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Sagrada Escritura

A leitura estética da Bíblia

A recepção da Escritura tem conhecido expressões múltiplas na história. Mas a par das dimensões que decorrem da legibilidade da Bíblia, outras decorrem da sua visibilidade. Como escreve Jérôme Cottin, há um cristianismo visual fundado sobre uma Palavra vista e contemplada, não apenas lida. E esta hermenêutica, que se traduz por procedimentos estéticos, se muitas vezes, erradamente, é tomana como mero adorno ou suplemento, á maneira das iluminuras que se colocavam á margem do texto, ela é, no entanto, dotada de uma energia fulgurante que testemunha o carácter estético da própria Revelação. Um insuspeito juízo como o de Hans Urs von Balthasar sugere, por exemplo, que a vitalidade do sentir católico se reflectiu mais, no século XX, na obra dos grandes poetas do que na literatura clerical.

É impressionante constatar como a Bíblia alumiou e alumia, com a faca tremeluzente do seu brilho (melhor diria, da sua verdade), algumas das leituras criativas mais fascinantes de cada tempo, inclusive do nosso. Se pensarmos nessas paráfrases arrepiantes, e tão diversas, ao Salmo 51 que são o De Profundis de Oscar Wilde, o de De profundia. Valsa lenta de Cardoso Pires ou o poema, com esse título, de Vitorino Nemésio:

“[...]
Sim, daqui, deste abismo trivial
A que só as palavras dão fundura,
A ti clamo.
Abre o meu pedernal,
uqe a seca estéril rege;
Monda o vil coração com que te amo
E, ainda que eu fraqueje,
Cava-me até ao fio de água pura.

Abre os seios dos meus ossos
E a cerração tenaz dos meus tendões:
Assim se abrem os poços
Que dão de beber aos leões.

Aí, Senhor, a tua estrela.
Quanto mais podre eu for à tona,
Mais brilhará, profunda e bela
Como o luar e a beladona.
[...]
Abre, Senhor, teus flancos: pare-me
(Que tudo podes) outra vez,
E a chaga densa
Da minha outra vida sare-me!
A tua mão salgada e imensa
Como todos os mares comunicados
Já ressuscita a tua rês:
Ela me acene,
E à tua divina presença
Suba meus ossos branqueados.
Amen.”

Mas estes são apenas um exemplo entre mil. Camões faz uma paráfrase célebre a outro Salmo, o 137, com os versos: “Sôbolos rios que vão / Por Babilónia, me achei”. E da música, chega-nos um cortejo infindável de iluminantes cotejadores do Saltério: Schütz, Bach, Vivaldi, Telemann, Charpentier, Händel, hayden, Mozart, Messiaen, Arvo Pärt... “Há uma verdadeira exegese, em sentido lato, que é levada a cabo por poetas, pintores, escultores, romancistas, músicos... Estes abordam o texto bíblico não só como vastíssimo reportório iconográfico e simbólico, mas também como um dos códigos fundamentais expressivos e espirituais.” (Gianfranco Ravasi).

Tomemos, cinematograficamente, o que representa a encenação da Ressurreição feita por Carl Dreyer em Ordet, das Bem-Aventuranças gritadas pelo Jesus do Evangelho segundo S. Mateus, de Pasolini, ou a pulsão escondida da voz de Deus que Manoel de Oliveira releva da figura de Job, no filme O meu caso. O cinema, por exemplo, recorre continuamente ao paradigma Jesus, Servo Sofredor, para falar do incontável sofrimento do mundo. São crísticos os abandonados na câmara de Bresson, mas também na de Tarkowski, na de algum Scorsese ou Godard, algum João César Monteiro ou Fellini, que filmou os olhos enganados de Cabiria como se esses olhos, canta Caetano Veloso, “fossem o coração de Jesus”.

Como esquecer a extraordinária teologia que emana da pintura de Chagall, que dizia: “Eu nunca li a Bíblia, eu sempre a sonhei”? Ou, em Rouault, a clownesca transcendência? Ou a meditação das Escrituras que acompanha a violência do pincel de Kiefer ou essas supremas, inesquecíveis superfícies que Mark Rothko pintava com as cores que Yahveh prescreveu a Moisés para a edificação do Tabernáculo?

É possível não parar diante da exegese rigorosa da paixão que percorre os textos de Anna Akhmátova ou Clarice Lispector?

“Os céus fundiram-se em fogo e um coro
de anjos glorificou a grande hora.
Disse ao Pai: ‘Porque me abandonaste?’
E à Mãe: ‘Não chores por mim, não chores...’

Madalena convulsa se agita.
O discípulo dilecto está de pedra.
Mas olhar aonde se pousa a Mãe,
Silenciosa, ninguém se atreve.” (A. Akhmátova)

“Nem todos chegam a fracassar porque é tão trabalhoso, é preciso antes subir penosamente até enfim atingir a altura de poder cair... É exactamente através do malogro da voz que se vai pela primeira vez ouvir a própria mudez e a dos outros e a das coisas, e aceitá-la como a possível linguagem. Só então minha natureza é aceita, aceita com o seu suplício espantado, onde a dor não é alguma coisa que nos acontece, mas o que somos. E é aceita a nossa condição como a única possível, já que ela é o que existe, e não outra. E já que vivê-la é a nossa paixão. A condição humana é a paixão de Cristo.” (C. Lispector)

Podemos justamente interrogar a natureza de todas estas releituras da simbólica bíblica. Não estará simplesmente, para usar uma expressão de Paul Claudel, a considerar-se a Bíblia “um imenso vocabulário”, uma espécie de mina de recursos plásticos e semânticos, disponível para uso público? Sem dúvida que uma teologia das imagens coloca problemas importantes, pois “a Revelação é um acontecimento estético, mas não pode ser compreendido unicamente sob a categoria do belo: o da revelação é um belo sub contrario, a beleza daquele que “não tinha aparência nem beleza para atrair os nossos olhares” (Is 53,2) (S. Dianich). Mas é preciso também recordar, porventura desfazendo um lugar comum, que a experiência estética não constitui uma facilitação. Tal como a metafísica ou a ética, a estética consiste propriamente na reflexão sobre o sentido da vida. E o sentido da vida não é qualquer coisa que se possa obter do exterior, mas experimentando e transcendendo o drama nocturno, agónico como a luta que na fronteira Jacob encetou com o anjo.

É importante pensarmos que o precioso património, cristão e laico, que constitui a recepção estética da Palavra Bíblica assinala uma procura que nada tem de rarefeito, mas se confunde com a maior das procuras, aquela que acende uma palavra, uma evidência ou um silêncio capaz de resgatar a existência. Dizia já a 2Pe 1,19 que buscar a Palavra é como “recorrer a uma luz que brilha em lugar escuro”.

José Tolentino Mendonça

in A Leitura Infinita

07.10.2008

 

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