsionadores do fenómeno. E na chamada “belle époque”, no princípio do séc. XX, havia uma grande liberdade na circulação de mercadorias, capitais e até pessoas — não era então exigido um passaporte para atravessar a maior parte das fronteiras.

 

Mundo mais pequeno

Mas, se a globalização não é de hoje, também é certo que, nos nossos dias, ela assumiu proporções inéditas. A aceleração actual tem a ver, naturalmente, com o progresso dos transportes e comunicações, bem como da informática. O mundo tornou-se mais pequeno e através dos meios electrónicos fazem-se transacções (sobretudo financeiras) numa questão de segundos, num mercado que é de facto global: envolve todo o mundo.

Outra manifestação actual (embora com raízes no passado próximo) é o crescente peso das empresas multinacionais. Muitas destas empresas não apenas estão fisicamente presentes em múltiplos países e em vários continentes, como repartem geograficamente as suas produções, fabricando peças, componentes e partes do produto final nos locais onde encontram condições económicas mais convenientes. Tem, assim, cada vez menos sentido dizer que o artigo X ou Y é português, americano ou japonês (provavelmente tem componentes de inúmeros países). A própria nacionalidade das empresas perde significado: com capitais e pessoal (incluindo dirigentes) de vários países, trabalhando em muitas partes do mundo, já não se pode dizer, com segurança que uma empresa multinacional é americana, francesa ou alemã.

A globalização é hoje visível sobretudo nos mercados financeiros. Por exemplo, em Agosto de 1998 a Rússia deixou de honrar alguns compromissos externos - isto é, suspendeu o pagamento de algumas dividas. Os investidores apanharam um susto e resolveram, entre outras coisas, retirar o seu dinheiro do Brasil. Nenhuma relação existia entre a economia brasileira e a russa - mas o efeito foi a saída, de capitais do Brasil, levando à desvalorização do real em Janeiro de 1999. O mercado é global...

O que se passa nas bolsas é outra manifestação evidente do fenómeno da globalização. A abertura da bolsa de Nova York, ao principio da tarde em Portugal, é aguardada nas bolsas de todo o mundo por investidores que querem ver em que direcção vai o mercado americano - e em função disso fazem as suas transacções. Por isso agora se fala tanto, entre nós, do índice Nasdaq (índice norte-americano de acções tecnológicas), quando ainda há poucos anos era um índice quase ignorado na Europa.

 

A contestação do capitalismo global

Como se sabe, a globalização tem sido alvo de protestos e manifestações, sobretudo por ocasião de grandes reuniões internacionais. Mas o que significa ser contra a globalização? Ela é um facto e um facto irreversível, já que não é possível “desinventar” todo o progresso técnico que a possibilita. Acontece que, desde o colapso do comunismo, apenas existe um sistema económico, o capitalista. Por isso, toda a contestação anti-capitalista, que dantes era em boa parte canalizada para a defesa de sistemas comunistas e socialistas, concentra-se hoje num ataque à globalização, fase actual do capitalismo. Mas é um ataque difuso, em que se misturam sentimentos muito diversos.

Juntam-se, nesta atitude anti-globalização, os nostálgicos do passado proteccionista, de direita, e o esquerdismo mais extremo.

Por exemplo, é reaccionário e profundamente injusto o combate de muitos sindicatos americanos e alguns europeus con­tra a entrada de artigos provenientes do Terceiro Mundo. Sob o pretexto de que nos países subdesenvolvidos os trabalhadores não gozam de direitos sindicais nem sociais, há quem pretenda travar a concorrência daqueles países. Daí a exigência da chamada cláusula social, onde se considera concorrência desleal competir com artigos fabricados em países onde não se respeitam os direitos sociais e sindicais. Mas esta é um posição hipócrita: a única maneira de aqueles países saírem do subdesenvolvimento e da falta de direitos dos trabalhadores é, precisamente, conseguirem ter acesso ao mercado dos ricos. Sob a capa de uma preocupação social, está-se, afinal, a defender interesses proteccionistas de pequenos grupos de empresas e de trabalhadores dos países ricos.

O mesmo se diga, aliás, da cláusula ambiental, que pretende excluir do acesso ao mercado os produtos fabricados em países onde se não proteja o ambiente. O que diríamos nós, portugueses, se os alemães proibissem a entrada dos nossos artigos com o pretexto de os salários em Portugal serem um quarto ou um quinto dos salários alemães?...

 

“Trade, not aid”

O problema de muitos países pobres não é a globalização - e a falta dela. Em Africa, por exemplo, ninguém, quer investir. Tomaram muitos países africanos ser ”explorados” pelas multinacionais, que pura e simplesmente tiraram a África das suas estratégias empresariais...

Se queremos ajudar o Terceiro Mundo - e penso ser essa uma obrigação moral - então a prioridade não é mandar para lá dinheiro, mas abrir-lhe os nossos mercados. Os países pobres pedem “trade, not aid”. Já no corrente ano a União Europeia tomou a iniciativa de liberalizar as importações provenientes dos 49 países mais pobres do mundo. É um passo generoso e inteligente, que deveria ser seguido por outros, como os Estados Unidos.

Dito isto, é evidente que a globalização coloca problemas sérios. As deslocalizações de empresas podem lançar subitamente no desemprego grande número de trabalhadores. E, nos países desenvolvidos, os salários dos trabalhadores menos qualificados sofrem a concorrência dos salários ultra-baratos do Terceiro Mundo (é só nessa faixa, aliás que a globalização afecta os salários nos países ricos). Mas o grande problema é que a globalização, sendo internacional por natureza, escapa à regulação dos Estados nacionais. Pode, por isso, tomar-se uma globalização selvagem, onde o poder económico prevaleça sobre o poder político democrático e onde não exista quem se preocupe com o bem comum universal (para utilizar uma feliz expressão de João Paulo II). Assim, um dos grandes desafios do século XXI é enquadrar politicamente a globalização.

 

Um novo direito internacional

É um facto a crescente erosão do poder dos Estados. Isoladamente, mesmo os Estados de uma certa dimensão têm hoje escassa capacidade de intervenção, num mundo cada vez mais interdependente. A partilha de soberania que se faz na União Europeia constitui uma resposta original e bastante bem sucedida a essa erosão: porque a união faz a força, os países da UE actuam em conjunto para lidar com um certo número de problemas.

Mas há, por outro lado, indícios de que um novo direito internacional está a emergir. Recorde-se o caso de Pinochet, retido longo tempo na Grã-Bretanha (um país onde os direitos e as liberdades das pessoas são geralmente respeitados) por causa de acusações de um juiz espanhol. Ou Timor, um exemplo de intervenção da comunidade internacional para defesa dos direitos humanos de um povo. Ou, ainda, os tribunais internacionais para a ex-Jugoslávia ou o Ruanda, ou o Tribunal Penal Internacional, a que Portugal aderiu. Com todas as limitações (e são muitas) destas iniciativas, a verdade é que se está a dar uma viragem fundamental: agora, não são apenas os Estados os sujeitos de direito internacional público - são também as pessoas. Por isso começa a ser aceite o direito de ingerência humanitária, quando ainda há duas ou três décadas a soberania nacional era considerada intocável.

É também indispensável reforçar o papel das organizações internacionais, sobretudo para defender os mais fracos. Daí a irracionalidade dos manifestantes anti-globalização que clamam pelo fim da Organização Mundial do Comércio e instituições desse tipo.

Sem o reforço das organizações internacionais, mandará apenas o poder das grandes potências e sobretudo da única superpotência, os Estados Unidos, Não é uma situação saudável.

Como também não será saudável que o mercado - a economia - predomine sobre a política dada a desproporção de forças entre muitos Estados e os agentes económicos - empresas multinacionais, operadores financeiros, investidores, etc. Os agentes económicos não são eleitos, não nos representam e por isso não podemos esperar deles que se empenhem no bem comum. A sobrevivência da democracia numa era de globalização passa por assegurar a prevalência da política sobre o mercado.

 

O papel da ética

O Papa João Paulo II foi uma das personalidades mundiais que maior influência teve no colapso do comunismo. No entanto, logo após a queda do muro de Berlim, advertia o Papa que o capitalismo não é o paraíso. Nem o que se passou representa qualquer “fim da história”. O comunismo não era solução, decerto, mas o capitalismo tem graves defeitos que importa corrigir. Por exemplo, estão a crescer as desigualdades internacionais e internas. A pobreza persiste em largas zonas do globo e novas formas de pobreza surgem nos países ricos. Quem, há 30 ou 40 anos, julgasse que o desenvolvimento económico iria eliminar a miséria estará hoje muito desiludido: apesar de um excepcional crescimento económico nos Estados Unidos durante a última década, a miséria não foi ali significativamente reduzida, pelo contrário. E um quinto da população mundial vive, ou sobrevive, com menos de um dólar por dia.

Por outro lado, a globalização e sobretudo as novas tecnologias são, muitas vezes, um factor de exclusão. O aumento das disparidades de rendimento tem muito a ver com essas novas tecnologias: os que nelas se sentem à vontade ganham cada vez mais, por vezes até somas astronómicas; os outros, os “info-excluídos”, na melhor das hipóteses ficam na mesma

Outro facto preocupante é a fuga de cérebros. Os Estados Unidos e a Alemanha, por exemplo, “importam” grande número de técnicos. Ora estes vêm de países menos desenvolvidos, que gastaram dinheiro com a sua educação mas que ficam sem o fruto do seu investimento. Assim, os pobres ficam cada vez mais pobres...

Todos estes problemas precisam de resposta. Porquê? Acima de tudo por motivos éticos. A miséria do mundo não é aceitável, quando existem meios para a debelar. No mundo desenvolvido o papel da ética é essencial ainda por outra razão: é que, agora, os pobres são aí uma minoria. Quando se generalizou o sufrágio uni­versal, os políticos avançaram para o Estado providência, ou seja, para esquemas de segurança social, de cuidados de saúde etc., que a maioria — pobre — dos eleitores exigia.

Agora, porém, os realmente pobres são uma minoria nos países ricos. Muitos deles são tão excluídos que nem sequer votam. Logo, o “valor eleitoral” dos pobres é hoje fraquíssimo. Significa isto que os problemas dos mais pobres só serão enfrentados a sério na medida em que a maioria dos eleitores — maioria que não é pobre - considerar moralmente intolerável a situação dos marginalizados. A ética deve determinar a política

A importância da motivação ética para atacar os problemas da pobreza no mundo desenvolvido é tão mais importante quanto desapareceu um factor que, no passado, estimulou as políticas sociais: o medo do comunismo. Agora, só por razões morais será a pobreza colocada na agenda politica.

 

Lutar por um mundo melhor

Em grande parte como reflexo do colapso do comunismo, instalou-se nas nossas sociedades um clima de resignação: não vale a pena lutar pela justiça ou, em geral, por um mundo melhor. Pois se o comunismo, que quis mudar o mundo, afinal ainda se revelou um sistema pior do que o capitalismo... Não será mais sensato cada um tratar da sua vida, sem “ingenuidades” de pretender mudar o mundo? E quanto às injustiças existentes, pois é pena, mas a vida e assim... Esta atitude de individualismo egoísta prevalece hoje nas sociedades economicamente desenvolvidas.

A indiferença perante o sofrimento dos outros é subtilmente reforçada por um outro factor. No passado, havia um certo complexo de culpa por parte dos mais favorecidos. “Se há pobres, é porque há ricos que os exploram”, dizia o marxismo. Acabe-se com a exploração pelos ricos e reinará a justiça. A explicação marxista da acumulação do capital através da apropriação pelos patrões da “mais-valia” do trabalhador exprimia a ideia de que o mal tem sempre um culpado: bastará, então, eliminar o culpado para restabelecer o bem. Deve reconhecer-se, aliás, que esta perspectiva foi durante muito tempo a dos cristãos quanto ao pecado original. O mal seria sempre o castigo de uma culpa, de um pecado. Hoje, essa perspectiva está largamente afastada na Igreja. Aliás, Cristo disse que a Torre de Siloé não tinha caído para castigar pecados...

Como agora as explicações marxistas perderam credibilidade e muita gente está consciente de que, por exemplo, a miséria dos povos de África não se deve apenas, nem principalmente, à colonização, ou que o facto de haver pobres não é simples consequência de existirem ricos que os exploram - as pessoas são levadas a pensar: como não sinto qualquer responsabilidade no sofrimento dos outros, porque não contribuí para ele, não tenho que os ajudar.

 

A Igreja na vanguarda

Ora esta posição, que infelizmente se generaliza entre nós, não é aceitável para um cristão. Quando o Papa apela à solidariedade para com os pobres, trata-se de uma solidariedade motivada apenas pelo facto dos outros que sofrem serem pessoas. Não tenho obrigação de me preocupar com a sorte deles porque a mim, ou aos meus antepassados, ou ao meu país, possam ser assacadas culpas pelo mal que eles sofrem. Se tal responsabilidade existe, naturalmente que ela reforça o meu dever de ajudar os outros - mas esse dever é independente de qualquer culpa.

O Evangelho não dá receitas económicas nem políticas, mas impõe uma atitude de não resignação ao mal do mundo. Por isso a Igreja surge, hoje, não apenas como uma das raras instituições com legitimidade para criticar o capitalismo mas sobretudo como um despertar da consciência das pessoas. A Igreja prega o inconformismo perante o mal, o sofrimento dos outros, a injustiça do mundo, numa sociedade que tende a fechar-se no egoísmo e no esquecimento dos pobres.

A Igreja acordou tarde para a revolução industrial e os problemas sociais que ela trouxe. A “Rerum Novarum” surgiu apenas no final do século XIX, depois de a grande massa dos operários se haver afastado do cristianismo. Desta vez, porém, a Igreja está na vanguarda. É da Igreja e em particular do Papa, que surgem apelos ao enquadramento politico da globalização, ao reforço das organizações internacionais, ao desenvolvimento de um novo direito internacional público que coloque as pessoas no centro."

Francisco Sarsfield Cabral

in Memoria, Instituto Católico de Viana do Castelo, 2001

19.02.2008

 

 

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Notas

























É reaccionário e profundamente injusto
o combate de muitos sindicatos americanos e alguns europeus contra a entrada de artigos provenientes do Terceiro Mundo. Sob o pretexto de que nos países subdesenvolvidos os trabalhadores não
gozam de direitos
sindicais nem sociais,
há quem pretenda
travar a concorrência daqueles países







































Quem, há 30 ou 40
anos, julgasse que o desenvolvimento
económico iria eliminar
a miséria estará
hoje muito desiludido



































Em grande parte
como reflexo do
colapso do comunismo, instalou-se nas nossas sociedades um clima de resignação: não
vale a pena lutar
pela justiça ou,
em geral, por um mundo melhor. Pois se
o comunismo, que
quis mudar o mundo,
afinal ainda se revelou
um sistema pior do
que o capitalismo...
Não será mais
sensato cada um
tratar da sua vida,
sem “ingenuidades”
de pretender
mudar o mundo?










































Quanto às injustiças existentes, pois é
pena, mas a vida
é assim... Esta atitude
de i
ndividualismo
egoísta prevalece hoje
nas sociedades
economicamente desenvolvidas









































O Evangelho não
dá receitas
económicas nem
políticas, mas impõe
uma atitude de não resignação ao
mal do mundo









































A Igreja prega o inconformismo
perante o mal,
o sofrimento dos outros,
a injustiça do mundo,
numa sociedade que
tende a fechar-se
no egoísmo e no esquecimento
dos pobres

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