Irene Vilar (1930-2008)
Paradoxal humildade nos exige a aproximação do mistério de Deus. Quando se tem a coragem de emprestar humanidade relação com o transcendente depara-se com a bondade, a verdade, a beleza.
O medo assalta quem ousa encontrar meios de comunicação com o mistério de Deus. Tremem os profetas, homens e mulheres dispersos nos séculos para moldar em linguagem verbal a vontade de Deus. Vibram no silêncio os místicos, mergulhados na imensidão infinita do amor de Deus, vivenciado e sujeito à pequenez narrativa de um despojado testemunho. Sofrem e exultam os artistas fiéis à missão de dar espaço, som, cor luz, forma a experiências religiosas inenarráveis. (...)
Só os mártires entre os crentes, atingem na plenitude a identificação entre a figura de Deus e a sua entrega total. Quando chegam à perfeição do dom penetram no mistério da beleza sem fim.
Como momento de sensibilização e didáctica cultural, esta pequena exposição recolhe urn conjunto de obras de fácil deslocação e sugestiva variedade, realizadas por urna escultora de indiscutível originalidade e apreciado contributo à beleza da fé cristã.
o artista prolonga o Criador ao meter mão ao barro, moldar a matéria dar corpo à expressão sonhada e surpreender-se com o que entre os dedos acontece. A aparição do feito sugere novos detaIhes, requer cuidado do pormenor, até marcar no rigor do gesso a forma angustiadamente procurada para comunicar a sua alma entre as luzes e sombras do mundo em rostos, mãos e gestos.
A força de uma comunicação jorrante de dentro, a sensação apaixonada e multiplicadora de emoções, a exigência de uma espiritualidade digna, nascida em agitada interioridade, rebenta nas mãos e talha figuras sempre com sonoridade e movimento, mesmo no silêncio dos gestos, na pacatez da ternura ou no recato da vigorosa dor.
A fragilidade de um corpo franzino ilude quem pensa encontrar na obra de Irene Vilar medo reflectido em tímida nostalgia. Exprime sempre temperamento enérgico e apaixonado. Disse um dia: “ser artista é a minha forma de estar sozinha; porém, a solidão assusta-me e assim engano o medo trabalhando” (entrevista a Arsénio Mota, Jornal de Notícias).
Irene Vilar entende o trabalho artístico como profissão, à qual se aplica com entusiasmo novo, porque entende a arte como combate permanente".
Antes de pôr mãos à obra sente indecisão. Quando inicia novo trabalho vive em euforia e exaltação. No percurso passa por momentos de aborrecimento e de zanga, retira-se, bate a porta, passeia para olhar o mundo e continua a lutar. Entre o barro e o gesso altera, transforma, apura o recorte, aproxima a ideia da realidade. É no silêncio dos seus “ateliers” que cria, encorpa ideias da imaginação e da natureza observada. Vivifica no barro figuras históricas agarrando-Ihes o sentido da vida, a marca da personalidade, como acontece de modo exímio na estátua de D. António Ferreira Gomes com quem Irene Vilar se detinha em conversas, ao vê-lo surgir das suas mãos.
A que veio a ser escultora aspirava a ser cantora, mas a família pressionava-a para ser professora do ensino primário. Revolta-se, faz greve à comida, adoece. Acaba por entrar para Belas Artes, no curso de Arquitectura. Entretanto, frequentou igualmente Enfermagem, facto revelador de urna particular atenção aos outros, que pretendia conciliar com a arte. Ao fim do primeiro ano de Arquitectura decide mudar, encantada com o mestre escultor, professor que considerava extraordinário, Barata Feyo.
Terminado o curso, inicia actividade docente no ensino secundário, onde ocupa trinta anos de sua vida. As aulas nocturnas davam-lhe particular gosto. Considerava-as uma aprendizagem para a vida, ao ponto de afirmar que devia pagar para usufruir dessa vantagem. Em Maio de 1987 separou-se da Escola Secundária Clara de Resende e pode dedicar-se inteiramente à escultura.
A obra de Irene Vilar, com mais de quarenta anos de actividade, oscila entre a monumentalidade de obras de exterior, em permanente exposição ao público e a medalha ou moeda a circular na intimidade da colecção ou no quotidiano do bolso. Essa oscilação dá prazer à artista.
Maior monumentalidade volumétrica tem a obra suspensa pela escadaria do Hotel Sheraton, no Porto (com 11 m.). Para Macau projectou a grande escultura "Abraço" no Jardim Luís de Camões. Destina-se a celebrar a presença portuguesa, com dignidade, embora desprovida de imponência oca. Segundo palavras da Autora, em entrevista a Agostinho Santos (Jornal de Noticias, 20/9/97), pretende ser "um marco simbólico de tolerância e do convívio étnico e religioso ou do bom entendimento, ao longo de séculos entre portugueses e chineses”.
Também de enorme volumetria o monumento ao Pescador, com perto de 6 metros de altura, patente em Matosinhos. Podia referir-se ainda o bronze monumental no Regimento de Artilharia, da Serra do Pilar (Vila Nova de Gaia), ou a obra “Mundo”, no Centro de Arte Moderna, da Gulbenkian.
A arte religiosa conheceu expressão fecunda no início do movimento de renovação dos conceitos, patente nos anos 50 e 60 e reapareceu, com nova intensidade, quando plenamente Iivre, nos últimos anos, e solicitada por sucessivas encomendas.
Ao afirmar “eu gosto de tratar Deus por tu” revela a forma de uma relação directa, clara, sem rodeios, na autenticidade do traço com que ousa modelar o mistério. A acutilância da sensibilidade torna-a capaz de “descobrir melhor o vazio de certa religiosidade”, incoerente e interesseira. Aprecia a gratuidade e prefere o louvor porque “a orar alguns só sabem pedir com quem pede à entidade patronal” (entrevista a Arsénio Mota, Jornal de Notícias).
Irene Vilar considera o artista de tema religioso como um comunicador e transmissor de experiências com dimensão comunitária. Ao conhecer o espaço e a finalidade específica da obra, o artista aceita pôr-se ao serviço desta realidade, trabalha com “sentido de missão". Denomina “arte dirigida” esta abordagem da temática religiosa, para a qual trabalha com “auto-liberdade orientada”. Ao dar expressão e forma a um Cristo, por exemplo, não pretende de modo algum exercer tarefa de "dominador de intenções". A escultura resulta de uma apropriação fiel a urna perspectiva daquela hora, transmite urna experiência pessoal e está simultaneamente ao serviço do sentir de um povo crente.
Não foi a arte religiosa que notabilizou Irene Vilar no panorama de escultura portuguesa do século XX. A pouca sensibilidade da Igreja Católica para valorizar obras originais fez reduzir o número de encomendas a artistas consagrados.
Em obras da fase jovem trabalhou o talhe directo, na madeira Ultimamente opta pela modelagem em barro e gesso, depois transformado pela fundição ou pelo canteiro. O bronze a sua matéria preferida. Consegue, neste material, um domínio perfeito e dá-lhe "um cunho pessoal, quer no tratamento quer no manuseamento". (Dicionário de escultores contemporâneos em Portugal. Dir. Manuela Synek; Brás Queiroz. Lisboa: Estar, 1999, p. 224).
É reconhecido o seu percurso independente e de agressiva rebeldia, insatisfeita com o já realizado. Assim definida pela crítica artística: “dentro duma independência e coerência notáveis no pIano estético e artístico, a escultora realiza a obra com a preocupação permanente de atingir qualidade, tanto a nível técnico como procurando sinais marcantes de um estilo próprio e original, tentando a ligação à actualidade” (Dicionário, p. 224).
Deu expressão a figuras como Camões (Av. Brasil - Porto); Florbela Espanca (Matosinhos); Fernando Pessoa (Durban - Africa do Sul, São Paulo - Brasil e interpretado uma dezena de vezes); Amadeo de Souza-Cardoso; Guilherrnina Suggia (trabalho ocasionador de maior sofrimento a conseguir executar); Cesário Verde; Antero de Quental; Abel Salazar; São Rosendo (Santo Tirso); Garcia da Horta, junto ao Iiceu na Foz do Porto; António Ferreira Gomes (Penafiel). Mesmo na representação do figurativo “a escultora deposita uma deformação no campo do expressionismo, resultando num ‘desventrar de cabeças’ em formas barroquizantes e ‘acidentadas’, com uma força enérgica e possante criando um aspecto dramático à figuração"... (Dicionário, p. 225).
Chama "máscaras", apelando para o sentido etimológico de personagens, aos bronzes de poetas que admira e que povoam a Solidão do seu atelier na Foz do Douro. Dispostos pelos recantos ou com versos transcritos em folhas suspensas na parede, estas figuras são companhia de inspiração. Além disso, há uma dimensão menos conhecida da artista. Gosta de se soltar no desenho e dar voos às mãos com liberdade de gaivota. A paixão pelo desenho exercita a firmeza da mão e extravasa a emotividade do sangue. São desenhos a carvão a grafite, a tinta-da-china. Alguns são esboços para futuras esculturas, aproveitando fases de exaltação criativa. Aí transpira a música que lhe vai dentro da alma.
Nas diversas expressões da arte, Irene Vilar transfigura estados de alma. Como lhe escreveu Maria da Glória Padrão: há momentos em que “transportas uma lógica de querela íntima e nas mãos delegas o intenso conflito”, noutros “respiraste a aventura e recusas a erosão que o tempo traz ao paraíso" (Irene Vilar: quem me dirá quem sou? Texto de Maria da Glória Padrão Porto: Ed. ASA, 199 I, p. 5).
A marítima sensibilidade de Irene Vilar oscila entre o ímpeto do coração e a sapiência das mãos, a energia de comunicar o essencial das coisas e o medo de trair a beleza na configuração emotiva do transcendente. As suas obras de carácter religioso, dispersas em muitas igrejas do Norte e em colecções particulares, manifestam uma das mais inovadoras intérpretes da vivência vibrante do Mistério cristão. Há umas saudades de perfeição futura, pressente-se uma promessa de eternidade. Modelar o Mistério para Irene Vilar será cada vez mais o sentido do seu itinerário vital. Enquanto uma visão global da sua obra de expressão cristã não conseguida, nesta colheita de fragmentos pode ser saboreado o fulgor e o fascínio de uma busca apaixonada da verdade dos sinais de Deus na pobreza das mãos humanas.
Saiba mais sobre o percurso de Irene Vilar.
D. Carlos A. Moreira Azevedo
in Texto de apresentação da exposição "Modelar o Mistério", 11.03.2003
13.05.2008
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